sábado, 3 de janeiro de 2009

Laila

imagem: The Music Lesson, 1877, de Frederic Leighton


“Good times for a change
See, the luck I've had
Can make a good man
Turn bad”

The Smiths, em Please, Please, Please Let Me Get What I Want


Foram tantos os versos escolhidos, tantos os cartões não escritos, os dedos encolhidos, as mãos recolhidas, os olhares distraídos, as letras imprecisas, os textos inacabados, como se a vida começasse no momento do riso da despedida.

Foram tantas as tentativas, os encontros e também os desencontros, como se várias consoantes perseguissem a mesma vogal, como se o final da frase tentasse beijar o próximo parágrafo, como se o travessão impedisse o encontro da bola com a rede.

Foram tantos os momentos de ansiedade, as mãos suadas, o cabelos desalinhados, os bolsos da calça com as línguas para fora, como se beijassem as barras e enroscasse no próprio pescoço.

Foram tantos os minutos contados, os segundos suados, a insegurança repentina, os objetos atirados, os sonhos imaculados, os desejos sonegados, a frase arrancada, a lágrima rasgada, o véu queimado, como se o tempo engasgasse com o vento da saudade.

Laila acaba de anotar em um pequeno caderno que lembra uma agenda sem dias sequenciais alguns dos momentos mais repetitivos dos seus últimos 15 anos de vida, como se os empilhassem para que sejam queimados com o ano que passou. Ela acredita na cremação do ano que ficou para trás. Dessa vez, resolveu fazer uma pilha de anos e queimá-los todos juntos. Esse fogo suaviza a tempestade dos dias de então.

Laila registra a cada final de ano as pequenas conquistas de uma vida de lutas e largos sorrisos. Seus registros são feitos em folhas diferentes e aleatórias, sem datas e com a mesma caneta, como se a noite não começasse com o pôr-do-sol. Mistura todos os fatos e a cada 365 dias tem a sensação de que sua vida pode ser barco sem ponto exato para desembarcar. Ela acha que a contagem de tempo diminui a distância entre o presente e o mistério do que a vida ainda lhe oferecerá de belo.

Em meio a tantos registros sem ordem cronológica preenchendo o branco das linhas de seu caderno sigiloso, embaralhados em níveis de importância, soltos como fotos de um álbum antigo e só tocado na visita do parente que não se vê há anos, há uma folha com um ranking recente dos momentos considerados mais especiais, como o dia em que sentou no colo do papai Noel quando criancinha ainda sem os dentes da frente – aquele dia prolongou um pouco mais a existência de suas fantasias infantis; a formatura da 8ª série em cerimônia realizada dentro da sala de aula – concluir o ensino fundamental era ter o dobro de anos de estudos de seu pai; o primeiro trabalho com mesa e computador – a fase do balcão e atendente de telefone havia finalmente acabado; o nascimento da primeira sobrinha, a prova para tirar a habilitação, a inscrição para o vestibular e a dúvida cruel da escolha, o reencontro após 20 anos com a avó materna; o namorado que lhe apresentou para a família antes dele conhecer a dela, o ano novo em Blumenau, a venda do fusca para viajar para Londres, a volta para casa; a noite em que dormiu sozinha em sua nova casa, as demais manhãs preparando o seu próprio café, o dia em que reuniu em sua casa quase todos os amigos mais antigos; o autógrafo personalizado do autor famoso da internet, a criação do seu próprio blog, o show da banda que não vinha nunca, as alianças de noivado ganhas no intervalo do show – seu ranking são lembranças molhadas de tardes de sol a pino.

Laila vira a página de seu caderninho, olha para a nova folha ainda sem passado, e fixa o olhar no que ainda não aconteceu, no que ainda lhe falta para provocar sentido nessa existência. Ameaça listar uma série de desejos ainda não realizados, uma lista de conquistas a serem alcançadas, como o homem que planeja os detalhes para escalar uma montanha. Pressiona o bico da caneta contra a folha pálida, escreve e traceja: um filho.

Laila quer dias de alegrias infinitas.

Jânio Dias

6 comentários:

Anônimo disse...

Não só Laila! Nós também queremos.

Que bom que voltou. Feliz 2009!

Beijos, querido.

Renata disse...

Entrei por entrar e eis que me deparo com um post novinho como 2009! Eba... vou ler com calma, afinal não sei qdo virá o próximo... rs bjsssss

Anônimo disse...

Acredito que o silêncio passageiro não é opção, é efeito. Não se diz nada por ter muito a dizer. Bom tê-lo de volta.

Anônimo disse...

Olá, Amigo Jânio. Feliz 2009!
Muito bom você ter voltado, passei por aqui sem a menor idéia de que iria ler algo. Era só para não perder o hábito mesmo.
Bem... acho que de certa forma, todos nós fazemos listas de desejos para o novo ano. A minha tem só três itens, resolvi diminuir para ver se dá certo. rs
É sempre muito bom ler seus textos.
"Desse vez eu sei, no ano que vem, vai ser diferente"
Beijo!

Kamila Babiuki disse...

Ótimo texto!
Obrigada pela visita ;)

Feliz 2009!

Katia De Carli disse...

Meu Doce Menino
Desculpa a demora... final de ano é sempre complicado!
Lindo texto, mas vindo de você não poderia esperar outra coisa...
Que Laila tenha alegrias infindas
E que Vc também as tenha,
beijos Menino Bonito