imagem: Woman Holding a Balance, c.1664 de Jan Vermeer
“Que angústia desesperada
Minha fé parece cansada
E nada, nada mais me acalma
(...)
Apesar de todo desencanto
Eu não desisto de amar”
Barão Vermelho, em Daqui Por Diante
Minha fé parece cansada
E nada, nada mais me acalma
(...)
Apesar de todo desencanto
Eu não desisto de amar”
Barão Vermelho, em Daqui Por Diante
Meus anos de inexperiência nesta vida ainda me questionam: será que sempre é assim?
Um menino de 12 anos está do lado de dentro de uma mercearia, mais precisamente nos fundos, pesando cuidadosamente dois quilos de milho para um freguês. Há ali vários barris com cereais. De arroz a quirela; há até um barril com ração para cães. Os sacos de papel que vão de um a dez quilos estão em uma bancada ao lado, enfileirados em ordem crescente. Seu instrumento de trabalho é uma vasilha para colocar o conteúdo pedido dentro do saquinho, uma balança e uma caneta para somar as contas que são desenhadas no papel que fica exposto sobre o balcão, normalmente usado para enrolar o pão. Outra pessoa aproxima-se e encosta os braços sobre a geladeira horizontal que abriga diversas bebidas. O atendente mirim após devolver o troco pra o comprador do milho, pergunta em que pode ajudá-lo. O novo cliente quer feijão, cinco quilos. O menino, franzino como galhos secos esquecidos no tempo, olha para sua direita e pede ajuda ao colega mais velho de trabalho. Cinco quilos era peso suficiente para sucumbir seus jovens braços de menino que freqüentava a sexta série primária pela manhã, para logo em seguida correr para o trabalho precoce na mercearia. Cinco quilos tornavam a balança que ficava na altura de seu nariz maior em dois metros. Cinco quilos o faziam entregar os pontos e lembrar que deveria estar na rua empinando pipa no céu. Ele sempre sonhava com cinco quilos de nuvens brancas em formatos de desenhos diversos sobre sua cama.
Em uma padaria, o garoto de 16 desembarca de sua bicicleta e entra rapidamente para trocar o agasalho que estava usando no jogo de basquete pelo avental branco e bordado do estabelecimento. Mal entrou e o patrão já ordenara que abastecesse a geladeira com refrigerantes. O garoto arrastou um engradado plástico com coca-cola e passou a colocar em movimentos rápidos as garrafas de vidro no interior do móvel, uma a uma, outra sob outra e outra, quando de repente, um estouro. No contato entre a garrafa de cima e debaixo, o corpo de uma delas explodiu em sua mão direita, provocando um longo corte na palma. O patrão ao perceber o que havia acontecido, arrasta a mão do rapaz para debaixo da torneira da pia na intenção de que a corrente da água parasse o sangramento. Como o vermelho do sangue continuava a colorir a pia, a esposa do chefe resolveu intervir também. Abaixou-se junto à máquina de preparar as bebidas quentes, pegou pó de café, tomou para si a mão do garoto como se fosse um vaso de alguma planta qualquer e a encheu daquele pó preto como terra, estancando a sangria. Havia um silêncio de alívio nos olhares dos patrões. Segundos depois, o proprietário do estabelecimento pegou um pano, enrolou na mão do garoto e lhe explicou que o levaria ao pronto socorro, mas não poderia mencionar em nenhum momento que havia se acidentado no trabalho, pois não tinha registro de emprego. Após levar doze pontos, ter o curativo terminado e tomar uma benzetacil na bunda, voltou para o trabalho para terminar de cumprir suas tarefas, como encher a geladeira com a mão esquerda. Passou a tarde calado executando suas funções, como quem deseja que o relógio avance quatro horas em vinte minutos, lembrando que não poderia voltar para casa de bicicleta, e o pior que uma lembrança pode provocar quando não há mais alternativas para mudar o que está definido: havia sido o cestinha do jogo de basquete pela manhã; não o seria mais tão cedo.
