imagem: Where Angels Dance, 2005 by Lee Campbell
Eu levanto pela manhã sem acordar, sem abrir os olhos, com vontade de encurvar a coluna outra vez e bater o rosto contra o travesseiro. Eu levanto com o cobertor sobre a face para imaginar que ainda é madrugada, para que eu não me encontre com o relógio, não ache os chinelos e sinta a cama me pedindo para voltar. Eu levanto sem pijama para que ela tenha dó de mim e me peça para manter a porta do quarto trancada. Eu durmo de costas para a janela para estreitar a amizade com o lado de lá da cama. Eu levanto pela manhã de olhos fechados pedindo para que o sol espere um pouco mais para me dar bom dia.
Eu bebo café antes de escovar os dentes para mastigar a noite anterior com manteiga. Eu como a noite de ontem para saber que não a perdi dormindo. Eu a levo comigo quando saio de casa para o trabalho na incerteza de que irei encontrá-la na hora de voltar.
Eu caminho até o metrô me despedindo do canteiro de flores e da obra do funileiro Alemão no carro vermelho. Digo olá emitindo som de adeus com o balançar do cabelo ainda molhado. Mudo para o outro lado da rua passando entre os carros enfileirados e pensando como seria o nome verdadeiro do Alemão. Nunca nos falamos, sempre nos despedimos.
Eu entro no metrô disputando lugar na janelinha. Minha vitória é a segurança do cotovelo apoiando o rosto junto ao vidro que ignora a vida que passa do outro lado sem fazer reflexo. Meu conforto é fechar os olhos para dormir na ignorância e acordar aliviado perto do trabalho. Em dias de sorte eu sigo acordado reparando na beleza controversa das pessoas.
Eu chego ao trabalho com a missão de sobreviver. Os papéis em cima da mesa parecem que fingem estar descansando para me atacar depois. Os e-mails em vermelho significam que a leitura é obrigatória e indispensável. A melodia de dois acordes do telefone que toca é sinal de questionamento sem opção de consulta. A voz feminina que ecoa da sala de vidro não é a da minha menina branca com sardas. O mar não é para peixe e sim para tubarões. O encontro na máquina de café é comercial no jogo da TV enquanto a bola não é reposta em campo. Os amigos da hora do almoço nunca jantaram em casa. Nossas confidências são sobre o desejo involuntário de comer a recepcionista. Na hora de ir embora o corpo vai e a mente parece que ainda está lá, desconfiando do ataque secreto dos papéis. O local de trabalho é o melhor lugar para não existir.
Eu volto para casa com as chaves presas ao peito. Elas preparam meus pulmões para outras vontades. Facilitam minhas mãos para outras palmas. Iniciam meus passos em outras definições.
Eu chego em casa rasgando a folha da porta para nascer uma nova. A folha da porta desenha e separa a brevidade do dia. Pela manhã é obrigação com dever, no retorno é possibilidade de imaginação.
Eu entro em casa sapateando o teto dos sinos. Oponho-me ao silêncio linear e temperamental da geladeira, quero a agressão da água caindo sobre a louça na pia, a transfiguração do calor e da luz da chama do fogão.
Eu mergulho contra o chuveiro para diminuir a força e a tensão, para moderar a culpa e perverter os pecados, suavizar o retorno e preparar o corpo para o dia seguinte.
Eu me espalho pela sala como música que invade a cozinha da casa ao lado. Eu me largo no sofá como livro esquecido com páginas abertas. Eu me esqueço na sala como disco dentro do aparelho. Eu me encontro nos cômodos de casa.
Eu me acalmo em casa como a almofada que dorme serena sobre o tapete.
Estar em casa é não ter o corpo em casa. Estar em casa é ter o coração mais perto da poesia.
