“Eu vou chegar, pedir e agradecer
Pois a vitória de um homem
As vezes se esconde num gesto forte
Que só ele pode ver
Eu sou guerreiro, sou trabalhador
E todo dia vou encarar
Com fé em Deus e na minha batalha”
O Rappa, em Lado B, Lado A
Pois a vitória de um homem
As vezes se esconde num gesto forte
Que só ele pode ver
Eu sou guerreiro, sou trabalhador
E todo dia vou encarar
Com fé em Deus e na minha batalha”
O Rappa, em Lado B, Lado A
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Alguns homens curiosos e simples, de sabedoria bíblica ou de botequim, ainda enfeitam o varal flutuante das minhas recordações de menino pequeno.
Quando eu tinha em torno de cinco para seis anos, o meu pai acordava às três e meia da manhã para ir trabalhar. Em nome da independência da sua casinha própria, havia escolhido para morar um bairro recém criado numa cidade afastada da Capital, onde era o seu trabalho. Caminhava pela madrugada cerca de trinta minutos até o ponto de ônibus mais próximo, meia hora depois pegava um trem que desembocava na estação do Brás, para depois chegar até a estação da Luz. Seu caminho era iluminado pela determinação em não pagar aluguel. Na volta para casa dava uma passadinha no boteco do Seu Osmar, onde deixava parte de sua tensão diária antes de jantar. Eu só o veria na manhã seguinte, refletido na barra de wafer comprada no vagão do trem e deixada sobre o criado-mudo.
O Seu Juvenal trabalhava como pedreiro, havia chegado ao bairro antes do meu pai. Sua casinha era um cômodo só, um quadrado de quatro por quatro, num terreno de duzentos e cinqüenta metros quadrados, onde morava com quatros filhas e a esposa. Não era homem que bebia e freqüentava a pequena igreja evangélica. Era possível vê-lo à noite na rua bem vestido com seu paletó azul marinho, sua calça marrom e seu sapato Vulcabrás doado pelo patrão de alguma empreitada, segurando a bíblia embaixo do braço indo em direção ao culto. Sua luta contínua era renovar a fé para preencher seis pratos de comida diariamente.
Seu Didi era caminhoneiro, ficava longas semanas longe da família. Tinha duas meninas e um menino. Entre as meninas era mais apegado a mais velha, enquanto a segunda guardava os carinhos mais para a mãe. Adorava uma moda de viola genuína, com sabor de galinha caipira e cheiro de cuscuz recente. Nos raros fins de semana que conseguia separar para ficar no bairro, lotava a venda do Jurandir (homem ganancioso e egoísta, eterno candidato fracassado a vereador) acompanhado do violão e do seu filho. Era feita uma roda em volta dos dois onde os clássicos caipiras e seus dramas quase épicos eram revividos. Sua recompensa consistia em ter o copo constantemente abastecido de conhaque com sal e limão, para que a voz não o abandonasse.
Seu Roberto era Palmeirense fanático. O ônibus que dirigia por cerca de doze horas por dia tinha uma toalha verde estendida atrás de seu banco, como manto a protegê-lo de todo mal. Mesmo nas raras folgas não descansava nunca, ou tava complementando algum detalhe à sua casa, ou tava ajudando algum vizinho em alguma construção pelo bairro. Era muito requisitado para furar poços, possuía um método quase que espírita para determinar o local ideal onde estaria a água. Ele cortava um graveto em forma de Y e de repente o paulzinho começava a se mexer, como um detector de caça-fantasmas. Determinado o ponto preciso da cirurgia, desenhava o círculo simétrico no chão e começava a cavar, como um joão-de-barro a moldar seu abrigo na árvore, depois passava a ferramenta para o dono da casa. Seu Roberto não descansava nunca, sua vitalidade era fortalecida na ajuda ao próximo.
O Zé Cumpadre, além de habilidoso boleiro, era um agitador cultural. Promovia bailinhos na associação de amigos do bairro onde o rap e o break de Thaíde dividiam a noite com as músicas lentas para dançar agarradinho, que eram tema de novela ou filmes como Top Gun. Aos domingos pela manhã lotava um caminhão de gente para jogar futebol em algum outro bairro. Quando a idade e os efeitos da bebida avançaram um pouco mais, passou a organizar partidas na quadra da escola. Era simpático com as crianças aos velhinhos. Sem distinção, não chamava ninguém pelo nome, e sim por seu bordão pessoal: Compadre ou Comadre. Sua maior alegria era ser reconhecido na rua com um singelo cumprimento: - Bom dia Zé Cumpadre!