No departamento de Logística de uma empresa de transportes rodoviários, com a promoção de um gerente para o cargo de diretor, o coordenador da área, o Geraldo, foi promovido a gerente. Abaixo dele havia duas analistas, uma delas deveria ser promovida por ele para o cargo que havia sido seu. Uma das meninas, a Helena, tinha mais tempo de casa, havia passado por várias outras funções na empresa até chegar a atual, era de confiança e tinha ótimo relacionamento com o chefe. A outra menina, a Cristina, apesar de mais jovem, tinha mais experiência na área, cursos de especialização, e autonomia própria para exercer suas funções, detalhe que não agradava muito ao Geraldo. Ele chamou as duas para conversar, uma de cada vez, explicou a situação e expôs o que imaginava que havia de bom e ruim no perfil de cada. Disse-lhes que levaria alguns dias para pensar no que considerava tomar uma difícil decisão. Ele olhava para elas e enxergava estilos diferentes com resultados semelhantes. Uma era uma lança, uma arma mais rudimentar, mas ofensiva, que sabia que quando necessário era preciso arremessar-se de cabeça para conseguir o queria. A outra era uma espada, uma arma branca pontiaguda e habilidosa em suas funções. Ambas poderiam ser a nova coordenadora da área, mas havia apenas uma vaga. Alguns dias passaram e no happy hour de confraternização do novo diretor e gerente, Helena perguntou ao Geraldo se ele poderia lhe dar uma carona e deixá-la perto de casa. Quando estavam voltando, enquanto seu novo gerente dirigia, a moça candidata passou a fazer um provocador carinho sobre o tecido da calça do homem que naquele instante era seu motorista. Geraldo a olhou com as sobrancelhas de quem tem fome no sorriso, desviou da rota original e entrou em um motel. Quatro semanas depois, Cristina recebia a notícia: sua colega Helena havia sido a escolhida.
Em uma festa rave na Serra da Cantareira, o jovem Edcarlos de apenas 22 está com os amigos curtindo a balada. A música é muito alta, um putz putz de doer o cérebro, e logo ele pensa que preferiria estar numa dessas casas que tocam clássicos do rock como Pearl Jam e Soundgarden. Edcarlos achava que o rock dos anos 90 era um maravilhoso passado próximo. Mas os amigos, sempre os amigos, o haviam convencido de curtir uma balada diferente. Ele se esforçava para tentar ser mais um ali, imitava gestos, prestava atenção nos semblantes como em órbita, tal qual em viagem astral. Ele dançava sozinho o som da multidão, mas logo viu um rosto bonito que também olhou para o dele. Camila também havia saído aquela noite com as amigas, mas para ela já era quase como que rotina. Todo final de semana aquela curtição, as amigas, as bocas diferentes, o bate estaca na cabeça, os comprimidos, o retorno pra casa e a incerteza de superar a rotina de mais uma semana. Como os olhos do jovem rapaz (cujo corpo parecia que não aproveitava a música como as demais pessoas) não desviavam de sua direção, Camila resolveu aproximar-se dele. Rapidamente estavam se beijando e a música provocando intimidade. Dois meses após esse encontro do acaso, Camila estava morando com Edcarlos. Ed (como era conhecido entre as pessoas próximas) era rapaz correto e simples que apreciava bom rock, amava sua moto e trabalhava num laboratório químico de produtos farmacêuticos. Uma noite quando estava chegando em casa vindo do trabalho, três homens brancos usando moletons com capuz o abordaram na esquina de sua rua. Queriam que ele liquidasse uma suposta dívida de comprimidos que Camila havia contraído com eles. Como sabiam que ele era trabalhador, mas também de família de posses, disseram-lhe que a dívida poderia ser quitada apenas com a entrega da moto, e iriam lhe dar alguns dias para se decidir. Ed ao chegar em casa discutiu com Camila sobre o assunto, ela negou as acusações e naquela noite mesmo saiu da casa do namorado sem dizer para onde ia. No dia seguinte, quando saia do trabalho, Ed optou por deixar a moto guardada lá mesmo. Voltou para casa de ônibus e passou os dias seguintes indo trabalhar dessa forma. Na manhã do quarto dia, quando se preparava para ir para o laboratório, os tais homens apareceram em sua frente novamente. Ele tentou explicar que não tinha o dinheiro que queriam, nem moto e não sabia mais onde estaria Camila. De forma corajosa, virou as costas para os estranhos sujeitos e seguiu para o ponto. Nesse momento, havia um ônibus parado com algumas pessoas entrando. Ed aproximou-se e apoiou a mão direita na barra da porta do veículo e deu leve impulso ao corpo para subir as escadas. O motorista da linha 7401 que observava os passageiros das 6h20 entrarem em seu veículo viu um homem branco e loiro com capuz azul sobre a cabeça logo atrás da última pessoa que lhe cumprimentaria naquele horário. Naquele momento, ao firmar os pés sobre o primeiro degrau do veículo e levantar a cabeça para dar bom dia ao motorista, um tiro a queima-roupa foi disparado contra aquele passageiro. Edcarlos morreu com um tiro na nuca ao subir no ônibus que o levaria para o trabalho.
