quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Canção da Cavalgada

imagem: White Horse Hill, Uffington, 1992, Evangeline Dickson


“I used to think, as birds take wing,
they sing through life, so why can't we?”

R.E.M, em I'll Take The Rain


Eu não tenho certeza da idade que tenho. Talvez vinte e cinco ou cinqüenta e dois; talvez setenta e um ou apenas dezessete. Talvez nove ou cinqüenta e nove; às vezes três, outras trinta e três. O ano que nasci não passa de uma data marcada em um papel envelhecido e desfigurado, o qual não dou fé. O dia e o mês é apenas referência para quem quer saber meu signo ascendente. Meu aniversário é festejado para acender velas para a esperança. O ano que nasci foi submergido pelas agulhas do tempo.

Meu corpo é jovem como canto que estranha a primeira audição. Minha pele é lisa como sabonete novo que escorrega nas ondas planas da água na banheira. Meus pulmões inspiram o ar frio da madrugada para expirar o vento quente da novidade. Meus olhos sentem ao longe o brilho sutil da transparência, meus ouvidos repousam a atenção de segredos flamejantes. Meu falo desperta a cada suspiro feminino. Meu coração é frágil como silêncio que se expande no escuro. Minha idade tenra subestima meus desejos.

Eu fico sério com minha sobrinha como se fosse a filha que ainda não tenho. Eu vejo livros infantis e penso nos seus olhos fixos em meus lábios imaginando a fantasia que conto. Eu me preocupo se o garfo irá ferir sua pequena boca, se o chinelo não está apertado, se não era mais confortável uma camiseta regata, se o doce que a deixa feliz não prejudicará seus dentinhos. Eu quero que ela assista todas as animações que edificam minha alma infantil. Eu me transformo nas rodinhas de sua bicicleta enquanto ela não descobre o equilíbrio. Eu não a respeito se ela adormece em meus braços, a quero correndo e sofrendo o risco de ralar os joelhos para depois eu assoprar. Minha idade quer duplicar as lembranças de quando era criança.

Eu insisto com a amiga virtual para que saltemos da tela do computador. Nossa distância é um muro de teclas de onde envio meu sorriso para receber o dela. Peço para que pule comigo e me encontre. Quero identificar a cor de seu cabelo, conhecer a altura de seus olhos, ouvir o movimento de seus lábios sobre o dia que teve. Quero que nosso abraço se transforme em aroma que perdure na imagem de nossa busca. Quero que nossa conversa resulte no vento que impulsiona a vela da lembrança de nossa adolescência. Minha idade é uma simulação para a plenitude do crescimento.

Eu convenço um velho amigo a revelar suas fotos digitais no bairro mais distante. Faço-o descer duas estações de metrô antes. Quero andar ao seu lado por mais tempo, quero sua companhia rara em uma tarde de segunda feira de pouco sol. Convido-o para assistir uma comédia romântica européia no cinema cult da cidade. Ele resiste, acha que vão nos confundir com algum casal de namorados. Adoro a idéia e jogo o braço por cima de seus ombros. Nossa amizade é um caso de amor antigo, explico a quem finge que não olha. Alongo o caminho da volta para que nosso passeio eternize em algum momento de nossa vida adulta. Minha idade fortalece o caráter da amizade.

Minha mente enlouquece com os devaneios criados pelo homem. Às vezes quer ser criança escondida embaixo do véu da mesa, outras vezes quer a frente da batalha armada. Às vezes quer brincar de soldadinho de chumbo, outras vezes quer rasgar o título de eleitor. Às vezes quer ciranda no asfalto, outras vezes quer desistir de seguir. Minha idade é o meio-fio que equilibra minhas decisões.

Eu ouço V da Legião com a maturidade de quem sempre ergueu o sorriso na despedida. Em cada compasso de sua amargura medieval um pouco mais de mim solidifica-se na incerteza sóbria de dois cavalos-marinhos. Em cada verso lisérgico um abraço epiléptico dança comigo com olhos marejados. Em cada espasmo de relâmpago cansado uma voz trêmula acaricia minhas orelhas durante a canção. Em cada lembrança repentina do que é composta a tristeza sinto o alívio cintilante da saudade dos dias que virão. Às vezes tenho a idade do exílio.

Eu leio Virginia com a idade do amargo por entre as gengivas. A cada frase com pausa acentuada um pedaço do que sempre desisti em mim toma contornos de um blues épico. A cada ponto de encerramento vislumbro um fim atenuador para a dor do que ela me transforma. Um deserto de almas que preenchem a sala ao som de Radiohead. Um cemitério em festa com a chegada da torcida organizada. A visão do horizonte sem contornos de terra maciça. Às vezes eu tenho a idade das trevas.

Meu corpo tem o sono agitado de um velho em cadeira de rodas que rodopia entre bicicletas e skates no parque. A força dos meus braços altera o movimento padrão do eixo circular que suporta minha massa muscular e ossos. Sou todo matéria que interfere e confunde, que perturba e agride, que provoca e acaricia. Sou todo fogo e areia. Chuva em noites árduas. Minha idade rija ainda molha a terra.

Eu tenho certeza da idade que tenho. Minha idade é a soma de tudo o que vivo menos todos que ainda não vivi.

Jânio Dias

2 comentários:

Anônimo disse...

E, afinal, quanto dá essa soma?

Moço, como havia te dito, achei esse um dos melhores textos que você já escreveu. E não desmotive pela falta de comentários, pois quem cala consente.

Beijos, ótimo fds!

(Não esquece de me dizer quanto dá a soma)

Anônimo disse...

Comentar seus posts sem eu parecer "babaca" tá ficando cada vez mais difícil!

Culpa de seu extraordinário e cada vez melhor, estilo de escrever e tb de minha velha e limitada compreensão lingüística e amorosa... rs

Eu nunca vou ter idade suficiente para te alcançar...

bjs