quarta-feira, 24 de junho de 2009

Maria Elisa

imagem: Agatha Katzensprung


“Half of what I say is meaningless
But I say it just to reach you,
Julia”

The Beatles, em Julia

II

Era uma tarde de sábado de fim de inverno. As flores dos pés de ipê enfeitavam o caminho. Pisávamos sobre o meio fio da calçada com sapatos atentos para desviarmos das cores ora amarela, ora roxa e branca que embelezavam o chão. A temperatura caia devagar como nossos passos a caminhar até a estação do metrô.

Meu amigo Lucio e eu íamos recepcionar algumas pessoas do fã clube “Metal Contra as Nuvens” da Legião Urbana em retribuição a festa que havíamos visitado como convidados especiais. Nada podia ser mais pueril do que um intercâmbio de fã clubes da mesma banda. Uma década antes e um encontro assim seria um ato político. Em nossas cabeças política era debater sentimentos em letras de canções.

Contornamos a última curva em direção ao metrô, paro por meio segundo e recolho uma flor caída sobre o asfalto, olho para a entrada da estação e penso se ela também estaria entre os convidados daquela tarde.

Avistamos o grupo pelas estampas inconfundíveis das camisetas. Apesar do vento frio que percorria o interior da estação, os agasalhos ficavam abertos para exposição de um tipo raro de orgulho que carregávamos no peito.

Eles também nos reconhecem e se aproximam. Um grupo de cinco pessoas e apenas uma menina. Repasso com pressa as cortesias masculinas. Ignoro os rostos com qualquer sinal de pêlos. Só tenho olhos para a moça que protegia as mãos nos bolsos do casaco jeans não abotoado. Um sorriso gentil de que eu já te conheço é lançado. Largo os olhos no movimento ligeiro de seu corpo em minha direção, e com apenas uma das mãos, apóia meu rosto contra suas bochechas rosadas.

Era ela, a menina da bandeira, agora como visitante. Rapidamente aprendo seu nome. Tudo fica mais fácil quando se conhece a palavra que se designa uma pessoa.

- Oi!; desculpe a mão gelada, é onde costumo sentir mais frio. Diz retornando os dedos para o bolso do casaco e encolhendo o queixo.

- Não se preocupe, o apartamento é aqui perto. Logo você se sentirá melhor. Apesar de que lá faz muito frio também, talvez você precise de mais uma blusa.

- Talvez eu aceite um par de luvas! Replica mordendo o lábio inferior, inclinando a cabeça levemente sobre o ombro esquerdo.

O vento da estação rente aos meus cílios é um silêncio revelador. Ao contrario das mãos dela, as minhas suam. Se ela precisa de mais agasalho, eu posso doar o meu. Diferente do combinado, sinto vontade de mandar todos embora: seus amigos, meu amigo e todas as outras pessoas que nos esperavam no apartamento. Queria aquela tarde para saber bem mais do que apenas seu nome. Queria bem mais do que dividir nossa experiência de shows. Queria bem mais do que a narrativa de algumas histórias. Queria lhe oferecer minha boca para aquecer seu corpo.

Eu quase que podia vê-la entrando sozinha no quarto e abrindo a segunda gaveta da direita, debaixo para cima do guarda roupas e escolhendo um par de meias. Quase que podia imaginá-la saindo do banheiro só de toalha e andando descalça pela sala para depois me pedir para aquecer seus pés. Quase que podia sentir a fragrância da paixão percorrer os braços dos meus óculos. Quase que ainda posso tocá-la só de pronunciar seu nome.

Maria Elisa. Nunca mais esqueci esse lindo nome.

Maria Elisa. Cabelos negros ondulados em contraste com a pele branca, lisa qual cerâmica a escorregar. Olhos de amêndoas descascadas, lânguidos e repuxados como a provocar um mistério entre o norte e o oriente. Lábios lascivos de exclamações invertidas a duvidar de sentidos e intenções. O grande prazer dos sentidos é não exigir razão.

Lembro agora que naquela tarde eu não tinha luvas para te emprestar, mas levaste minha blusa de lã e uma flor roxa contigo.

Agora sei por que sempre olho com carinho para todo pé de ipê que amanhece desagasalhado para minhas retinas.

Jânio Dias

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Menina da Bandeira

imagem: Agatha Katzensprung


“In the moonlight
you'll dance 'til you fall,
and always be here in my heart”

Travis, em Follow The Light


I

Da primeira vez que a vi, ela estava em uma festa, ou melhor, em uma celebração. Celebração da alegria juvenil revestida de amizade.

Amizade adolescente, docemente ingênua e irresponsável. Ela estava lá, docemente responsável.

- A bandeira do Brasil é sagrada, não faz isso menino. Ele não fez; acho que mesmo sem saber o que fazia.

Lá estava ela, entre a seriedade e o clima feliz da festa. Olhou em minha direção como quem percebe algo diferente na sala de casa. Para minha própria surpresa, joguei-lhe um afoito sorriso. Tendo certeza de que era com ela, desviou o rosto vermelho de inverno, para em frações de segundos que se sente na aceleração do coração, devolver-me um semblante protegido e altivo.

Algum amigo seu acena e nossos olhos se desviam.

O volume do som aumenta como convite para que as pessoas parem de conversar.

Sentindo-me alheio entre tantas pessoas desconhecidas, limitei-me a ficar por perto, algo como um discreto estranho a observá-la. Contente, ela dançava e cantava celebrando. Aproximei-me um pouco mais, e lhe joguei outro sorriso, mas ela continuou dançando e cantando.

