domingo, 24 de fevereiro de 2008

Quando Ela Rouba

imagem: Adore, by Jerry Clovis

“Só tenho inveja da longevidade
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos”


Caetano Veloso, em Homem


Ele, agitado: “Você rouba a parte do jornal que estou lendo, rouba o livro que ainda não terminei, rouba o meu travesseiro, o meu lado da cama, a minha caneta preferida, a minha caneca do U2, o meu dvd do Morrissey, o meu pedaço de frango no prato, a minha bebida no bar... “

Ela, serena: - “Eu sei, eu roubo tudo de você...”

Ele, inconformado: - “Ah, que bom... E o que mais você quer roubar de mim?”

Ela, firme: - “Mais nada. Já tenho tudo que quero. E quando quero mais, roubo mais”

Ele, quase assustado: - ”Mais? Mais o quê?”

Ela, quase distraída: - “Mais de mim”

Ele, interrogativo: - “Como assim?”

Ela, misteriosa: - “Eu me roubo de você”

Ele, insatisfeito: - “Como assim, você se rouba de mim”?

Ela, subjetiva: - “Eu roubo eu mesma de você”

Ele, tenso: - “Você ta me confundindo... Como é isso, de me roubar de mim?”

Ela, excitada: - “Quando você me faz gozar, eu estou roubando eu mesma de você”.

Jânio Dias

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Um Copo de Cólera

imagem: The Last Judgement, before 1562 by Domenico Robusti Tintoretto


“Trouxe flores mortas pra ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar”

Legião Urbana, em A Tempestade


O que você ainda não entendeu é que nunca mais verá meu riso cúmplice deslizar pelas veias do seu pescoço branco.

Nunca mais encostará em meu peito seus cabelos molhados como chumaço de curativo que pedem alívio para a solidão.

Nunca mais terá de mim a saliva que umedece a dúvida e encobre suas mentiras fabulosas.

Nunca mais viverá comigo a tarde de quarta-feira deitada no parque sobre a grama coberta pela canga que levaste como se fosse um divã móvel. Nunca mais me contará dos anseios ardentes de menina em tempo de mulher, das fantasias sexuais que abalam uma vida convencional e que adoçam os dias amargos de quem quer viver o fogo intransigente do fim próximo.

Nunca mais me fará encher o tanque do carro para descer a serra só para andar descalça sobre a calçada da praia numa sexta-feira à noite qualquer e sentir a brisa provocada pela movimentação das ondas, molhar os pés e se oferecer para o mar. Nunca mais terás de mim o mesmo amor que encontraste na intensidade e exuberância da vaga.

Nunca mais seu telefone tocará após a meia noite para transformar seus desejos luxuriosos em mãos que te atacam no escuro da sua sala grande e confortável, abafando seus gemidos e protegendo seus pais e irmãos que dormem tranqüilos nos quartos de cima. Nunca mais seu telefone terá lábios que extraem de seu sexo o suco que a estremece deixando-a suspensa sobre o sofá.

Nunca mais terás a minha loucura para seus mimos que tanto me divertiram.

Nunca mais fará de mim brinquedo que manipula com seus dedos macios e ferinos como rosas carregadas de espinhos. Não decidirá o lugar e muito menos os minutos quebrados do horário para me apanhar. Não dirá em qual copo devo derramar minha vodka ou qual sabor de pizza não devo pedir. Dirigirei na contra mão atravessando o farol vermelho e não escutarei a ordem do policial corrupto e assassino para parar. Levarei um tiro na cabeça ouvindo feliz no volume máximo Franz Ferdinand.

Quero Arcade Fire no meu funeral. Eu sei que para sempre só você entenderá as minhas razões musicais. Mas antes, não terás mais minha entrega para compartilhar ao seu lado a nova música da nova banda que preenche de alegria e motivação meu ultrajado espírito. Não doarei mais minha alma para relembrar contigo o gosto fértil de quando éramos jovens ao lado daquelas velhas bandas e suas nunca ultrapassadas canções.

