sábado, 28 de março de 2009

A Retina e o Arco-Íris

imagem: Landscape with a rainbow, de Joseph Mallord William Turner


“Wake, from your sleep
the drying of your tears
today we escape
we escape”

Radiohead, em Exit Music (For a Film)


Tento buscar uma lembrança específica e nítida no fundo da memória. Uma imagem antiga e especial que não esteja dobrada em várias partes como papel de carta guardada no fundo de uma caixa. Um pedaço de filme em preto e branco que não esteja recortado exatamente no momento em que meus olhos pousem voo no descanso de sua película.

Tento buscar uma continuidade de movimentos que não tropecem nos atalhos da pressa. Um copo de água que resgate a sede na retina turva do passado.

Olho fixamente para dentro de mim mesmo. Olho como se fosse possível viajar por entre as veias sem derrapar em tantos obstáculos coagulados. Pulo pequenas pedras, desvio de finas bolhas vermelhas. Apresso o passo, caminho velozmente pela corrente sanguínea com braços rasos e pernas longas. Sinto meus olhos esbugalhados como duas bolas de gude espetadas e penduradas à frente do nariz. Minha língua morde os dentes, meus pulmões absorvem e não devolvem o ar, meus ouvidos trancam as batidas aceleradas do coração. Escureço para clarear em outro momento da existência.

Acabo de voltar no tempo. Estou de volta à primeira vez em que presenciei o show musical mais importante da minha vida.

Estou bem próximo ao palco, não mais do que quatro fileiras para alcançar a grade, o lugar onde as pessoas desafiam a lei da permanência de dois corpos no mesmo espaço. Há ensaios curtos e já empolgados de canções antes da banda entrar. Há também pessoas muito jovens fumando e rabiscando gestos fúteis com o cigarro nas mãos. Perdem parte da beleza da brisa branda e fresca que vem do acampado verde lá fora. Perdem a ansiedade do olhar de quem vai ver seu grupo preferido pela primeira vez, desperdiçam a chance de absorver os comentários inteligentes de quem já viveu aquilo antes. Diluem em fumaça cancerígena o momento mágico da materialização da esperança.

As luzes vão diminuindo lenta e sensivelmente. Gritos de expectativa de que já vai começar explodem no lugar inteiro. Uma música clássica começa estridentemente alta anunciando que algo mágico esta prestes a acontecer. Vejo a fumaça amaldiçoada há poucos instantes do meu lado fazendo contornos em volta do microfone lá no alto do palco. Ela dança lentamente no ar como se desenhasse contornos em volta da canção. É possível notar ainda sem luzes que todos da banda já estão posicionados. A música clássica termina. O público grita em delírio. Começa a primeira canção de uma série de hinos que seriam desalojados de seus abrigos.

É uma música lenta e curta onde todos declamam juntos em português arcaico do século XIII. A falta de confiança no amor daquele tempo é despida pelas vozes presentes. As luzes permanecem apagadas. Inicia-se a segunda canção como se fosse continuação da primeira. É uma música de doze minutos dividida em quatro partes de andamentos diferentes. Uma viagem medieval escrita em metáforas sobre os dias de terror político, doença incurável e ausência de fé presente na época. A parte dois da canção estoura numa espécie de heavy metal exorcista. As luzes explodem no palco e no público. As pessoas pulam de forma alucinada. Há um brilho intransigente que queima a pele como roupas em chamas. Arde adocicando a alma como mar salgado nos olhos abertos. As luzes diminuem em consonância com a canção. Um momento de respiro longo e demorado se aproxima. A descrença e desilusão com aqueles dias são entoados. O inimigo metafórico é desafiado e avisado que ninguém desistirá de lutar. Na quarta parte, antes de terminar, antes de visualizar o fim, as pessoas concluem com suas vozes misturadas e embargadas nos cômodos da emoção que algo melhor ainda virá na morada de suas vidas.

E enquanto na pista as pessoas expressavam viver o indizível, enquanto sentiam o enlevo de bradar suas canções preferidas com os olhos quase sempre fechados nos momentos mais introspectivos, quando abertos deparavam-se com performances quase hipnóticas não ensaiadas, não planejadas de um artista-cantor sobre o palco.

Ele dançava como se um ataque epilético o visitasse em algumas canções. Dançava como se uma descarga disrítmica libertasse seus movimentos no ar. Dançava como se o chão fosse um colchão que amparasse a queda imprevisível da noite. Dançava como se o fio do microfone enrolado ao seu corpo o protegesse da fúria dos dias. Dançava como que desistisse de cantar. Dançava como se insistisse em sentir. Ele dançava como que se entregasse o espírito para a canção.