Dois casais estavam a caminho de uma festa de aniversário, saindo da zona oeste da cidade em direção a zona sul. Mariana que dirigia um Fiesta vermelho usava óculos e não tinha certeza da localização do evento. Essa cidade tão maluca, tão escura mesmo iluminada, tão cheia de pontes e saídas parecidas, confundiam sua noção de localização. Ela não gostava muito de dirigir, mas o namorado enxergava na abdicação do volante um certo charme de independência doado a namorada. O casal amigo no banco de trás havia passado a tarde preocupados na escolha certa do presente. Ficaram indecisos entre o livro infanto-juvenil da Madonna e o primeiro Harry Poter. Acabaram optando pela rainha do pop, achavam que era uma forma criativa de introduzir por linhas paralelas a imagem da artista na vida de uma menina de 12 anos. Enquanto contavam do banco de trás para os amigos da frente os critérios na escolha do presente, Mariana tentava se entender com as placas e seus sinais às vezes tão embaralhados. No momento em que ia passar por um cruzamento, enquanto observava a placa no alto e as informações nela contida, com o carro em movimento lento fazendo a curva para a esquerda, o semáforo passou do verde para o amarelo repentino. Seu carro acabou fechando sem querer e quase sem perceber um Monza preto que vinha do outro lado. O motorista do carro escuro buzinou bravíssimo para o Fiesta, destilando inúmeros palavrões. Mariana acelerou na intenção de se distanciar dos gestos obscenos do Monza, quando de repente observou pelo retrovisor o mesmo carro cortando o seu pela direita, entrando na sua frente e de forma proposital, fazendo-a frear subitamente. Os pneus cantaram na desaceleração brusca, e num movimento rápido e de orgulho para o namorado, jogou o veículo para a direita e acelerou firme na intenção de fugir daquela situação, quando de repente ouviu-se um, dois, três, quatro estampidos. Mariana perdeu o controle do carro, subindo na calçada, batendo de frente com um poste e capotando na rua duas vezes. Policiais Civis estavam perseguindo seu carro por ela ter supostamente passado o farol vermelho no cruzamento. Segundo versão dos policiais, fizeram sinais para o Fiesta parar, mas a ordem não foi obedecida, instintivamente suspeitaram de seqüestro relâmpago, então atiraram no veículo. Apenas a namorada do amigo de trás sobreviveu ao ocorrido.
Impossível não imaginar quão desastroso pode ser a iniciativa de tentar com hombridade a própria sobrevivência ou ingenuamente entregar-se as belezas de uma aventura errante; ou mesmo apenas de bobeira, tentar ser parte minúscula da história de alguém.
Tantas são as histórias conhecidas por cada um de nós sobre as fatalidades que presenciamos ou que somos vítimas, que quase não nos chocamos mais. Quando acontece, em poucos minutos o corpo cria suas próprias camadas de defesas e torna-se negligente à acidez dos acontecimentos. A decência tarda os benefícios de quem almeja o atalho rápido e a perspicácia é a salvação dos valores mundanos. O perigo está ao lado e a morte agachada sobre o meio-fio da calçada. Não há mais lugar para inocências inatas e declarações de fé; além de pesares insignificantes como este.
Meus anos de incertezas dessa vida querem uma noite suave de sono ao lado da mulher amada para acordar na manhã seguinte e, despreocupadamente, como se nada tivesse acontecido, abrir a janela e tentar acreditar que nem sempre é assim.
Não adianta, sou dessas pessoas que oscilam entre a santa indiferença e a diabólica compaixão.
Jânio Dias
Um menino de 12 anos está do lado de dentro de uma mercearia, mais precisamente nos fundos, pesando cuidadosamente dois quilos de milho para um freguês. Há ali vários barris com cereais. De arroz a quirela; há até um barril com ração para cães. Os sacos de papel que vão de um a dez quilos estão em uma bancada ao lado, enfileirados em ordem crescente. Seu instrumento de trabalho é uma vasilha para colocar o conteúdo pedido dentro do saquinho, uma balança e uma caneta para somar as contas que são desenhadas no papel que fica exposto sobre o balcão, normalmente usado para enrolar o pão. Outra pessoa aproxima-se e encosta os braços sobre a geladeira horizontal que abriga diversas bebidas. O atendente mirim após devolver o troco pra o comprador do milho, pergunta em que pode ajudá-lo. O novo cliente quer feijão, cinco quilos. O menino, franzino como galhos secos esquecidos no tempo, olha para sua direita e pede ajuda ao colega mais velho de trabalho. Cinco quilos era peso suficiente para sucumbir seus jovens braços de menino que freqüentava a sexta série primária pela manhã, para logo em seguida correr para o trabalho precoce na mercearia. Cinco quilos tornavam a balança que ficava na altura de seu nariz maior em dois metros. Cinco quilos o faziam entregar os pontos e lembrar que deveria estar na rua empinando pipa no céu. Ele sempre sonhava com cinco quilos de nuvens brancas em formatos de desenhos diversos sobre sua cama.