Nunca mais será premiada com músicas escolhidas como cenas de um filme de amor que têm esperança e reparação no final. Nosso último filme teve o suicídio do amor na última cena.

Nunca mais será celebrada por mim como musa inquieta e inalcançável. Eu te escalei o suficiente para te viver por cima e por dentro.

Você me faz sangrar o som da fúria.

Nunca mais lerá na saudação inicial de um e-mail meu os adjetivos que sempre encheram de ardor juvenil seu coração de estátua de cera. Não encontrará no fim do mesmo bilhete virtual a despedida que se contorcia como grito na forca na espera de vê-la outra vez. O carteiro entregando um envelope branco com uma folha rosa dentro amparando meia dúzia de pensamentos em você virou um registro apagado na memória da calçada da rua da sua casa.

Nunca mais meu abraço virá acompanhado do beijo que encarna a sua presença na lembrança dos anos que presenciaram minha transição de menino para o que sou hoje.

Nunca mais encontrará em meus olhos flamejantes o conforto que sua mãe já lhe deu, a segurança que seu pai nunca lhe assegurou.

Nunca mais terá de mim a força de um coração esguio que ampare com a ternura dos ouvidos as lamentações de sua boca inconseqüente. Nunca mais encontrará em meus pulsos limpos o abrigo para descansar as imperfeições de sua alma egoísta.

Não estou mais disposto a lhe promover em palavras que alimentem seu ego narcisista.

Nunca mais minha língua pulsara dentro de ti como início de vida clamando para nascer.

Nunca mais viverá em meus lábios a sede da procura pelo amor definitivo.

Hoje sou uma campainha que não toca, os cachorros que não latem, o portão automático enferrujado que não abre, o reboco embolorado da parede do corredor descascando pela ação estagnada do tempo. Sou palmas mudas em frente a uma casa fantasma.

O que você ainda não visualizou na retina desfigurada dos dias que criou para nós é que nunca mais serei seu.

O que você ainda não entendeu é que não encontrará mais em meus dias os vestígios de nosso amor.

Jânio Dias

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Ventura

imagem: by Sylvia Ji, Garden of Sin


“And I awake from dreams
To a scary world of screams”

Jesus and Mary Chain, em Darklands



Quando te vi pela primeira vez, vislumbrei ao beijar-te com um singelo toque no rosto complementado de um imprevisível abraço, o cheiro latente de mulher hábil e experimentada, provocante e requintada, dessas que desafiam suspiros desesperançosos e galanteios obscenos por onde passa.

Naquela noite você usava salto alto, o que me fazia sentir um individuo nanico, um ser visto abaixo do seu nariz, que já procurava roubar seu ar mesmo sem conhecê-la, capaz apenas de contemplar tamanha formosura com olhares que se revezavam entre a margem carnuda de sua boca e a sede do mistério do seu olhar. Ainda hoje seus olhos são um culto secreto cuja porta de entrada é inacessível. Sua beleza era tão radiante que chegava a cegar qualquer resquício de juízo, tão imponderável que o novo ocultava qualquer presença de culpa ou pecado.

Nossas conversas fluíam fáceis como se sentissem atraídas, como que compartilhassem as mesmas sensações de alegrias e incertezas percorridas pela vida. Nossas conversas entreolhavam-se com interesses lascivos e secretos.

Não me preocupava em conhecer detalhes de onde vinhas nem se iríamos para algum lugar. Perturbava-me apenas a dúvida da liberdade de poder abraçá-la longa e publicamente, de acariciar-lhe as mãos e de estalar seus dedos quando estivesse distraída, de dirigir com vidros abertos e perceber o vento desalinhando impetuosamente seu cabelo.

Não me visitava a possibilidade das conseqüências de uma aventura errante.

