domingo, 25 de novembro de 2007

O Livro dos Dias (ou Temporada das Flores)

imagem: Malevich Inspired by Jung Sook Nam


“Será que você vai saber
O quanto penso em você com o meu coração?”

Legião Urbana, em O Descobrimento do Brasil


Eu acho que desci os seis lances de escadas que separam o teatro do
Centro Cultural do Banco do Brasil no centro velho de São Paulo do seu térreo apenas para que o vento batesse em meu rosto e secasse as lágrimas ainda úmidas. Acho que evitei a companhia de Marcelo Rubens Paiva no elevador para que ele não percebesse meus olhos vermelhos e incontrolavelmente marejados.

Foi meu terceiro contato com o, digamos, dilacerante espetáculo
Renato Russo – A Peça, e ainda não me acostumei aos efeitos colaterais causados por ela.

Na primeira vez, lá em setembro, viajei até a cidade de Santos para conferir o espetáculo no gigante teatro Coliseu, com características barrocas. Um abrigo perfeito para o ego do artista que ali seria reconstituído. Era especial para mim ir até lá, havia presenciado duas apresentações da Legião Urbana naquela cidade, e a última vez havia coincidido de forma desastrosa com a história do último show da vida da banda. Ao final da peça, só sabia bater palmas ininterruptas para o talentoso ator Bruce Gomlevsky que interpreta e encarna de forma assustadora e convincente a alma e o espírito do poeta e cantor Renato Russo. Acho que fui a última pessoa a dar as costas para o palco do Coliseu naquela noite. Estava incrédulo com o que havia visto. Era incrédulo o que sentia.

O segundo e terceiro contato com a peça foi ontem e sexta, aqui na capital. Teatro pequeno, capacidade para 125 testemunhas apenas, quase uma apresentação fechada. Um convite para assistir com o rosto entre a janela da casa e o quintal da saudade da complexa, rica, dolorosa, lírica e atormentada alma do artista quando jovem.

Bruce Gomlevsky não canta bem, mas impressiona e marca a pele e a memória do espectador com gestos, jeitos, e olhares de um Renato Russo de carne e sentimentos tão vivos quanto o ator que aperta a mão de quem está na primeira fileira. Aproveita-se só um pouco do humor ferino do Renato para torná-lo o melhor amigo outra vez. Planta em mim a curiosidade de saber qual o meu ascendente ou pense no meu mapa astral. Faz as pessoas rirem como se ele nunca tivesse sido visto como um ser dramático, mas sim como comediante romântico. Faz eu senti-lo com o coração; o coração de quem viveu intensamente as histórias, as entrevistas, as dúvidas, as expectativas do novo disco e do próximo show. Faz eu ter vontade de dançar com a minha própria sombra. Mostra como híbridos são meus sentimentos e constante é a incoerência humana. Escancara nos rostos das pessoas a dor de quem não escolheu o sofrimento como opção. Inevitáveis são a perda e a partida.

Inevitáveis também parecem ser os efeitos colaterais do espetáculo. Algo tão dramaticamente belo, tão rico em detalhes que sempre figuraram a imaginação coletiva dos fãs, tão sincero e ético como toda homenagem póstuma deveria ser, ainda assim, machuca o coração de quem esteve tão perto. Agita e ferve a cabeça de quem só ouviu falar. Embaralha as lentes de quem só descobriu agora. É uma sensação que vem para reviver aquilo que se perdeu e lembrar o que poderia ter sido. Sensação que não sabe para onde vai depois que chega. É uma saudade cheia de preces.

Chega a ser difícil encarar o Renato Russo de Bruce Gomlevsky nos olhos. Ele é atormentado, carrega o mundo nas costas em forma de dor; é solitário e busca o sentido da vida em um novo amor. O amor é tempo que acalma a vida e esta é incompreensível. A vida dele é amor e assim como o tempo, ambos são fugazes. O olhar de Bruce Gomlevsky é persuasivo. O Olhar de Renato Russo também.

Hoje está difícil olhar para o quadro com a fotografia de um show na parede do quarto.

É mais fácil morrer para se sentir fantasma e ter coragem para perguntar sobre o título daquela canção; ou mesmo, assim, como velhos amigos, “como vai a vida, Renato?”.


Jânio Dias

5 comentários:

Anônimo disse...

Achei dificílimas aquelas duas horas de apresentação.
Cada música era como se eu talvez estivesse me lembrando de algo que nunca vivi.
Irei mais vezes, porque aquela dor (apesar de ser dor) me fez bem. Me fez recordar tempos realmente felizes e importantes da minha vida.
É um espetáculo realmente incrível.
Beijo!

Anônimo disse...

Amigo Janio....

Eu já li, mas preciso pensar um pouco para escrever, preciso, lembrar, dormir e sonhar com dias que passaram e tentar prever os dias que virão...
Depois de responder um e-mail enorme para os "amigos"...fica dificil falar sobre tudo o que disse, mas aguarde, logoe starei por aqui...
abraço
"A Legião Urbana somos nós"

Anônimo disse...

Teatro é vida, recordação, alegria, sentimento... é por isso que amo tanto e pra sempre...
Por ser uma arte ainda não tão respeitada e admirada em nosso país, é sempre maravilhoso ler relatos como o seu...
Bjs!!

Rogeria disse...

Tudo que vc escreveu sobre a peça foi incrível, assisti no dia 18/10/2008(quase um ano depois de vc)no João Caetano/RJ, saímos assim do teatro olhos vermelhos, chorei demais em Pais e Filhos, para mim foi uma viagem incrível pela alma intensa do Rnato!Eu que não pude assistir a Legião ao vivo, me senti em todos os shows em uma única noite!!!Saí querendo que não tivesse acabado, quando terminou a peça, a maioria da platéia ficou parada em pé esperando mais alguma coisa, só faltou o grito de MAIS UM!MAIS UM!!Fiquei emocionada,feliz e encantada com todo o talento do ator e com muitas saudades do Renato!!!!!!!!!!FORÇA SEMPRE!!!!

Rogeria disse...

Tudo que vc escreveu sobre a peça foi incrível, assisti no dia 18/10/2008(quase um ano depois de vc)no João Caetano/RJ, saímos assim do teatro olhos vermelhos, chorei demais em Pais e Filhos, para mim foi uma viagem incrível pela alma intensa do Rnato!Eu que não pude assistir a Legião ao vivo, me senti em todos os shows em uma única noite!!!Saí querendo que não tivesse acabado, quando terminou a peça, a maioria da platéia ficou parada em pé esperando mais alguma coisa, só faltou o grito de MAIS UM!MAIS UM!!Fiquei emocionada,feliz e encantada com todo o talento do ator e com muitas saudades do Renato!!!!!!!!!!FORÇA SEMPRE!!!!