Em uma padaria, o garoto de 16 desembarca de sua bicicleta e entra rapidamente para trocar o agasalho que estava usando no jogo de basquete pelo avental branco e bordado do estabelecimento. Mal entrou e o patrão já ordenara que abastecesse a geladeira com refrigerantes. O garoto arrastou um engradado plástico com coca-cola e passou a colocar em movimentos rápidos as garrafas de vidro no interior do móvel, uma a uma, outra sob outra e outra, quando de repente, um estouro. No contato entre a garrafa de cima e debaixo, o corpo de uma delas explodiu em sua mão direita, provocando um longo corte na palma. O patrão ao perceber o que havia acontecido, arrasta a mão do rapaz para debaixo da torneira da pia na intenção de que a corrente da água parasse o sangramento. Como o vermelho do sangue continuava a colorir a pia, a esposa do chefe resolveu intervir também. Abaixou-se junto à máquina de preparar as bebidas quentes, pegou pó de café, tomou para si a mão do garoto como se fosse um vaso de alguma planta qualquer e a encheu daquele pó preto como terra, estancando a sangria. Havia um silêncio de alívio nos olhares dos patrões. Segundos depois, o proprietário do estabelecimento pegou um pano, enrolou na mão do garoto e lhe explicou que o levaria ao pronto socorro, mas não poderia mencionar em nenhum momento que havia se acidentado no trabalho, pois não tinha registro de emprego. Após levar doze pontos, ter o curativo terminado e tomar uma benzetacil na bunda, voltou para o trabalho para terminar de cumprir suas tarefas, como encher a geladeira com a mão esquerda. Passou a tarde calado executando suas funções, como quem deseja que o relógio avance quatro horas em vinte minutos, lembrando que não poderia voltar para casa de bicicleta, e o pior que uma lembrança pode provocar quando não há mais alternativas para mudar o que está definido: havia sido o cestinha do jogo de basquete pela manhã; não o seria mais tão cedo.
No departamento de Logística de uma empresa de transportes rodoviários, com a promoção de um gerente para o cargo de diretor, o coordenador da área, o Geraldo, foi promovido a gerente. Abaixo dele havia duas analistas, uma delas deveria ser promovida por ele para o cargo que havia sido seu. Uma das meninas, a Helena, tinha mais tempo de casa, havia passado por várias outras funções na empresa até chegar a atual, era de confiança e tinha ótimo relacionamento com o chefe. A outra menina, a Cristina, apesar de mais jovem, tinha mais experiência na área, cursos de especialização, e autonomia própria para exercer suas funções, detalhe que não agradava muito ao Geraldo. Ele chamou as duas para conversar, uma de cada vez, explicou a situação e expôs o que imaginava que havia de bom e ruim no perfil de cada. Disse-lhes que levaria alguns dias para pensar no que considerava tomar uma difícil decisão. Ele olhava para elas e enxergava estilos diferentes com resultados semelhantes. Uma era uma lança, uma arma mais rudimentar, mas ofensiva, que sabia que quando necessário era preciso arremessar-se de cabeça para conseguir o queria. A outra era uma espada, uma arma branca pontiaguda e habilidosa em suas funções. Ambas poderiam ser a nova coordenadora da área, mas havia apenas uma vaga. Alguns dias passaram e no happy hour de confraternização do novo diretor e gerente, Helena perguntou ao Geraldo se ele poderia lhe dar uma carona e deixá-la perto de casa. Quando estavam voltando, enquanto seu novo gerente dirigia, a moça candidata passou a fazer um provocador carinho sobre o tecido da calça do homem que naquele instante era seu motorista. Geraldo a olhou com as sobrancelhas de quem tem fome no sorriso, desviou da rota original e entrou em um motel. Quatro semanas depois, Cristina recebia a notícia: sua colega Helena havia sido a escolhida.