Jânio Dias
“E quando chega o fim do dia
Eu só penso em descansar
E voltar prá casa, pros teus braços
Quem sabe esquecer um pouco
Do pouco que não temos
Quem sabe esquecer um pouco
De tudo que não sabemos”
Legião Urbana, em Música de Trabalho
Eu só penso em descansar
E voltar prá casa, pros teus braços
Quem sabe esquecer um pouco
Do pouco que não temos
Quem sabe esquecer um pouco
De tudo que não sabemos”
Legião Urbana, em Música de Trabalho
Eu levanto pela manhã sem acordar, sem abrir os olhos, com vontade de encurvar a coluna outra vez e bater o rosto contra o travesseiro. Eu levanto com o cobertor sobre a face para imaginar que ainda é madrugada, para que eu não me encontre com o relógio, não ache os chinelos e sinta a cama me pedindo para voltar. Eu levanto sem pijama para que ela tenha dó de mim e me peça para manter a porta do quarto trancada. Eu durmo de costas para a janela para estreitar a amizade com o lado de lá da cama. Eu levanto pela manhã de olhos fechados pedindo para que o sol espere um pouco mais para me dar bom dia.
Eu bebo café antes de escovar os dentes para mastigar a noite anterior com manteiga. Eu como a noite de ontem para saber que não a perdi dormindo. Eu a levo comigo quando saio de casa para o trabalho na incerteza de que irei encontrá-la na hora de voltar.
Eu caminho até o metrô me despedindo do canteiro de flores e da obra do funileiro Alemão no carro vermelho. Digo olá emitindo som de adeus com o balançar do cabelo ainda molhado. Mudo para o outro lado da rua passando entre os carros enfileirados e pensando como seria o nome verdadeiro do Alemão. Nunca nos falamos, sempre nos despedimos.
Eu entro no metrô disputando lugar na janelinha. Minha vitória é a segurança do cotovelo apoiando o rosto junto ao vidro que ignora a vida que passa do outro lado sem fazer reflexo. Meu conforto é fechar os olhos para dormir na ignorância e acordar aliviado perto do trabalho. Em dias de sorte eu sigo acordado reparando na beleza controversa das pessoas.
Eu chego ao trabalho com a missão de sobreviver. Os papéis em cima da mesa parecem que fingem estar descansando para me atacar depois. Os e-mails em vermelho significam que a leitura é obrigatória e indispensável. A melodia de dois acordes do telefone que toca é sinal de questionamento sem opção de consulta. A voz feminina que ecoa da sala de vidro não é a da minha menina branca com sardas. O mar não é para peixe e sim para tubarões. O encontro na máquina de café é comercial no jogo da TV enquanto a bola não é reposta em campo. Os amigos da hora do almoço nunca jantaram em casa. Nossas confidências são sobre o desejo involuntário de comer a recepcionista. Na hora de ir embora o corpo vai e a mente parece que ainda está lá, desconfiando do ataque secreto dos papéis. O local de trabalho é o melhor lugar para não existir.
Eu volto para casa com as chaves presas ao peito. Elas preparam meus pulmões para outras vontades. Facilitam minhas mãos para outras palmas. Iniciam meus passos em outras definições.
Eu chego em casa rasgando a folha da porta para nascer uma nova. A folha da porta desenha e separa a brevidade do dia. Pela manhã é obrigação com dever, no retorno é possibilidade de imaginação.
Eu entro em casa sapateando o teto dos sinos. Oponho-me ao silêncio linear e temperamental da geladeira, quero a agressão da água caindo sobre a louça na pia, a transfiguração do calor e da luz da chama do fogão.
Eu mergulho contra o chuveiro para diminuir a força e a tensão, para moderar a culpa e perverter os pecados, suavizar o retorno e preparar o corpo para o dia seguinte.
Eu me espalho pela sala como música que invade a cozinha da casa ao lado. Eu me largo no sofá como livro esquecido com páginas abertas. Eu me esqueço na sala como disco dentro do aparelho. Eu me encontro nos cômodos de casa.
Eu me acalmo em casa como a almofada que dorme serena sobre o tapete.
Estar em casa é não ter o corpo em casa. Estar em casa é ter o coração mais perto da poesia.
Jânio Dias