imagem: Landscape with a rainbow, de Joseph Mallord William Turner
“Wake, from your sleep
the drying of your tears
today we escape
we escape”
Radiohead, em Exit Music (For a Film)
Tento buscar uma lembrança específica e nítida no fundo da memória. Uma imagem antiga e especial que não esteja dobrada em várias partes como papel de carta guardada no fundo de uma caixa. Um pedaço de filme em preto e branco que não esteja recortado exatamente no momento em que meus olhos pousem voo no descanso de sua película.
Tento buscar uma continuidade de movimentos que não tropecem nos atalhos da pressa. Um copo de água que resgate a sede na retina turva do passado.
Olho fixamente para dentro de mim mesmo. Olho como se fosse possível viajar por entre as veias sem derrapar em tantos obstáculos coagulados. Pulo pequenas pedras, desvio de finas bolhas vermelhas. Apresso o passo, caminho velozmente pela corrente sanguínea com braços rasos e pernas longas. Sinto meus olhos esbugalhados como duas bolas de gude espetadas e penduradas à frente do nariz. Minha língua morde os dentes, meus pulmões absorvem e não devolvem o ar, meus ouvidos trancam as batidas aceleradas do coração. Escureço para clarear em outro momento da existência.
Acabo de voltar no tempo. Estou de volta à primeira vez em que presenciei o show musical mais importante da minha vida.
Estou bem próximo ao palco, não mais do que quatro fileiras para alcançar a grade, o lugar onde as pessoas desafiam a lei da permanência de dois corpos no mesmo espaço. Há ensaios curtos e já empolgados de canções antes da banda entrar. Há também pessoas muito jovens fumando e rabiscando gestos fúteis com o cigarro nas mãos. Perdem parte da beleza da brisa branda e fresca que vem do acampado verde lá fora. Perdem a ansiedade do olhar de quem vai ver seu grupo preferido pela primeira vez, desperdiçam a chance de absorver os comentários inteligentes de quem já viveu aquilo antes. Diluem em fumaça cancerígena o momento mágico da materialização da esperança.
As luzes vão diminuindo lenta e sensivelmente. Gritos de expectativa de que já vai começar explodem no lugar inteiro. Uma música clássica começa estridentemente alta anunciando que algo mágico esta prestes a acontecer. Vejo a fumaça amaldiçoada há poucos instantes do meu lado fazendo contornos em volta do microfone lá no alto do palco. Ela dança lentamente no ar como se desenhasse contornos em volta da canção. É possível notar ainda sem luzes que todos da banda já estão posicionados. A música clássica termina. O público grita em delírio. Começa a primeira canção de uma série de hinos que seriam desalojados de seus abrigos.
É uma música lenta e curta onde todos declamam juntos em português arcaico do século XIII. A falta de confiança no amor daquele tempo é despida pelas vozes presentes. As luzes permanecem apagadas. Inicia-se a segunda canção como se fosse continuação da primeira. É uma música de doze minutos dividida em quatro partes de andamentos diferentes. Uma viagem medieval escrita em metáforas sobre os dias de terror político, doença incurável e ausência de fé presente na época. A parte dois da canção estoura numa espécie de heavy metal exorcista. As luzes explodem no palco e no público. As pessoas pulam de forma alucinada. Há um brilho intransigente que queima a pele como roupas em chamas. Arde adocicando a alma como mar salgado nos olhos abertos. As luzes diminuem em consonância com a canção. Um momento de respiro longo e demorado se aproxima. A descrença e desilusão com aqueles dias são entoados. O inimigo metafórico é desafiado e avisado que ninguém desistirá de lutar. Na quarta parte, antes de terminar, antes de visualizar o fim, as pessoas concluem com suas vozes misturadas e embargadas nos cômodos da emoção que algo melhor ainda virá na morada de suas vidas.
E enquanto na pista as pessoas expressavam viver o indizível, enquanto sentiam o enlevo de bradar suas canções preferidas com os olhos quase sempre fechados nos momentos mais introspectivos, quando abertos deparavam-se com performances quase hipnóticas não ensaiadas, não planejadas de um artista-cantor sobre o palco.
Ele dançava como se um ataque epilético o visitasse em algumas canções. Dançava como se uma descarga disrítmica libertasse seus movimentos no ar. Dançava como se o chão fosse um colchão que amparasse a queda imprevisível da noite. Dançava como se o fio do microfone enrolado ao seu corpo o protegesse da fúria dos dias. Dançava como que desistisse de cantar. Dançava como se insistisse em sentir. Ele dançava como que se entregasse o espírito para a canção.