Em uma festa rave na Serra da Cantareira, o jovem Edcarlos de apenas 22 está com os amigos curtindo a balada. A música é muito alta, um putz putz de doer o cérebro, e logo ele pensa que preferiria estar numa dessas casas que tocam clássicos do rock como Pearl Jam e Soundgarden. Edcarlos achava que o rock dos anos 90 era um maravilhoso passado próximo. Mas os amigos, sempre os amigos, o haviam convencido de curtir uma balada diferente. Ele se esforçava para tentar ser mais um ali, imitava gestos, prestava atenção nos semblantes como em órbita, tal qual em viagem astral. Ele dançava sozinho o som da multidão, mas logo viu um rosto bonito que também olhou para o dele. Camila também havia saído aquela noite com as amigas, mas para ela já era quase como que rotina. Todo final de semana aquela curtição, as amigas, as bocas diferentes, o bate estaca na cabeça, os comprimidos, o retorno pra casa e a incerteza de superar a rotina de mais uma semana. Como os olhos do jovem rapaz (cujo corpo parecia que não aproveitava a música como as demais pessoas) não desviavam de sua direção, Camila resolveu aproximar-se dele. Rapidamente estavam se beijando e a música provocando intimidade. Dois meses após esse encontro do acaso, Camila estava morando com Edcarlos. Ed (como era conhecido entre as pessoas próximas) era rapaz correto e simples que apreciava bom rock, amava sua moto e trabalhava num laboratório químico de produtos farmacêuticos. Uma noite quando estava chegando em casa vindo do trabalho, três homens brancos usando moletons com capuz o abordaram na esquina de sua rua. Queriam que ele liquidasse uma suposta dívida de comprimidos que Camila havia contraído com eles. Como sabiam que ele era trabalhador, mas também de família de posses, disseram-lhe que a dívida poderia ser quitada apenas com a entrega da moto, e iriam lhe dar alguns dias para se decidir. Ed ao chegar em casa discutiu com Camila sobre o assunto, ela negou as acusações e naquela noite mesmo saiu da casa do namorado sem dizer para onde ia. No dia seguinte, quando saia do trabalho, Ed optou por deixar a moto guardada lá mesmo. Voltou para casa de ônibus e passou os dias seguintes indo trabalhar dessa forma. Na manhã do quarto dia, quando se preparava para ir para o laboratório, os tais homens apareceram em sua frente novamente. Ele tentou explicar que não tinha o dinheiro que queriam, nem moto e não sabia mais onde estaria Camila. De forma corajosa, virou as costas para os estranhos sujeitos e seguiu para o ponto. Nesse momento, havia um ônibus parado com algumas pessoas entrando. Ed aproximou-se e apoiou a mão direita na barra da porta do veículo e deu leve impulso ao corpo para subir as escadas. O motorista da linha 7401 que observava os passageiros das 6h20 entrarem em seu veículo viu um homem branco e loiro com capuz azul sobre a cabeça logo atrás da última pessoa que lhe cumprimentaria naquele horário. Naquele momento, ao firmar os pés sobre o primeiro degrau do veículo e levantar a cabeça para dar bom dia ao motorista, um tiro a queima-roupa foi disparado contra aquele passageiro. Edcarlos morreu com um tiro na nuca ao subir no ônibus que o levaria para o trabalho.
Dois casais estavam a caminho de uma festa de aniversário, saindo da zona oeste da cidade em direção a zona sul. Mariana que dirigia um Fiesta vermelho usava óculos e não tinha certeza da localização do evento. Essa cidade tão maluca, tão escura mesmo iluminada, tão cheia de pontes e saídas parecidas, confundiam sua noção de localização. Ela não gostava muito de dirigir, mas o namorado enxergava na abdicação do volante um certo charme de independência doado a namorada. O casal amigo no banco de trás havia passado a tarde preocupados na escolha certa do presente. Ficaram indecisos entre o livro infanto-juvenil da Madonna e o primeiro Harry Poter. Acabaram optando pela rainha do pop, achavam que era uma forma criativa de introduzir por linhas paralelas a imagem da artista na vida de uma menina de 12 anos. Enquanto contavam do banco de trás para os amigos da frente os critérios na escolha do presente, Mariana tentava se entender com as placas e seus sinais às vezes tão embaralhados. No momento em que ia passar por um cruzamento, enquanto observava a placa no alto e as informações nela contida, com o carro em movimento lento fazendo a curva para a esquerda, o semáforo passou do verde para o amarelo repentino. Seu carro acabou fechando sem querer e quase sem perceber um Monza preto que vinha do outro lado. O motorista do carro escuro buzinou bravíssimo para o Fiesta, destilando inúmeros palavrões. Mariana acelerou na intenção de se distanciar dos gestos obscenos do Monza, quando de repente observou pelo retrovisor o mesmo carro cortando o seu pela direita, entrando na sua frente e de forma proposital, fazendo-a frear subitamente. Os pneus cantaram na desaceleração brusca, e num movimento rápido e de orgulho para o namorado, jogou o veículo para a direita e acelerou firme na intenção de fugir daquela situação, quando de repente ouviu-se um, dois, três, quatro estampidos. Mariana perdeu o controle do carro, subindo na calçada, batendo de frente com um poste e capotando na rua duas vezes. Policiais Civis estavam perseguindo seu carro por ela ter supostamente passado o farol vermelho no cruzamento. Segundo versão dos policiais, fizeram sinais para o Fiesta parar, mas a ordem não foi obedecida, instintivamente suspeitaram de seqüestro relâmpago, então atiraram no veículo. Apenas a namorada do amigo de trás sobreviveu ao ocorrido.
