domingo, 12 de abril de 2009

Uma Canção (Quase) Sem Palavras

imagem: arquivo pessoal


“Ainda não é tarde pra dizer o que eu sinto
O tempo é só uma invenção
Às vezes eu quase consigo entender tudo assim
Muita coisa que eu digo é apenas para mim
As coisas mais simples são mesmo difíceis de se dizer”

Marcelo Bonfá, em Todos os Sonhos do Mundo


Quando eu ainda era bem pequeno, minha mãe gostava de me produzir para tirar fotos. Colocava o sapato mais novo, a camisa de botão mais bonita e uma calça que não tivesse remendos. Penteava meu cabelo de lado, formando uma franja escorrida na testa, escolhia um pé de fruta como fundo, e pedia pro Seu Juvêncio fazer a foto. Às vezes convidava minha vizinha (uns dois anos mais nova que eu) para ser meu par. Quando a foto ficava pronta, minha mãe escrevia atrás: “vovó querida, lembrança do seu querido netinho”. Ainda anotava a data e mencionava minha idade.

Por anos foi essa a minha convivência com minha avó materna, uma correspondência sem palavras através de imagens congeladas em papel fotográfico. Apenas fragmentos de meu crescimento, da troca dos meus dentes, da constância do meu sorriso.

Uma vez quando eu estava com nove anos minha mãe viajou para visitá-la. Uma longa viagem de ônibus de três dias até o interior do estado da Paraíba, mais alguns quilômetros de chão até chegar a seu sítio. Uma viagem ao centro da saudade de minha mãe. Em mim a curiosidade de menino em conhecer a mãe de minha mãe. Um curto encontro, mas suficiente para eternizar nas conchas da memória a figura da mulher que não se cansou em trazer vida ao mundo.

Meus dedos davam voltas em minhas mãos para contar todos os seus filhos. Ela deu a luz 16 vezes, onde apenas 8 sobreviveram. Uma epopéia gestacional em uma época de ausência de recursos dignamente humanos. Uma heróica história de procriação onde o ser humano supera obstáculos obscuros da natureza. A figura de minha avó sempre flutuou em minha imaginação como a força do vento rompendo a sustentação da resistência de uma barreira.

Ainda retenho nubladas imagens no sótão da recordação dessa visita. Lembro da alegria conjunta das pessoas se reunindo a noite no sítio para na casa de farinha ralar a mandioca, e na saída voltar para suas casas apenas com a própria farinha como pagamento pelo trabalho. Lembro que não havia energia elétrica e que a luz noturna era forjada com lamparinas a querosene. A cozinha tinha um fogão feito de barro onde o gás era a lenha que queimava. A água para beber era buscada em balde no açude, onde também era lavada a roupa. Havia um gado magro que se alimentava de cajus caídos do pé. Não havia televisão e a parede da sala era enfeitada com um retrato antigo do meu avô com minha avó.

Com a exceção de dois filhos, todos os outros deixaram o sítio e migraram para a cidade grande. Mas minha avó nunca titubeou duas vezes na remota possibilidade de deixar seu lar. Nem mesmo quando doente aceitou os pedidos para que viajasse para tratamento. Uma pedra sólida e teimosa fincada no agreste de sua terra.

Ano passado, em passeio de uma semana pela cidade de João Pessoa, liguei para uma tia e tomei nota de como chegar ao sítio Riacho do Boi, na pequenina cidade de Lagoa do Mato, morada há mais de 50 anos de minha avó. Queria fazer uma visita surpresa, mas minha tia sabiamente me desaconselhou. Disse que poderia ser perigoso para um coração de 76 anos o susto e a alegria de uma chegada repentina, e que a avisaria antes. Concordei e fiquei feliz com a possibilidade de vinte anos depois rever a força do vento. Um encontro veloz para eternizar nos lençóis da lembrança a figura da mulher que nunca quis deixar seu solo.

Encontrei uma senhora forte e bonita, de voz alta, grave e firme, de cabelos levemente brancos, longos e presos, em sua casa simples de janelas verdes; elegantemente trajada em um vestido de algodão azul estampado com flores. Uma senhora lúcida de opiniões convergentes com seu tempo e lugar.

Seu assunto preferido são as histórias de quem tristemente já se foi. Sua maior alegria são as boas notícias dos filhos distantes. Seu único medo é o receio de que invasores tomem conta de sua terra quando for obrigada a partir.

Hoje há energia elétrica no sítio, as plantas são mais verdes, e a falta de água não aflige tanto como antes. A televisão tem parabólica e na antiga cozinha de fogão a lenha há uma geladeira moderna com dispenser de água e gelo. Os pés de caju ganharam a companhia de carambolas. O gado parece mais saudável e tão livre quanto antes. A casa de farinha está abandonada, a tecnologia dispersou a celebração do trabalho comunitário.

Na parede da sala diversos quadros de filhos, netos e bisnetos decoram a saudade da distância; como uma canção (quase) sem palavras.

Vinte anos depois eu não encontrei a força do vento; encontrei o aroma, as folhas e os frutos.

Jânio Dias

5 comentários:

Verônica disse...

Você é tão doce com essas lembranças!

Quando puder entra no meu blog, tem uma surpresa pra vc.

Beijos.

Renata disse...

Estava há meses esperando que sua canção virasse post e virou! e que belo post! vou ler de novo... rs bjs e boa semana

Maria disse...

Ah que beleza de relato... Deu pra ver o lugar, ela e o que se sente.

Algumas coisas não mudam...outras são fantásticas por mudar!

Meu beijo

Jacinta Dantas disse...

Que delícia te ler agora. Voltar, voltar para reencontrar o que tem de si na avó que ficou. Voltar para renovar a força e saborear "o aroma, as flores e os frutos".
A força do vento? essa a gente é quem faz.
Um abraço

Bruno Maiorquino* disse...

Os lugares e saudades do interior... Os sentimentos e a vó do interior... do nosso interior: coisa boa de sentir.


Abraço!