domingo, 30 de setembro de 2007

Universo Paralelo

(para o amigo Marcelo)

imagem: Miró, El Carnaval de Arlequim


“Hoje é terça-feira
e todos meus amigos voam
com olhos de anis
com asas de fogo
e meus olhos cheios
de mágoa então”

Vanguart, em Semáforo


Já passou. Guardo um ramo de lembranças na parte esquerda do peito. Folhas suspensas no asfalto frio da memória. Grãos de areia que formam o deserto molhado da retina. O que vivi de belo preservo com o cuidado da mão leve sobre o cristal. O que vivi de belo preserva o melhor de mim no tempo.

Levo minha vida celebrando o passado e fazendo atualizações do presente. Não preciso citar na construção ligeira de um perfil o quanto já gostei de RPM ou li as letras de Guilherme Isnard como poesias. Quantas vezes me deparei sozinho em um show do Capital Inicial cantando desesperada e insanamente canções como Veraneio Vascaína ou Fátima. Não preciso contar que música em inglês para mim eram apenas Smiths ou U2 e variantes, ou quase nunca música em inglês, porque eu precisava saber exatamente o que estava sendo dito; hoje quero ter noção apenas do que sinto. Aliás, “só ouço o que me toca”. Não preciso citar minhas canções favoritas da Legião Urbana como as mais importantes da minha vida. Só preciso saber que as vivi intensamente, como quem visitou por raras vezes o parque num domingo de sol ao lado dos pais. Hoje vou ao parque ao lado de outras pessoas não menos importantes.

A minha primeira namorada foi tão importante quanto a última. Tão necessária para o que sou hoje como a professora Heliete da 4ª série. Tão fundamental para os meus dentes quanto o bochecho com flúor antes das aulas. Tão essencial para os bailinhos do ginásio quanto a prima que passou férias em casa e me beijou na boca aos 12. Eu recordo isso como um brilho eterno de uma mente com lembranças.

No universo da música construo relações de amor com o que considero que há de melhor. Minha opinião é individual e não quer fomentar verdade a quem quer que seja; muito menos fazer pose para chamar atenção. Pose é para quem não entende o movimento do próprio corpo. Passei há muito da fase de procurar a menina ideal pelos discos que ela tem em casa, hoje acredito que nossos discos precisam combinar em 25% ao menos. Não sou eu que estou menos seletivo, meu gosto restrito é que é abrangente. Uma frase emblemática como “só o rock é sobre amor” pode parecer discriminatória, mas no fundo representa apenas um elemento pessoal que alimenta e faz suscitar a paixão pela música. Considero meus gostos atuais como evoluções daquilo que conheci. Aquilo que vivi me preparou para aceitar o novo.

Não sou eu que vivo em um universo paralelo, é você querido e velho amigo, que não se dispõem a acompanhar o que nasceu e nasce após a nossa rica e perene geração coca-cola. E não me venha com a cega e ignorante resposta de que o que é produzido hoje não presta ou é tudo lixo. O entulho é formado pelo que nossos olhos não acessam e pelo que nossos ouvidos não permitem a visita. Ouvir rock da geração 00 é doar sabedoria em troca de energia e jovialidade. É como sentir o frescor do corpo de uma menina.

Algumas bandas e canções serão para sempre únicas, como únicos e eternos são alguns amores. E dentre eles, velho e querido amigo, o nosso.


Jânio Dias

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Brilho Eterno

imagem: retrato de Mademoiselle Alice Guerin, de Paul Cesar Helleu.


“- Veja você, onde é que o barco foi desaguar
- A gente só queria o amor...
- Deus parece às vezes se esquecer...”

Los Hermanos, em
Conversa de Botas Batidas


“Amor eu sinto a sua falta
E a falta é a morte da esperança”

Nando Reis, em
Por Onde Andei


Ela confessa: "sinto sua falta, mas estava chateada".

E ela mal sabe como eu me sinto. Como me faz sentir. Como meus dias escureceram sem que o sol se pôr-se. Como a lua invadiu minha retina como se tomasse minha visão para si num eclipse. Como a garoa que cai sobre a estrada que passa próxima à sua casa parece uma tempestade para atravessá-la. Ela mal sabe o quanto me faz falta.

Como faz falta seu sofá salmão desfiado pelas gatas, suas gatas brincando de adagas voadoras pelo apartamento, seus nomes perfeitos de filhas que não teremos, as brincadeiras de provocar até sangrar os arranhões e seus carinhos para suavizar o ardor provocado pelo fim da folia.

Como faz falta ficar em pé em frente à sua janela olhando para o vazio da linha de trem que divide o bairro. A luz cor amarelo-avermelhada que invade a sala quando o dia se vai. As luzes das casas e dos carros enfeitando ao longe a paisagem como lâmpadas em árvores de natal.

Como faz falta o entusiasmo e serenidade que produzia em mim ao tentar lhe mostrar uma banda nova para logo em seguida ouvirmos a mesma velha canção. Como faz falta saber que depois de algum tempo ela descobriria aquela banda e não ouviria outra coisa por semanas, que faria suas viagens de ônibus ouvindo a nossa invisível trilha.

