sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Onde Está a Poesia

imagem: Where Angels Dance, 2005 by Lee Campbell


“E quando chega o fim do dia
Eu só penso em descansar
E voltar prá casa, pros teus braços
Quem sabe esquecer um pouco
Do pouco que não temos
Quem sabe esquecer um pouco
De tudo que não sabemos”

Legião Urbana, em Música de Trabalho


Eu levanto pela manhã sem acordar, sem abrir os olhos, com vontade de encurvar a coluna outra vez e bater o rosto contra o travesseiro. Eu levanto com o cobertor sobre a face para imaginar que ainda é madrugada, para que eu não me encontre com o relógio, não ache os chinelos e sinta a cama me pedindo para voltar. Eu levanto sem pijama para que ela tenha dó de mim e me peça para manter a porta do quarto trancada. Eu durmo de costas para a janela para estreitar a amizade com o lado de lá da cama. Eu levanto pela manhã de olhos fechados pedindo para que o sol espere um pouco mais para me dar bom dia.

Eu bebo café antes de escovar os dentes para mastigar a noite anterior com manteiga. Eu como a noite de ontem para saber que não a perdi dormindo. Eu a levo comigo quando saio de casa para o trabalho na incerteza de que irei encontrá-la na hora de voltar.

Eu caminho até o metrô me despedindo do canteiro de flores e da obra do funileiro Alemão no carro vermelho. Digo olá emitindo som de adeus com o balançar do cabelo ainda molhado. Mudo para o outro lado da rua passando entre os carros enfileirados e pensando como seria o nome verdadeiro do Alemão. Nunca nos falamos, sempre nos despedimos.

Eu entro no metrô disputando lugar na janelinha. Minha vitória é a segurança do cotovelo apoiando o rosto junto ao vidro que ignora a vida que passa do outro lado sem fazer reflexo. Meu conforto é fechar os olhos para dormir na ignorância e acordar aliviado perto do trabalho. Em dias de sorte eu sigo acordado reparando na beleza controversa das pessoas.

Eu chego ao trabalho com a missão de sobreviver. Os papéis em cima da mesa parecem que fingem estar descansando para me atacar depois. Os e-mails em vermelho significam que a leitura é obrigatória e indispensável. A melodia de dois acordes do telefone que toca é sinal de questionamento sem opção de consulta. A voz feminina que ecoa da sala de vidro não é a da minha menina branca com sardas. O mar não é para peixe e sim para tubarões. O encontro na máquina de café é comercial no jogo da TV enquanto a bola não é reposta em campo. Os amigos da hora do almoço nunca jantaram em casa. Nossas confidências são sobre o desejo involuntário de comer a recepcionista. Na hora de ir embora o corpo vai e a mente parece que ainda está lá, desconfiando do ataque secreto dos papéis. O local de trabalho é o melhor lugar para não existir.

Eu volto para casa com as chaves presas ao peito. Elas preparam meus pulmões para outras vontades. Facilitam minhas mãos para outras palmas. Iniciam meus passos em outras definições.

Eu chego em casa rasgando a folha da porta para nascer uma nova. A folha da porta desenha e separa a brevidade do dia. Pela manhã é obrigação com dever, no retorno é possibilidade de imaginação.

Eu entro em casa sapateando o teto dos sinos. Oponho-me ao silêncio linear e temperamental da geladeira, quero a agressão da água caindo sobre a louça na pia, a transfiguração do calor e da luz da chama do fogão.

Eu mergulho contra o chuveiro para diminuir a força e a tensão, para moderar a culpa e perverter os pecados, suavizar o retorno e preparar o corpo para o dia seguinte.

Eu me espalho pela sala como música que invade a cozinha da casa ao lado. Eu me largo no sofá como livro esquecido com páginas abertas. Eu me esqueço na sala como disco dentro do aparelho. Eu me encontro nos cômodos de casa.

Eu me acalmo em casa como a almofada que dorme serena sobre o tapete.

Estar em casa é não ter o corpo em casa. Estar em casa é ter o coração mais perto da poesia.