Ele cantava como se a voz não viesse dele mesmo. Cantava com a facilidade da chuva que cai e penetra a terra. Cantava como se trovejasse e no instante seguinte as nuvens do céu dessem passagem para os raios do sol. Cantava como se fizesse insistentemente geada em seu coração, para logo depois abrir o armário e escolher uma roupa de primavera. Cantava como se o frio fosse belo e cortante, e tratava o quente como momentos que se guardam no bolso do casaco para depois aquecer a manhã da memória. Ele cantava como pássaro triste que guarda esperança no amanhã.

As feições das pessoas exalavam mistos de encantos e assombros, como se a realização de um sonho viesse acompanhado de algum efeito sobrenatural. Os olhos embaçados como pára-brisa de carro em dia de chuva e as vozes encharcadas, pesadas como roupas que foram lavadas, mas ainda molhadas, encontravam naquele momento a maneira de se fazerem aliviadas e percebidas. As pessoas encontravam ali algum sinal da presença da vida delas mesmas.

Desperto de meu transe. Meu coração parece dois tambores socados em intervalos de um segundo. Abro meus olhos com ardência nas pálpebras, vejo dezenas de bolinhas verde limão explodirem ao redor. Há suor em minhas mãos e testa. Há ainda uma nítida sensação de realização presente.

Quase que ainda posso sentir a embriaguez do êxtase daquela apresentação. Quase que posso ouvir os timbres da execução final de cada música. Quase que posso abraçar o coro das vozes em uníssono, quase que posso me queimar com o pranto dos versos cantados durante cada canção. Quase que posso tocar a volúpia de tantos corações. Quase que posso falar com o silêncio lancinante daquela noite.

Isso foi há tanto tempo atrás que parecia que nunca mais iria acontecer de novo. Parecia.

Aconteceu no último 22 de março em São Paulo.

Seu nome: Radiohead.

Jânio Dias

sábado, 21 de março de 2009

Das Coisas que Gosto em Ti

imagem: arquivo pessoal
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“E se por acaso chover,
Quero ver o seu cabelo molhado
Não há nada mais bonito
Do que o seu sorriso
O frio que te faz me abraçar”

Nando Reis, em Vamos Passear de Mãos Dadas
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Gosto do teu abraço pela manhã quando se despedes de meu corpo ainda enrugado na cama. Gosto quando me ligas a cada três horas e perguntas se já comi ou o que estou fazendo. Gosto quando tiras a roupa no quarto para ir tomar banho e antes de chegar ao banheiro passa por mim para que eu beije cada um de seus seios. Gosto quando voltas do banho e pede para que eu sinta seu cheiro. Gosto de abraçar seu corpo ainda nu e refrescante. Gosto quando penteias o cabelo e não o secas. Gosto quando pegas um único travesseiro e deita no sofá, obrigando-me a deitar também. Gosto quando assistimos a filmes que já vi e durmo docemente abraçado a ti. Gosto quando dormes e não percebo. Gosto quando acordas no meio da noite e me leva do sofá para a cama sem eu perceber. Gosto de acordar sem conseguir lembrar como fui parar ali. Gosto da sua insistência para eu beijá-la antes de fechar os olhos para o sonho. Gosto do jeito que me abraças de madrugada quando dobro os joelhos ou ranjo os dentes. Gosto da nossa disputa pela manhã para decidir quem levanta primeiro. Gosto de perder a disputa de quem vai à padaria. Gosto do seu café; acredite, eu gosto. Gosto de insistir em beijá-la com gosto de café na boca. Gosto que não gostes de café. Gosto da nossa falta de planos para o sábado. Gosto de sua impaciência se não proponho nada para fazermos. Gosto quando sugeres para que apenas passeemos de carro ouvindo o Ipod. Gosto que fiques brava quando deleto algo especial do Ipod. Gosto que concordes que o novo deve ter preferência. Gosto que gostes de andar tolamente pela Paulista. Gosto que gostes de caminhar. Gosto quando queimas no parque. Gosto quando lembras de passar protetor solar na minha tatuagem. Gosto do orgulho que tens pela tua tatuagem. Gosto que gostes de levar minha sobrinha para passear. Gosto do jeito que ela gosta de ti. Gosto quando ela te chama de tia gata. Gosto que a incentive a me chamar de tio gato. Gosto quando comes o arroz com feijão da minha mãe. Gosto que não rejeites as frutas colhidas no quintal de trás. Gosto quando carregas minha carteira em sua bolsa. Gosto de levar sua identidade em meu bolso. Gosto que goste de tirar fotos de nossos momentos. Gosto quando insistes em apenas me fotografar. Gosto que não esqueças de levar a máquina fotográfica contigo. Gosto que me lembres de sempre carregar as pilhas. Gosto quando desafias a segurança da casa de espetáculos e registras sem flash o show visitado. Gosto que estejas sempre atenta a agenda cultural. Gosto que na impossibilidade de irmos ao cinema, você chegue em casa com uma cópia do filme desejado comprado na barraquinha. Gosto que prefiras ir ao cinema. Gosto que incentive minha coleção de cópias caseiras. Gosto de suas dicas para minha coleção. Gosto que goste de descobrir novos seriados. Gosto que fiques brava quando assisto Lost sozinho. Gosto que gostes de futebol. Gosto que lembres de levar a bandeira do Palmeiras ao jogo. Gosto quando cantas junto com a minha torcida. Gosto quando xingas o juiz. Gosto que torças por outro time. Gosto que aprecie uma renomada livraria. Gosto que não se importes com o empoeirado sebo. Gosto que não se aborreça quando não encontro vaga no estacionamento. Gosto que gostes que eu dirija o seu carro. Gosto que não gostes de passear em shopping. Gosto que não gostes de fazer compras de natal. Gosto de sua preocupação ao escolher presentes de natal. Gosto do almoço de natal da sua mãe. Gosto da sua mãe. Gosto de sua irmã e irmãos. Gosto de sua cunhada e sobrinhas. Ainda não gosto do gato querendo brincar de me arranhar. Gosto quando cozinhas e eu lavo a louça. Gosto das suas várias receitas de omelete. Gosto de comer com você. Gosto quando cozinhas para meus amigos, e eu não lavo a louça. Gosto que me deixes preparar o suco. Gosto que gostes dos meus amigos. Gosto que não impliques com a reunião só dos meninos. Gosto que fiques ausente. Gosto de sentir saudades de ti. Gosto quando andas nua pela casa com as mãos cobrindo os seios. Gosto quando apagas as luzes da casa e deixa acesa apenas a do quarto. Gosto do gesto imóvel na cama só de calcinha me convidando para deitar. Gosto de deitar contigo. Gosto de dormir contigo. Gosto do cheiro de seu cabelo. Gosto do branco do seu corpo. Gosto de contar as suas sardas. Gosto de sussurrar coisas absurdas no seu ouvido. Gosto de beijar suas mãos pequeninas. Gosto de morder os dedos dos seus pés. Gosto das interrogações do teu olhar. Gosto do gosto do teu gosto. Gosto que gostes do nosso amor.