Como faz falta não termos realizado o sonho de morar perto para ir ao parque ou ao mercado juntos, fazer ioga ou tarô, jogar sinuca ou palitinho, assistir dvd’s ou copiá-los, ir à exposição dos dinossauros ou à feira de ciências da 4ª série B, ensiná-la a beber cerveja ou descobrir por quem pintou os cabelos.

Como faz falta nossas conversas que começavam no silêncio dos toques dos dedos sobre as mãos, que se estendiam sem rumo ou sentido pelo mistério de não saber como voltar; como faz falta nossas conversas que se afugentavam no encontro do olhar que nos avisava do perigo de não tentar.

Como faz falta seus cabelos vermelhos esvoaçados como o da foto do deserto de sal, sua pele branca como de renda que ainda formam desenhos no meu olhar de refém, o gosto do algodão cítrico de sua boca que ainda permeia minha memória, o sorriso que encanta no olhar da menina que conheci virgem e já vislumbrava mulher.

Como faz falta ficarmos sozinhos relembrando os dias que não ficamos juntos, como éramos íntimos sem sermos amantes, como éramos amigos sentindo desejos mútuos, como dividíamos o colchão como quem reparte um prato de comida para dois.

Como faz falta lembrar do gosto de nunca tê-la tocado.

Como faz falta esquecer como é amá-la sem estar presente.

Como é difícil sentir a ausência de viver tão perto.


Jânio Dias

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Um Blog para...

Imagem: por mim mesmo, dezembro de 1997.
kkkkkkkkkkkk
kkkkkkkkkkkk
“But each night, I bury my love around you...
Oh each night, I bury my love around you...
You're linked to my innocence”

Interpol, em Say Hello To The Angels


Um blog para... chegar em casa mais cedo, para sair do trabalho mais cedo, para ler mais em casa, para escrever mais em qualquer lugar; para ficar com o olhar parado e perdido no vazio do trabalho e do metrô enquanto volto para casa; para celebrar o amigo, pensar na amiga, para fazer novos amigos; para me preocupar com epígrafes que adornam e complementam o texto escrito, ou que apenas eu saberei o porquê; para entrar em contato com o mundo fantástico das imagens, e visitar sem querer obras e museus sem ter que passar por filas de aeroportos; para abrir um dicionário de sinônimos e visitar o aurélio, para procurar em alguma gaveta aquela relação impressa com o uso dos “porquês”; para contar as memórias da infância como a criança que está brincando de imaginação; para continuar alimentando os sonhos da adolescência como quem alimenta a ilusão que seu time será campeão na próxima estação; para não confiar no poeta que disse que escrever dói, a dor é descobrir que não será lido; para o meu amigo poeta sentir vontade e necessidade de escrever, para que eu possa reproduzi-lo aqui também; para dissimular a tímidez, ludibriar a solidão e disfarçar a loucura; suprir o esquecimento, desvendar a ausência, estimular minha incoerência; para expandir o que há de bom em mim, para expelir o que há de mau em mim; para uma amiga com tempo livre pensar na possibilidade de ter o seu blog, para saber que ela irá vir aqui me ler; para contar a história de alguém em primeira pessoa, para fazer dela a minha história, para viver a sua vida; para falar em terceira pessoa sem descartar a possibilidade de ser eu mesmo, para confundir o mais íntimo, para por em dúvida o mais distante; para eu ser vários de mim e me transformar em outros; para a música ser poesia, e para a letra encontrar uma canção; para dizer publicamente à alguém que eu a amo, para que ela saiba que a amei; para eu não contar para ninguém no trabalho que tenho um blog, para não diluir a possibilidade da surpresa ao ser questionado – e do espanto de quem pergunta - : “você tem um blog?!”; para sentir a pressão e angústia de não saber se conseguirei escrever o próximo post, para sentir o alívio e orgulho de ter escrito um novo post; para seduzir a mulher desejada, para conquistar uma nova mulher, para homenagear a mulher amada, para reverenciar a possibilidade de amar a mesma mulher; para ter certeza de que tudo é improvável, e relativa é a minha falta de tempo e criatividade; para manter a certeza máxima da afirmação feita pelo Bidê ou Balde: “Se sexo é o que importa, só o rock é sobre o amor”.

Um blog para diminuir o tamanho do sentido e aumentar a sensação de estar. De festejar o amigo, a amiga, as meninas de quinze anos, as mulheres de 29, a banda, a lenda, a sua canção, a nossa música, as descobertas, os cobertores, as caminhadas, os caminhos, os encontros, os ombros, os sabores, os desencontros, a tensão, o tesão, as casas, as asas, os casais, a família, os filhos, as mães, os pais, os pães, as viagens, as virgens, as conspirações, as contradições, as sementes, os ventres, os frutos, os puros, os putos, as intenções, as pretensões, as concordâncias, as dissonâncias, as paixões, as ilusões, as alegrias, os choros, as fotos, os pólens, os êxitos, os êxodos, os beijos, os poemas, os abraços, os textos, a juventude, os shows, as estórias, a amizade...

Um blog para estreitar as metáforas entre as pessoas e alongar o significado da palavra.

Da palavra amor.

Jânio Dias