Seu Joaquim era dos homens mais simples e reservado, e muito querido pelos colegas. Quando me via na rua perguntava sempre sereno sobre meu pai. Nunca ficava em casa, mas era fácil encontrá-lo, ou no bar do Seu Osmar ou no botequim do Seu Damião. A diferença entre bar e botequim onde morávamos era que no primeiro era possível comprar pão. Em ambos era possível jogar sinuca, e o Seu Joaquim era mestre na arte de encaçapar. Seus reflexos melhoravam à medida que mais rabos-de-galo eram servidos. Quando não estava jogando, ficava encostado no canto do balcão observando à distância e bebendo devagarzinho sua pinguinha do alambique, tal qual passarinho a contemplar a imensidão preenchida. Quando dava o horário para o trabalho, passava em casa, pegava a bicicleta e depois pedalava trinta minutos até a fábrica de suco que tinha lá perto. Em momentos de maior euforia etílica, declamava Vinícius de forma trepidante, tal como o Fusca do Seu Didi ao passar pelas ruas de paralelepípedos do centro da cidade. Tinha um interesse cultural refinado que era visto com desconfiança e ignorância por seus pares. Gostava de repetir que o dia que a roseira balançasse pararia de beber. Roseira era sua forma poética de amante ao fazer carinho no amigo balcão (Numa tarde de sol de uma quarta-feira de trabalho, enquanto se despedia do último gole do dia, ao se distanciar do companheiro de madeira que apoiava o copo e sustentava parte do peso do seu corpo, a mesa de sinuca se moveu em sua frente, soltando-se de seu ponto fixo. Assustado, deu dois passos para trás apoiando-se outra vez na bancada amiga. Olhou em frente e ao soltar as mãos, o apoio do bar fugiu de seus dedos, correndo como se fosse uma esteira rolante em alta velocidade. Voltou a se apoiar, fechou os olhos, apertou-os forte como quem quer abri-los fora do mar, e quando tentou soltar-se outra vez, o bar era um bosque que rodopiava em sua volta. Voltou a apoiar as costas contra a parede e manter as mãos firmes sobre o balcão, como se fosse âncora que firmava a terra sob seus pés. Seu Joaquim ficou ali em alto mar por 12 horas, incapaz de abandonar a roseira para cumprir seu compromisso com o trabalho, até que o bar fechasse e os colegas o levassem para casa). Depois que a roseira balançou, Seu Joaquim abandonou o bar, nunca mais bebeu e passou a se dedicar à criação dos filhos pequenos. Cheguei a vê-lo lendo Fernando Pessoa em cima de um viaduto. Sei que hoje ele cuida de diversos jardins de um condomínio horizontal perto de sua casa, com zelo e cuidado reverenciado pelos moradores. Seu Joaquim foi meu soneto incompreendido da infância.
Esses homens singelos em suas expressões cotidianas, puros em suas intenções domésticas de sabedoria, arrojados na grandeza de enfeitar com os mesmos laços uma mesma vida inteira, comuns entre eles como o nome da bebida servida no balcão da igreja, ainda despertam em mim a curiosidade de criança que rouba conhecimento com os olhos.
De criança que avança para brincar de ganhar, que se esconde para os dedos não julgarem os atos dos adultos, que chora para que o sol ilumine a tristeza derradeira, que pula para que as barras da calça e as mangas da camisa avisem que o corpo está crescendo, que sua para que o tempo congele no infinito, que corre para que os pais saibam logo da beleza que aconteceu.
São todos homens impregnados de vícios e vicissitudes, enganos e acertos em suas maldizentes ou doces vidas.
Mas antes de qualquer coisa, dos bares ou dos céus, homens bons.