Subitamente a paixão instalou-se de forma desenfreada e explosiva. Mal nos conhecíamos e já estava conhecendo suas sobrinhas e gatos. Eu pouco sabia do bairro onde mora e já te buscava na faculdade. Sua mãe nem sabia ao certo como eu me chamava e já preparava minha sobremesa preferida. Meus amigos mais íntimos a recebia em casa e a convidava para passeios. Minha mãe não trocou seu nome quando a conheceu. Você se tornou um hábito dominador.

Parecia que existíamos para o outro há décadas, que havíamos crescido e brincado na mesma escola e que nossas famílias sempre haviam sido amigas nessa vida. Sentia como que sempre estivesse estado presente e soubesse - não sabendo - nosso destino certo.

Agora parece que a ressaca de nosso amor encontrou os obstáculos que o impedem de seguir. Descobriu que qualquer vida tem seus passados de brilhos rústicos ou sombrios imaculados, e que qualquer nova história só será forte e terá valor se souber lidar de forma matura com esses aspectos e adversidades. E a maturidade parece ainda não ter se apresentado para nós.

A descoberta indesejada da vida passada de alguém será sempre uma mancha cinza e dolorosa na lembrança de quem você é antes de conhecer o outro.

Hoje em dia quando te olho, uma luz frouxa se aproxima e afasta com raiva a beleza dos tempos afortunados em que nos conhecemos. Uma sensação de insatisfação com o caminho percorrido me absorve pelos dentes e adormece qualquer indício de sentido do meu corpo. Os acontecimentos que existiram antes de nós tornaram-se nossa derrota.

E desde que éramos crianças, eu só queria ter sido seu domingo de sol.

Jânio Dias

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A Vida Secreta das Palavras

imagem: Naked Young Man Sitting by the Sea, 1836 by Hippolyte Flandrin

“Everyday is like sunday
Everyday is silent and grey”

Morrissey, em Everyday is Like Sunday


Meu silêncio é amigo zeloso. Respeita nossa história como se fizesse reverência a coisas sagradas.

Meu silêncio destila mel sobre o amargo de nossas imperfeições, atribui peso de valor onde há uma medida vazia, apaga o cinza que seu coração manchou, sopra as cinzas da fogueira da sua vaidade. Meu silêncio promove meios de vida à nossa amizade.

Meu silêncio protege você de mim. Cala teu sussurro perto do meu olhar, evita o afago do rosto quando devo cumprimentá-la, escurece a respiração antes de nosso abraço, afasta o vento que desliza pelos fios dos seus cabelos, desvia o toque secreto dos lábios no momento da partida.

Meu silêncio pensa em você mais do que eu. Não me deixa insultá-la, não me permite a réplica veloz, me afasta do revide à suas calúnias infantis e mimos burgueses, me segura quando deveria espancá-la com as palavras mais ácidas, quando deveria cuspir no céu de nosso passado o quanto fiz sem nunca receber em troca o olhar de quem entende o significado do sacrifício.

Meu silêncio releva suas mentiras. Simula acreditar em todas as bebidas que acompanham suas fantasias e acepções. Meu silêncio revela o quanto o amor é submisso e covarde.

Meu silêncio passa a pé em frente a sua casa para encontrar no vazio da calma o arrependimento necessário para seguir adiante.

Meu silêncio contradiz a expectativa de eu não ser mais aquele que esteve ao seu lado. Meu silêncio é carregado de sons que nunca lhe abandonaram.

Meu silêncio faz sigilo comigo mesmo para que você não saiba o quanto nossas lembranças passadas refletem a memória do presente.

Meu silêncio é colchão de retalhos que absorve o impacto da nossa falta de intemperança.

Meu silêncio ampara meus dedos sobre as teclas do computador, reduz minha raiva, desacelera minha fúria, perdoa sua insanidade.

Meu silêncio seca as lágrimas de um domingo a tarde qualquer.

Meu silêncio é grito aprisionado no peito.

Meu silêncio é mais impetuoso que sua cólera.

Meu silêncio é fingimento para viver tão perto de você.

Meu silêncio não é abandono, é refúgio.

Jânio Dias