Jânio Dias

8 comentários:

Anônimo disse...

Certa vez eu disse ao amigo Janio que eu penso em forma de poesia, talvez por isso eu insista em ver poesia em tudo, mesmo onde a maioria vê rotina e monotonia...
Mas eu eu entendo e respeito a opinião d etodo mundo, afinal, cada um é cada um e ai também mora a poesia, pois se todos fossem iguais, ach que ela não existiria.
Minha poesia nasce ao despertar do meu celular as 5:20 que me vê enrolar até as 5:25 (isso mesmo, 5:25, coisa de profissional de informatica..rs)e dai por diante, mesmo que a sequencia dos minutos e das horas repitam coisas do dia anterior, para mim, é como se tudo acontecesse de outro jeito.
Eu como um observador da vida, vou olhando tudo e "poetizando".
O bom dia para os vizinhos do predio enqunto espero a perua da minha filha, cada um do seu jeito, até aquele que todo o dia espera a filha com o carro já na rua ouvindo a CBN.
CONTINUA...

Anônimo disse...

CONTINUAÇÃO...
No transito, são formas diferentes, motoqueiros insanos, onibus espaçosos e ainda consigo nessa selva, reconhecer um carro e uma pessoa do dia anterior.
Depois no onibus que termino de chegar a meus deveres...acredito que o pego em uns 4 horarios possíveis, sendo assim, conheço os passageiros dos 4 horarios, pois são sempre os mesmos, as vezes um ou outro invade outro horario. Assim já consigo mais ou menos conehcer o estilo de cada um e cada uma.
O canelinha na frente da Tel...vendo os atores do centro da cidade é impagável.
No trabalho cada dia é um dia diferente, desafios, objetivos, ideias, amo o que faço, e isso para mim é poesia, os papeis me desafiam e eu os enfrento, as vezes apanho, mas também bato, acho que atualmente estou na vantagem. Tudo bem, o trabalho até está me deixando meio duro, insensivel até eu diria, mas eu percebo isso, e vou buscar a poesia nas pequenas coisas, como um bom dia bem dado e um sorriso, um e-mail, um blog um msn...
Enfim poesia está dentro de nós, ela se faz em nós, somos instrumentos dela.
Sendo assim amigo Janio, pergunte ao Alemão o seu nome, pois saber o nome das pesssoas, também é poesia.
I´ve written a lot !!! I´m Sorry my friend, this Blog is yours

Jânio Dias disse...

Amigo Paulo, estou apaixonado pela sua interação nesse espaço.

Beijos!

Anônimo disse...

Uau! Sem comentários.
Ótimo.

Beijos.

Lila Rose disse...

Oi, querido.

Sabe, tenho inveja. Daquela boa, juro.

É que acho impressionante o teu olhar sobre as coisas do dia-a-dia, teus vestígios minunciosos, sempre tão tocantes.

Parabéns pelo post.
Minha casa também é meu refúgio. Saio pela manhã pensando em voltar.

Bisous!

Anônimo disse...

A poesia está nos detalhes que você sabe descrever como ninguém...

Beijos

Dauri Batisti disse...

Muito bom isto que vc escreveu. Nota 10.

Dauri batisti
www.essapalavra.blogspot.com

Anônimo disse...

minha casa é meu reino... assim um outro poeta descreve seu lar...
assim já me senti quando um espaço de paredes de concreto era o que mais eu queria no mundo... hoje percebi que a minha casa é o mundo,não um CEP apenas,mas todos eles... todas as casas dos meus poucos e bons amigos... o apartamento da rua Alaba é um pouco minha casa,os domingos não vamos lá,não são bosn domingos...o apartamento da rua do colégio Emille é também um pouco meu,apesar de pouco ir até ele...Também sinto minha a casa com grades que ajudei a pintar com o saudoso Manoel com as cores do tricolor paulista... e tantas outras casas sinto minha, como a casa do Tremembé, onde estive dia desses, onde senti que a churrasqueira era velha amiga e que posso voltar a qualquer momento...beijos
@lex!