Ele cantava como se a voz não viesse dele mesmo. Cantava com a facilidade da chuva que cai e penetra a terra. Cantava como se trovejasse e no instante seguinte as nuvens do céu dessem passagem para os raios do sol. Cantava como se fizesse insistentemente geada em seu coração, para logo depois abrir o armário e escolher uma roupa de primavera. Cantava como se o frio fosse belo e cortante, e tratava o quente como momentos que se guardam no bolso do casaco para depois aquecer a manhã da memória. Ele cantava como pássaro triste que guarda esperança no amanhã.
As feições das pessoas exalavam mistos de encantos e assombros, como se a realização de um sonho viesse acompanhado de algum efeito sobrenatural. Os olhos embaçados como pára-brisa de carro em dia de chuva e as vozes encharcadas, pesadas como roupas que foram lavadas, mas ainda molhadas, encontravam naquele momento a maneira de se fazerem aliviadas e percebidas. As pessoas encontravam ali algum sinal da presença da vida delas mesmas.
Desperto de meu transe. Meu coração parece dois tambores socados em intervalos de um segundo. Abro meus olhos com ardência nas pálpebras, vejo dezenas de bolinhas verde limão explodirem ao redor. Há suor em minhas mãos e testa. Há ainda uma nítida sensação de realização presente.
Quase que ainda posso sentir a embriaguez do êxtase daquela apresentação. Quase que posso ouvir os timbres da execução final de cada música. Quase que posso abraçar o coro das vozes em uníssono, quase que posso me queimar com o pranto dos versos cantados durante cada canção. Quase que posso tocar a volúpia de tantos corações. Quase que posso falar com o silêncio lancinante daquela noite.
Isso foi há tanto tempo atrás que parecia que nunca mais iria acontecer de novo. Parecia.
Aconteceu no último 22 de março em São Paulo.
Seu nome: Radiohead.
Jânio Dias
the drying of your tears
today we escape
we escape”
Radiohead, em Exit Music (For a Film)
Tento buscar uma lembrança específica e nítida no fundo da memória. Uma imagem antiga e especial que não esteja dobrada em várias partes como papel de carta guardada no fundo de uma caixa. Um pedaço de filme em preto e branco que não esteja recortado exatamente no momento em que meus olhos pousem voo no descanso de sua película.
Tento buscar uma continuidade de movimentos que não tropecem nos atalhos da pressa. Um copo de água que resgate a sede na retina turva do passado.
Olho fixamente para dentro de mim mesmo. Olho como se fosse possível viajar por entre as veias sem derrapar em tantos obstáculos coagulados. Pulo pequenas pedras, desvio de finas bolhas vermelhas. Apresso o passo, caminho velozmente pela corrente sanguínea com braços rasos e pernas longas. Sinto meus olhos esbugalhados como duas bolas de gude espetadas e penduradas à frente do nariz. Minha língua morde os dentes, meus pulmões absorvem e não devolvem o ar, meus ouvidos trancam as batidas aceleradas do coração. Escureço para clarear em outro momento da existência.
Acabo de voltar no tempo. Estou de volta à primeira vez em que presenciei o show musical mais importante da minha vida.
Estou bem próximo ao palco, não mais do que quatro fileiras para alcançar a grade, o lugar onde as pessoas desafiam a lei da permanência de dois corpos no mesmo espaço. Há ensaios curtos e já empolgados de canções antes da banda entrar. Há também pessoas muito jovens fumando e rabiscando gestos fúteis com o cigarro nas mãos. Perdem parte da beleza da brisa branda e fresca que vem do acampado verde lá fora. Perdem a ansiedade do olhar de quem vai ver seu grupo preferido pela primeira vez, desperdiçam a chance de absorver os comentários inteligentes de quem já viveu aquilo antes. Diluem em fumaça cancerígena o momento mágico da materialização da esperança.
As luzes vão diminuindo lenta e sensivelmente. Gritos de expectativa de que já vai começar explodem no lugar inteiro. Uma música clássica começa estridentemente alta anunciando que algo mágico esta prestes a acontecer. Vejo a fumaça amaldiçoada há poucos instantes do meu lado fazendo contornos em volta do microfone lá no alto do palco. Ela dança lentamente no ar como se desenhasse contornos em volta da canção. É possível notar ainda sem luzes que todos da banda já estão posicionados. A música clássica termina. O público grita em delírio. Começa a primeira canção de uma série de hinos que seriam desalojados de seus abrigos.
