The only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind”
U2, em Walk On
“Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?”
The Beatles, em When I'm Sixty-Four
'
Dona Ana nasceu em 31 de dezembro, há 64 anos atrás. Quem a vê pela primeira vez cozinhando tem a sensação de 55, quem tem o privilégio de saborear qualquer de suas tentadoras sobremesas acha que ela não passa de 48, quem a viu no show do O Teatro Mágico acha que não tem mais do que 42. Dona Ana rejuvenesce a cada novo olhar.
Dona Ana possui o dom da sedução culinária. Conquista imediatamente pelos bocejos do estômago. Seja uma peixada portuguesa, uma irrecusável feijoada, a simplicidade do improviso da macarronada, o encanto do cheiro do arroz com feijão, a imbatível omelete de batatas, ou o irrecusável cafezinho fresquinho, Dona Ana desmonta a casa para criar na visita a vontade de voltar sempre. Há visitas que remoem seus sorrisos por não poderem ficar.
Dona Ana é uma figura simples do lar com coração de mãe que não cansa de acariciar. Dia destes havia sobre a estante de sua sala ao lado do rádio, um cd intitulado Pena Branca, Cantar Caipira. Peguei-o com a curiosidade da beleza que me trouxe à memória as manhãs caipiras de domingo na tevê que meu pai não perdia em casa. Quando abri o encarte, uma surpresa pra mim: estava autografado. Carinhosamente dedicado para aquela senhora que estava na cozinha providenciando um cheiroso café. Perguntei espantado a ela sobre aquela proeza (já que ela nunca havia mencionado o gostar caipira) e ela me respondeu com a naturalidade mãe da espontaneidade: “Ah, esse cd o Pena Branca veio aqui em casa com a esposa dele que é minha amiga e deu pra mim. Você gosta dele? Vou ligar agora pra casa deles e contar que você gosta dele.”
Dona Ana tem a alma agitada como criança superativa e docemente irresponsável como adolescente apaixonado. Meses atrás ela torceu um dos tornozelos, não foi ao médico e se automedicou. Todo o pé inchava um pouco mais a cada vez que alguém a repreendia pelo descuido. De tanto que a amolaram resolveu ir ao hospital, recebeu algumas broncas como se fosse a mãe do paciente que demorou para levar o filho. Foi claramente advertida a ficar em repouso: “nada de colocar o pé no chão”. Ao chegar em casa ela obedeceu prontamente o médico. Deve ter ficado umas seis horas descançando para em seguida preparar a lista do supermercado e arrastar a perna de um lado para outro da casa que tem escada que leva ao quarto. Recusou-se nos primeiros dias a usar muletas, alguém pensando em seu conforto até sugeriu uma cadeira de rodas, o que foi também recusado. Logo a dor aumentou e todo o pé mais meia perna foram engessados. Resolveu então aceitar as muletas e fazer compras no mercado com um carrinho motorizado. O gesso quebrou e a planta do pé trincou em dois lugares. Foi ameaçada de internação e cirurgia, mas desafiou a idade e o tempo para ajudar a enfeitar a festa de fim de ano da empresa. Bem que o médico tentou, mas não conseguiu parar a Dona Ana.
Dona Ana renova a cumplicidade e confiança com as gerações mais recentes. Em um 1º de abril não muito distante, a neta de apenas 13 anos ligou para ela com uma suposta novidade: estava namorando. A neta arteira já havia ligado para uma Tia onde recebeu de reação um preocupante e abalado “você já contou isso para o seu pai?”. Dona Ana, no lumiar de sua sobriedade e modernidade, comemorou com a neta: “Que ótimo meu amor! E como ele é?”.
Dona Ana sempre trabalhou com vendas, mas desarmada da intenção de iludir. Talvez venha daí o aperfeiçoamento do carisma para cativar as pessoas, a sensibilidade para a atenção minuciosa com alguém ainda desconhecido, o alerta para não faltar o pão, a paciência para primeiro acomodar e depois se servir, a insistência para que provem o doce de sua simpatia. Dona Ana sempre vendeu cuidado.
Dona Ana é da época dos retratos em preto e branco, da elegância discreta em trajes de banho, dos chapéus como símbolo de inocência e progresso, das luvas que tocavam com delicadeza ou desafiavam com aspereza, da dança no salão de olhos fechados e respeito nas mãos, do suspiro suspenso ao avistar o pretendente mais bonito. Dona Ana é de uma época onde a paixão tinha o som leve da neblina.
Dona Ana é vendaval de sentimentos em casa cheia e mesa farta.
Jânio Dias
4 comentários:
Muito bom ler-te novamente. esta tua crônica combinou certinho com a manhã linda que se abriu aqui em Vitória depois de dias de chuva. Bom, muito bom ler "Dona Ana".
Abraço.
Linda homenagem a minha querida tia Ana!!!
Oi Janio...
Nossa!!! Vc me deixou emocionada,será que sou merecedora o tantos elogios??rsrsr Vc e mesmo um poeta, gosto muito de vc e faço as coisas com carinho para quem eu gosto sou muito transparente. Obrigada mais uma vez!!! Bjos de sua sogras srssssr
Dona Ana existe mesmo? Parece-me aquelas senhoras em que o tempo passa e não deixa marcas, só sabedoria. Deve ser um privilégio conviver com ela.
Mas sabe de uma coisa, Menino Bonito, pessoas especiais costumam atrair-se mutuamente...
Quem sabe um dia eu ainda não conheça de tomar café junto, você e Dona Ana?
O Futuro guarda tanta coisa boa!
beijos para os dois
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