Não me movi e fiquei quase uma canção inteira respirando seus movimentos. Como se eu fosse puxado por uma das mãos, passei a cantar e dançar também. Os braços balançavam desajeitados, os pés quase que se desprendiam do chão, a letra da musica guiada por tantas vozes era quase uma oração, e tantas outras bocas em volta complementavam um suposto balé de expressões faciais.

O volume diminui, o vinil parece estar sendo trocado.

Um amigo meu acena e nossos olhos se encontram.

Alguém nos apresenta, não presto atenção ao seu nome. Falamos rápido, atropelando uma seqüência óbvia de apresentações. Substituímos o “onde você mora” por brevidades sobre a última música, a música preferida, a próxima canção. Nossos lábios brilham os batimentos de nossos ouvidos.

Um silêncio repentino de olhares se faz e comento sobre a bandeira.

- Você viu, o menino parecia querer cheirar as estrelas do cruzeiro do sul. Fala com as sobrancelhas irritadas.

Mais rápida do que eu poderia raciocinar, me faz um convite: - “Entra para o nosso fã clube”. Fico desconcertado. Lisonjeado. Não entrarei; pertenço a um outro grupo de Amigos. A imagem congela.

Um grupo de pessoas a tira de perto, outras falam comigo. Tudo bem, tenho que aceitar, estava ali para conhecer o pessoal daquele outro fã clube da Legião. O que se deseja não demora a acontecer, havia lido em algum livro do suposto talento da literatura contemporânea nacional. Nossos olhos se encontrarão em outro momento.

A noite passa veloz. A aurora do galo roseia o céu. É hora de ir embora.

Momento de despedidas. Apertos de mãos, abraços, sorrisos suspensos sob uma lua que já se despediu.

- Até outro dia. Ouço ao longe. Retorno o corpo, giro rápido o olhar. Lá está ela, imóvel. Congelo outra vez a imagem.

– Venha mais vezes, volte quando quiser.

Mal a vejo dos degraus de onde avisto uma mão a desenhar um tchau em retirada. Retribuo com um aceno seco, um sorriso pálido e lento, sem certeza dos passos que preciso dar para ultrapassar a linha do portão.

A festa acabou. A rua é uma língua longa e fria que clareia devagar, mas não junta pedras espalhadas.

Vou embora, sem saber seu nome.

Jânio Dias

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Veja Essa Canção

imagem: arquivo pessoal


“Se um dia fores embora
Te amarei bem mais do que esta hora”

Legião Urbana, em Música Ambiente


Se acaso acontecer de não mais vê-la, saiba que ainda estarás comigo.

Mesmo que eu passe caminhando em frente a sua casa, olhe para sua janela, torça para que seus olhos percebam o balanço de meu cabelo dançando com o vento, saiba que minha vontade de entrar ficou suspensa no número do seu endereço. Minha vontade de entrar é a segurança de que você é feliz quando sai e quando volta para casa.

Mesmo que eu não mais te leve à nova mostra de cinema, à próxima bienal do livro ou à exposição dos dinossauros, saiba que a descoberta do novo é tão importante quanto o aroma das uvas envelhecidas. O equilíbrio entre o sabor do passado já conhecido e a observação de perto do que vem depois é a inovação do presente. Mesmo que não seja eu a sua companhia, as digitais de seus dedos ainda estarão dentro de meus bolsos.

Mesmo que eu não mais te escreva, mesmo que você não mais me leia em lugar algum, saiba que os sons das suas vogais sempre influenciarão a entonação da minha leitura em todo poema.

Mesmo que eu não mais revise o carro e encha o tanque para descermos a serra com a leviana intenção de molharmos os pés e marcarmos nossos passos na areia para em seguida voltarmos, saiba que toda onda que se aproxima de minha sandália é um dilúvio que não altera ou apaga nossas pegadas.

Mesmo que eu não mais lhe envie flores em seu aniversário e não mais me desculpe pela confusão que sempre faço com datas, saiba que todo lírio e todo amor-perfeito sempre exalam a sua presença; e que todo pequeno cartão em branco é um complexo desafio de ser preenchido sem que você comece a primeira frase.

Mesmo que você não mais me avise de suas viagens ou comente após a volta das belezas que descobriu, saiba que quando viajo cada par de meias é escolhido imaginando a sua aprovação. Os colarinhos de meus casacos só acomodam o nó do cachecol que você me ensinou a fazer.

Mesmo que eu não mais use em meus dedos o anel com seu nome impresso no lado de dentro, saiba que este que uso hoje e vive passeando entre o polegar, o indicador e o dedo do meio de ambas as mãos, tem o desenho de uma lua e uma estrela (eu sou a lua); e que antes deles já existia o meu amor, e que depois permaneceu.

Mesmo que eu não mais lhe pergunte sobre seus pais, saiba que carrego diariamente comigo um ramo de estima e afeto.

Mesmo que eu não mais contorne as cores dos seus dias, saiba que cada lápis de cor daquele estojo que me destes é uma alma viva sobre o relevo de minha pele.

Mesmo que nossas vozes não mais conflitem os gritos dos apaixonados, a lembrança de sua língua ainda silenciará os relâmpagos externos.

Mesmo que nossa fúria não mais alimente a intensidade de nossos lábios ao se chocarem, a insônia de nossas noites adormecerá o horizonte do meu corpo.

E se amanhã eu não mais tiver seu beijo antes de me encontrar com o sono, se eu não mais sentir meus joelhos dobrados em suas costas, se eu não mais entrelaçar meus braços por entre seus seios, se eu não mais me perder entre os fios dos seus cabelos, se eu não mais tiver que reclamar que meus pés estão para fora da coberta, ou que os travesseiros estão trocados, saiba que ainda assim você permanecerá comigo.

E se acaso acontecer de não mais senti-la em mim, saiba que ainda assim, eu te amarei.

Jânio Dias