É uma música lenta e curta onde todos declamam juntos em português arcaico do século XIII. A falta de confiança no amor daquele tempo é despida pelas vozes presentes. As luzes permanecem apagadas. Inicia-se a segunda canção como se fosse continuação da primeira. É uma música de doze minutos dividida em quatro partes de andamentos diferentes. Uma viagem medieval escrita em metáforas sobre os dias de terror político, doença incurável e ausência de fé presente na época. A parte dois da canção estoura numa espécie de heavy metal exorcista. As luzes explodem no palco e no público. As pessoas pulam de forma alucinada. Há um brilho intransigente que queima a pele como roupas em chamas. Arde adocicando a alma como mar salgado nos olhos abertos. As luzes diminuem em consonância com a canção. Um momento de respiro longo e demorado se aproxima. A descrença e desilusão com aqueles dias são entoados. O inimigo metafórico é desafiado e avisado que ninguém desistirá de lutar. Na quarta parte, antes de terminar, antes de visualizar o fim, as pessoas concluem com suas vozes misturadas e embargadas nos cômodos da emoção que algo melhor ainda virá na morada de suas vidas.
E enquanto na pista as pessoas expressavam viver o indizível, enquanto sentiam o enlevo de bradar suas canções preferidas com os olhos quase sempre fechados nos momentos mais introspectivos, quando abertos deparavam-se com performances quase hipnóticas não ensaiadas, não planejadas de um artista-cantor sobre o palco.
Ele dançava como se um ataque epilético o visitasse em algumas canções. Dançava como se uma descarga disrítmica libertasse seus movimentos no ar. Dançava como se o chão fosse um colchão que amparasse a queda imprevisível da noite. Dançava como se o fio do microfone enrolado ao seu corpo o protegesse da fúria dos dias. Dançava como que desistisse de cantar. Dançava como se insistisse em sentir. Ele dançava como que se entregasse o espírito para a canção.
Ele cantava como se a voz não viesse dele mesmo. Cantava com a facilidade da chuva que cai e penetra a terra. Cantava como se trovejasse e no instante seguinte as nuvens do céu dessem passagem para os raios do sol. Cantava como se fizesse insistentemente geada em seu coração, para logo depois abrir o armário e escolher uma roupa de primavera. Cantava como se o frio fosse belo e cortante, e tratava o quente como momentos que se guardam no bolso do casaco para depois aquecer a manhã da memória. Ele cantava como pássaro triste que guarda esperança no amanhã.
As feições das pessoas exalavam mistos de encantos e assombros, como se a realização de um sonho viesse acompanhado de algum efeito sobrenatural. Os olhos embaçados como pára-brisa de carro em dia de chuva e as vozes encharcadas, pesadas como roupas que foram lavadas, mas ainda molhadas, encontravam naquele momento a maneira de se fazerem aliviadas e percebidas. As pessoas encontravam ali algum sinal da presença da vida delas mesmas.
Desperto de meu transe. Meu coração parece dois tambores socados em intervalos de um segundo. Abro meus olhos com ardência nas pálpebras, vejo dezenas de bolinhas verde limão explodirem ao redor. Há suor em minhas mãos e testa. Há ainda uma nítida sensação de realização presente.
Quase que ainda posso sentir a embriaguez do êxtase daquela apresentação. Quase que posso ouvir os timbres da execução final de cada música. Quase que posso abraçar o coro das vozes em uníssono, quase que posso me queimar com o pranto dos versos cantados durante cada canção. Quase que posso tocar a volúpia de tantos corações. Quase que posso falar com o silêncio lancinante daquela noite.
Isso foi há tanto tempo atrás que parecia que nunca mais iria acontecer de novo. Parecia.
Aconteceu no último 22 de março em São Paulo.
Seu nome: Radiohead.
Jânio Dias
5 comentários:
Se inveja matasse eu estaria dura e gelada antes do nascer do sol do dia 23!!! rs bjs, sds
Jânio, obrigada mais uma vez pela visita e comentários sempre tão atenciosos. Te favoritei...
"Escureço para clarear em outro momento da existência..."
Olha, de algum modo, há quilômetros de distância, depois de dias, eu também estive no show, e foi seu texto que me "teletransportou" .
Abraço!
Como o lema que uso caso alguém me pergunta sobre este show: "tudo o que voce ouvir falar, ver e ouvir sobre o show do Radiohead é verdade". E aqui está mais uma, muito bem sentida, vivida e escrita. Estivemos lá!!! Abração!
Oi Jânio, vim conhecer o seu blog e adorei o texto, tem muita qualidade e você diz coisas lindas. Obrigada por me visitar!!
Beijo,
Carpe Diem!!
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