Impossível não imaginar quão desastroso pode ser a iniciativa de tentar com hombridade a própria sobrevivência ou ingenuamente entregar-se as belezas de uma aventura errante; ou mesmo apenas de bobeira, tentar ser parte minúscula da história de alguém.
Tantas são as histórias conhecidas por cada um de nós sobre as fatalidades que presenciamos ou que somos vítimas, que quase não nos chocamos mais. Quando acontece, em poucos minutos o corpo cria suas próprias camadas de defesas e torna-se negligente à acidez dos acontecimentos. A decência tarda os benefícios de quem almeja o atalho rápido e a perspicácia é a salvação dos valores mundanos. O perigo está ao lado e a morte agachada sobre o meio-fio da calçada. Não há mais lugar para inocências inatas e declarações de fé; além de pesares insignificantes como este.
Meus anos de incertezas dessa vida querem uma noite suave de sono ao lado da mulher amada para acordar na manhã seguinte e, despreocupadamente, como se nada tivesse acontecido, abrir a janela e tentar acreditar que nem sempre é assim.
Não adianta, sou dessas pessoas que oscilam entre a santa indiferença e a diabólica compaixão.
Jânio Dias
7 comentários:
Jânio querido
Você já eu seu veredito:
"Não adianta, sou dessas pessoas que oscilam entre a santa indiferença e a diabólica compaixão."
A santa indiferença é nosso escudo, mas ela só existe na nossa cabeça, então, estamos fadados a incertezas eternas.
Mas de que serviviriam certezas para almas que anseiam o que não conhecem, que sonham com o desconhecido, que ainda escrevem poemas de amor e crêem num mundo melhor?
Fico do jeito que estou, "meio" idosa e cheia de incertezas!
beijo
' A decência tarda os benefícios de quem almeja o atalho rápido e a perspicácia é a salvação dos valores mundanos. '
Você escreve muuito bem! Adoro seu blog, estou sempre por aqui ;]
Continue escrevendo.... é o que posso dizer. Escrever é rever, também pode ser analisar - como você faz aqui - e pode levar ao agir.
"Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece".
Querido Jânio
Parabéns pelo dia de amanhã!
Feliz aniversário e muita luz no seu caminho,
beijo
Hummm, ultimamente o senhor escrevendo sobre vidas diversas. Muito bonito esse texto, apesar das tragédias. Fica para reflexão.
Ah, foi seu aniversário e você não me contou???? Parabéns, moço!
Que você sinta toda a leveza que a vida, por vezes, é capaz de proporcionar. Seja feliz, rapaz!
Beijos de quem tanto admira os seus escritos.
Kátia, além de cheio de incertezas, essa semana fiquei "meio" idoso.
Muito obrigado pelo parabéns aqui, foi surreal. Fiquei surpreso e contente. Acho que isso ainda vai dar um post...
May, obrigadão! Também estou pelos "Fragmentos do seu mundo"! ;)
Amigo Dauri, tentarei seguir seu conselho como uma ordem! Obrigado!
Má... como você pensou nesse trecho? Ficou perfeito pensando no título original em inglês do filme: "No Country for Old Men". Obrigadão por vir aqui.
Verônica... Pois é, foi meu aniversário. Obrigadão, viu?! Acho que esse blog tava precisando de um pouco de ar critico... até porque, é ano de eleição e tal...
Beijos!
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