Jânio Dias

sábado, 14 de março de 2009

Entre o Sono e o Sonho

imagem: Wind, de Vladimir Kush

“If I never see you again
you will stay in my mind

We've only got a lifetime”

Teenage Fanclub, em If I Never See You Again


Nunca lembro dos detalhes dos meus sonhos. Quando acordo, sempre tento me agarrar aos fragmentos que ainda sobrevoam a neblina da memória. Quase sempre escorrego sem firmar as mãos nos galhos da lembrança.

Ontem despertei de um sonho confuso, onde velhos amigos que nunca se conheceram esperavam juntos por mim no quintal de uma grande casa, sentados nos capôs de seus carros. Carros antigos como Fuscas e Opalas. Acho que o quintal era maior que a casa, e eu morava nela. Curioso é que uma velha amiga também morava lá, mas não morávamos juntos. Era como se eu passasse as noites naqueles cômodos grandes, e ela vivesse os dias. Ela até tinha um namorado, mais jovem do que eu poderia imaginar, onde eu ainda não o conhecia e um sentimento inquieto exalava do aperto de nossas mãos. Não sei bem o porquê, mas o ar daquele sono lembrava um misto de rivalidade com receio de perda.

Acordei incomodado como se o corpo tivesse acabado de sair contundido de uma partida de futebol. A sensação era de cansaço e preocupação. O que significava aqueles antigos amigos que não se conheciam esperando por mim? E a amiga, que há tanto tempo não a vejo, por que estava ali?

Os únicos elementos de ligação entre eles eram a distância e o silêncio escolhidos por nós mesmos, pensei ainda deitado.

Partes das figurinhas repetidas que trocamos sem nunca completar o álbum.

Levantei veloz como o furor de cães ao avistar estranhos no portão. Liguei o chuveiro e enquanto sentia a tentativa da água em aliviar a impressão mal formada do conjunto de imagens distorcidas daquela manhã, senti uma súbita vontade de procurar as pessoas que estavam naquele sonho. Senti vontade de reuni-los e colá-los um ao lado do outro, como fotos 3x4 de um álbum antigo e questioná-los sobre suas casas, carros, cachorros e camas. Como dormem e como sonham.

Talvez eu lhes dissesse que quando deito quero apenas soltar o peso do corpo sobre a cama arrumada e macia, sentir os braços largados e as pernas esticadas sobre o colchão. Que esparramo o rosto sobre o travesseiro e cheiro a lavanda do lençol que secou no vento. Que às vezes ocupo todo o espaço da cama deitando em diagonal. Outras vezes coloco um travesseiro entre as pernas e com o outro cubro a cabeça.