Jânio Dias
Quando eu tinha em torno de cinco para seis anos, o meu pai acordava às três e meia da manhã para ir trabalhar. Em nome da independência da sua casinha própria, havia escolhido para morar um bairro recém criado numa cidade afastada da Capital, onde era o seu trabalho. Caminhava pela madrugada cerca de trinta minutos até o ponto de ônibus mais próximo, meia hora depois pegava um trem que desembocava na estação do Brás, para depois chegar até a estação da Luz. Seu caminho era iluminado pela determinação em não pagar aluguel. Na volta para casa dava uma passadinha no boteco do Seu Osmar, onde deixava parte de sua tensão diária antes de jantar. Eu só o veria na manhã seguinte, refletido na barra de wafer comprada no vagão do trem e deixada sobre o criado-mudo.
O Seu Juvenal trabalhava como pedreiro, havia chegado ao bairro antes do meu pai. Sua casinha era um cômodo só, um quadrado de quatro por quatro, num terreno de duzentos e cinqüenta metros quadrados, onde morava com quatros filhas e a esposa. Não era homem que bebia e freqüentava a pequena igreja evangélica. Era possível vê-lo à noite na rua bem vestido com seu paletó azul marinho, sua calça marrom e seu sapato Vulcabrás doado pelo patrão de alguma empreitada, segurando a bíblia embaixo do braço indo em direção ao culto. Sua luta contínua era renovar a fé para preencher seis pratos de comida diariamente.
Seu Didi era caminhoneiro, ficava longas semanas longe da família. Tinha duas meninas e um menino. Entre as meninas era mais apegado a mais velha, enquanto a segunda guardava os carinhos mais para a mãe. Adorava uma moda de viola genuína, com sabor de galinha caipira e cheiro de cuscuz recente. Nos raros fins de semana que conseguia separar para ficar no bairro, lotava a venda do Jurandir (homem ganancioso e egoísta, eterno candidato fracassado a vereador) acompanhado do violão e do seu filho. Era feita uma roda em volta dos dois onde os clássicos caipiras e seus dramas quase épicos eram revividos. Sua recompensa consistia em ter o copo constantemente abastecido de conhaque com sal e limão, para que a voz não o abandonasse.
Seu Roberto era Palmeirense fanático. O ônibus que dirigia por cerca de doze horas por dia tinha uma toalha verde estendida atrás de seu banco, como manto a protegê-lo de todo mal. Mesmo nas raras folgas não descansava nunca, ou tava complementando algum detalhe à sua casa, ou tava ajudando algum vizinho em alguma construção pelo bairro. Era muito requisitado para furar poços, possuía um método quase que espírita para determinar o local ideal onde estaria a água. Ele cortava um graveto em forma de Y e de repente o paulzinho começava a se mexer, como um detector de caça-fantasmas. Determinado o ponto preciso da cirurgia, desenhava o círculo simétrico no chão e começava a cavar, como um joão-de-barro a moldar seu abrigo na árvore, depois passava a ferramenta para o dono da casa. Seu Roberto não descansava nunca, sua vitalidade era fortalecida na ajuda ao próximo.
O Zé Cumpadre, além de habilidoso boleiro, era um agitador cultural. Promovia bailinhos na associação de amigos do bairro onde o rap e o break de Thaíde dividiam a noite com as músicas lentas para dançar agarradinho, que eram tema de novela ou filmes como Top Gun. Aos domingos pela manhã lotava um caminhão de gente para jogar futebol em algum outro bairro. Quando a idade e os efeitos da bebida avançaram um pouco mais, passou a organizar partidas na quadra da escola. Era simpático com as crianças aos velhinhos. Sem distinção, não chamava ninguém pelo nome, e sim por seu bordão pessoal: Compadre ou Comadre. Sua maior alegria era ser reconhecido na rua com um singelo cumprimento: - Bom dia Zé Cumpadre!
