“Sempre precisei de um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto
E destes dias tão estranhos
Fica a poeira se escondendo pelos cantos.”
Legião Urbana, em O Teatro dos Vampiros
Olho em direção a rua e vejo o lampejo de duas crianças correndo, uma descalça e a outra usando uma camiseta branca de escola, descendo a ladeira olhando para cima e desviando dos carros e das ondulações da calçada desnivelada. Estico meu pescoço para fora da janela para ver o que está acontecendo. Cinco casas abaixo elas param. Pousam os olhos ofegantes para o alto em direção aos fios do poste de luz da rua. Paradas e com os cabelos desconsolados observam uma pipa enrolada, dançando e tremendo, presa a alta tensão.
Sinto minhas impressões e conhecimentos soltos no ar como a linha da pipa levada pelo vento. Minhas idéias não se aproximam mais, não se juntam, não colam mais uma na outra.
Vejo minhas lembranças presas a uma armação de bambu, leve, coberta de papel fino, suspensas no alto, distantes de mim, ligadas a uma corda imensa que não toco mais. Minha memória prendeu-se a dias que não mais tenho.
Minha memória é como uma amiga distante que passa por mim quando faço a curva na esquina da rua de casa. É o virar de costas para a roupa nova desfilada pela namorada, é o botão do casaco que caiu, é o pijama branco com as meias pretas na máquina de lavar. É o chá de erva-doce que ferveu, a omelete com azeitonas que passou do ponto, a louça empilhada sobre a mesa sem toalha, a pia molhada depois de deitar. Minha memória não fecha a porta da geladeira de madrugada ou apaga a luz do banheiro na saída. Minha memória me dá as costas quando a procuro de frente.
Minha memória não tem agenda e desconhece as semanas com feriados prolongados. Trai a segunda pensando exclusivamente na chegada da sexta. Engole as terças, desacredita das quartas e pisa de olhos fechados nas quintas. Respira a semana sem mastigar a essência da passagem dos dias, quer o fim sem se emocionar com o meio, quer a parte de dentro sem contornar o lado de fora. Quer alisar a casca e não ferir a pele. Quer a pressa da chegada e a ausência da partida. Minha memória é uma semana em descanso.
Minha memória virou uma estrada de alta velocidade durante um temporal. Não enxergo nada à frente, os limpadores não dão mais conta da força da água que cai. O vapor da minha respiração de olhos perdidos embaça os espelhos do carro. Os vidros parecem ter flocos de neve que engolem o caminho. Caminhões passam rente deixando um zumbido de poças arremessadas no guard-rail. Quando a tempestade passa há dois pedágios em níveis diferentes na rodovia com rotas distintas. As placas não orientam, só confundem o ralo das informações. É preciso escolher um sem descer do veículo, achar um retorno que a ponte esconde, dar marcha a ré na contramão. Minha memória está paralisada no acostamento e não lembra de usar o pisca alerta.
Minha memória é como algo que passou por mim quando ainda queria ter mais. É como a brisa fresca que surge no meio da tarde ao voltar do almoço na rua. É como acordar cedo sem conseguir levantar o corpo da cama. É banho quente interrompido quando falta luz no inverno. É jogo de futebol quando a bola bate na trave. É roupa seca no varal quando começa a chover. É um bom livro lido no metrô quando é preciso desembarcar. É o telefone celular que canta desesperadamente enquanto eu sonhava. É uma boa conversa com aquele bom chefe sem cerveja. É a sobremesa de gelatina de abacaxi da Dona Ana que não dura muito tempo quando conservada. Minha memória me abandona nos momentos mais doces.
As crianças abaixam os olhos para o poste e os fios. Optam por esquecer aquele papagaio.
Eu sou os olhos da memória daquela criança com camisa.
O conjunto do que deveria ser minha memória é hoje um mar de pipas embaralhadas no céu.
Jânio Dias
Sinto minhas impressões e conhecimentos soltos no ar como a linha da pipa levada pelo vento. Minhas idéias não se aproximam mais, não se juntam, não colam mais uma na outra.
Vejo minhas lembranças presas a uma armação de bambu, leve, coberta de papel fino, suspensas no alto, distantes de mim, ligadas a uma corda imensa que não toco mais. Minha memória prendeu-se a dias que não mais tenho.
Minha memória é como uma amiga distante que passa por mim quando faço a curva na esquina da rua de casa. É o virar de costas para a roupa nova desfilada pela namorada, é o botão do casaco que caiu, é o pijama branco com as meias pretas na máquina de lavar. É o chá de erva-doce que ferveu, a omelete com azeitonas que passou do ponto, a louça empilhada sobre a mesa sem toalha, a pia molhada depois de deitar. Minha memória não fecha a porta da geladeira de madrugada ou apaga a luz do banheiro na saída. Minha memória me dá as costas quando a procuro de frente.
Minha memória não tem agenda e desconhece as semanas com feriados prolongados. Trai a segunda pensando exclusivamente na chegada da sexta. Engole as terças, desacredita das quartas e pisa de olhos fechados nas quintas. Respira a semana sem mastigar a essência da passagem dos dias, quer o fim sem se emocionar com o meio, quer a parte de dentro sem contornar o lado de fora. Quer alisar a casca e não ferir a pele. Quer a pressa da chegada e a ausência da partida. Minha memória é uma semana em descanso.
Minha memória virou uma estrada de alta velocidade durante um temporal. Não enxergo nada à frente, os limpadores não dão mais conta da força da água que cai. O vapor da minha respiração de olhos perdidos embaça os espelhos do carro. Os vidros parecem ter flocos de neve que engolem o caminho. Caminhões passam rente deixando um zumbido de poças arremessadas no guard-rail. Quando a tempestade passa há dois pedágios em níveis diferentes na rodovia com rotas distintas. As placas não orientam, só confundem o ralo das informações. É preciso escolher um sem descer do veículo, achar um retorno que a ponte esconde, dar marcha a ré na contramão. Minha memória está paralisada no acostamento e não lembra de usar o pisca alerta.
Minha memória é como algo que passou por mim quando ainda queria ter mais. É como a brisa fresca que surge no meio da tarde ao voltar do almoço na rua. É como acordar cedo sem conseguir levantar o corpo da cama. É banho quente interrompido quando falta luz no inverno. É jogo de futebol quando a bola bate na trave. É roupa seca no varal quando começa a chover. É um bom livro lido no metrô quando é preciso desembarcar. É o telefone celular que canta desesperadamente enquanto eu sonhava. É uma boa conversa com aquele bom chefe sem cerveja. É a sobremesa de gelatina de abacaxi da Dona Ana que não dura muito tempo quando conservada. Minha memória me abandona nos momentos mais doces.
As crianças abaixam os olhos para o poste e os fios. Optam por esquecer aquele papagaio.
Eu sou os olhos da memória daquela criança com camisa.
O conjunto do que deveria ser minha memória é hoje um mar de pipas embaralhadas no céu.
Jânio Dias
2 comentários:
"...How happy is the blameless vestal’s lot! The world forgetting, by the world forgot. Eternal sunshine of the spotless mind..." - Pope
sua lembrança é, não apenas hoje, um mar de estrelas embaralhadas no céu; é menino que não sugere inclinar os olhos; aqui, prefere pelo papagaios.
Postar um comentário