Que quando deito e fecho os olhos quero repassar o melhor do dia sob os relâmpagos da retina e saborear lentamente cada doce detalhe da fogueira que é sobreviver a cada novo amanhecer.

Que quando durmo minha esperança é que meu espírito encontre a leveza da noite e vaguei pelo espaço renovando a confiança no abrir dos olhos.

Que quando sonho um sonho bom, minha vontade é não largá-lo pelo caminho incerto da indefinição. Quero sua continuação ininterrupta e a nitidez objetiva de suas mensagens.

Que quando tenho um sonho ruim, desejo acordar imediatamente para ter certeza de que era apenas sonho.

Que quando deito, fecho os olhos e durmo, sempre desejo revisitar em sonho as boas horas que tivemos juntos.

Que quando acordo, sempre desejo dormir um pouco mais.

Senti vontade de juntá-los como álbum de figurinhas que faz todo o sentido por estar sempre incompleto; não como sonho que nunca se completa.

Pensando bem, talvez essas pessoas sejam espaços em branco de algum álbum da minha vida.

Jânio Dias

sábado, 7 de março de 2009

Sim Sobre o Amor

imagem: cena da impressionante peça "Não Sobre o Amor", de Felipe Hirsch


“Drinking tea with the taste of the Thames
Sullenly on a chair on the pavement
Here you'll find
My thoughts and I
And here is the very last plea from my heart
My heart
Forevermore”

Morrissey, em Come Back To Camden


Se antes só, agora nem sei o que sentir.

Como explicar a você que quando lhe escrevo não são apenas meras palavras ao acaso que formam o desejo de querer estar ao seu lado? Como faço para que entendas que ao relatar a dor que me causa nossa distância, estou pedindo para que algum deus promova o milagre da aproximação de nossas moradas? Como posso mostrar-lhe que o exílio de seus olhos é como o nascimento de uma noite eterna sem amanhecer?

Estou proibido de falar sobre ele. Ela me proibiu. Não, ela não me pediu. Obrigou-me a não mais mencioná-lo em minhas linhas enviadas a ela. Ela só me recebe se eu não levá-lo comigo. Ela só me aceita se eu me desfaço dele. Ela só me rasga se eu não enviá-lo junto. Ela só me toca com seus dedos finos e alvos se eu não estiver vestido dele. Eu só posso estar com ela se ele não estiver mais comigo.

Mas sem ele sou vazio que enche o copo de ar que cega as lâminas da esperança.

Sem ele sou sede que arde as vias da garganta, que escurece o sol da boca e enrijece os lábios da doçura.

Sem ele sou água esparramada na terra que seca antes de ser bebida. Chuva que escorre deitada sem olhar de onde veio. Gota que não pesa para cair de sua folha.

Sem ele sou pingos que não se juntam.

Antes dele, antes que tomasse consciência de sua plenitude, de sua perfeição quanto ao estado de todas as coisas que nos cercam e nos dão forma, eu simplesmente não existia para mim mesmo. Eu não existia em mim, meus dedos e braços não tinham movimentos, meus joelhos não dobravam em minhas pernas, minha boca bocejava o sono da indiferença. Meu corpo não era matéria, minha alma não tinha intenções, minha índole era dispersa.

Antes dele as estrelas ainda não sorriam para mim.

Com ele sou parte de tudo que se move e agi. Interajo com os pássaros, dou comida aos gafanhotos, canto para os cisnes.

Com ele preencho as casas dos botões, pinto as unhas das luvas, laço com o cadarço ramos de sol.

Com ele acende-se em mim a chama que me desperta para o dia antes dos montes serem iluminados; que aquece o inverno de quando era criança; que incendeia a noite enquanto as sombras não vêm.

Com ele tenho alicerce para suportar arranhacéus em meus ombros.

Com ele sou vida e sonhos perto de você.

Você precisa entender que todas as palavras são sobre ele.

Todas as metáforas remetem a ele. Todos os adjetivos querem vesti-lo. Todos os espaços almejam cair em seu abismo. Todos os acentos anseiam sua ênfase. Todos os pontos esperam por sua continuação.

Todas as ruas se cruzam para segui-lo. Todas as curvas enrolam-se para deslizar em sua superfície. Todos os faróis noturnos querem suspendê-lo para vê-lo flutuar como pétalas levadas pelo vento e espalhadas no mar.

De dia os faróis descansam a amargura de desejos como o seu.

Todo choro e todo gozo são frutos e semente de seu domínio. Todo riso e todo calafrio são rompantes de seu surgimento. Toda angústia e toda calmaria são opostos que se alimentam de seus efeitos.

Toda loucura profunda é zelo com o objeto amado. Toda devoção é necessidade de amparo.

Ele é maior que sua recusa em me amar.

O que você não vê é que todas as saídas são fugas para encontrá-lo.

Jânio Dias