Seu Joaquim era dos homens mais simples e reservado, e muito querido pelos colegas. Quando me via na rua perguntava sempre sereno sobre meu pai. Nunca ficava em casa, mas era fácil encontrá-lo, ou no bar do Seu Osmar ou no botequim do Seu Damião. A diferença entre bar e botequim onde morávamos era que no primeiro era possível comprar pão. Em ambos era possível jogar sinuca, e o Seu Joaquim era mestre na arte de encaçapar. Seus reflexos melhoravam à medida que mais rabos-de-galo eram servidos. Quando não estava jogando, ficava encostado no canto do balcão observando à distância e bebendo devagarzinho sua pinguinha do alambique, tal qual passarinho a contemplar a imensidão preenchida. Quando dava o horário para o trabalho, passava em casa, pegava a bicicleta e depois pedalava trinta minutos até a fábrica de suco que tinha lá perto. Em momentos de maior euforia etílica, declamava Vinícius de forma trepidante, tal como o Fusca do Seu Didi ao passar pelas ruas de paralelepípedos do centro da cidade. Tinha um interesse cultural refinado que era visto com desconfiança e ignorância por seus pares. Gostava de repetir que o dia que a roseira balançasse pararia de beber. Roseira era sua forma poética de amante ao fazer carinho no amigo balcão (Numa tarde de sol de uma quarta-feira de trabalho, enquanto se despedia do último gole do dia, ao se distanciar do companheiro de madeira que apoiava o copo e sustentava parte do peso do seu corpo, a mesa de sinuca se moveu em sua frente, soltando-se de seu ponto fixo. Assustado, deu dois passos para trás apoiando-se outra vez na bancada amiga. Olhou em frente e ao soltar as mãos, o apoio do bar fugiu de seus dedos, correndo como se fosse uma esteira rolante em alta velocidade. Voltou a se apoiar, fechou os olhos, apertou-os forte como quem quer abri-los fora do mar, e quando tentou soltar-se outra vez, o bar era um bosque que rodopiava em sua volta. Voltou a apoiar as costas contra a parede e manter as mãos firmes sobre o balcão, como se fosse âncora que firmava a terra sob seus pés. Seu Joaquim ficou ali em alto mar por 12 horas, incapaz de abandonar a roseira para cumprir seu compromisso com o trabalho, até que o bar fechasse e os colegas o levassem para casa). Depois que a roseira balançou, Seu Joaquim abandonou o bar, nunca mais bebeu e passou a se dedicar à criação dos filhos pequenos. Cheguei a vê-lo lendo Fernando Pessoa em cima de um viaduto. Sei que hoje ele cuida de diversos jardins de um condomínio horizontal perto de sua casa, com zelo e cuidado reverenciado pelos moradores. Seu Joaquim foi meu soneto incompreendido da infância.
Esses homens singelos em suas expressões cotidianas, puros em suas intenções domésticas de sabedoria, arrojados na grandeza de enfeitar com os mesmos laços uma mesma vida inteira, comuns entre eles como o nome da bebida servida no balcão da igreja, ainda despertam em mim a curiosidade de criança que rouba conhecimento com os olhos.
De criança que avança para brincar de ganhar, que se esconde para os dedos não julgarem os atos dos adultos, que chora para que o sol ilumine a tristeza derradeira, que pula para que as barras da calça e as mangas da camisa avisem que o corpo está crescendo, que sua para que o tempo congele no infinito, que corre para que os pais saibam logo da beleza que aconteceu.
São todos homens impregnados de vícios e vicissitudes, enganos e acertos em suas maldizentes ou doces vidas.
Mas antes de qualquer coisa, dos bares ou dos céus, homens bons.
Jânio Dias
7 comentários:
Homens bons, o mundo precisa deles. Nós precisamos.
Bonito texto.
Beijos.
O texto me fez visualizar perfeitamente cada um desses homens, com seus acertos e tropeços. Aí reside a grandeza da boa escrita. :)
Olá Amigo Jânio!
Conheço vários homens desses, com histórias muito semelhantes. Mas é sempre muito bom ouvir a história contada por você. Beijo!
Quase um roteiro de filme!
Belo e simples.
Homem bom você Jânio! beijo
Escrita doce e singela, sobre eventos simples e grandiosos (de uma grandiosidade própria das coisas simples). Que belo presente nesta manhã de sábado!
Querido Jânio (permita-me a intimidade dos amantes das letras)
Você foi um "presente" que encontrei nos cmentários do blog do Dauri Batisti... e que presente!
Encantei-me com seu perfil.
Depois, sem pedir licença, entrei na sua casa, e me perdi, ou me encontrei, não sei... só sei que amei!
Parabéns menino bonito, você escreve que nem gente grande (como diria Rubem Braga)
beijo e luz no seu caminho
É... a gente se convence a cada dia mais que as coisas simples sõ as mais belas da vida.
Talvez o tempo seja o melhor remédio.
Obrigada pelo comentário.
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