sábado, 10 de janeiro de 2009

Dona Ana

foto: arquivo pessoal
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“Love is not the easy thing
The only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind”

U2, em Walk On


“Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?”

The Beatles, em When I'm Sixty-Four

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Dona Ana nasceu em 31 de dezembro, há 64 anos atrás. Quem a vê pela primeira vez cozinhando tem a sensação de 55, quem tem o privilégio de saborear qualquer de suas tentadoras sobremesas acha que ela não passa de 48, quem a viu no show do O Teatro Mágico acha que não tem mais do que 42. Dona Ana rejuvenesce a cada novo olhar.

Dona Ana possui o dom da sedução culinária. Conquista imediatamente pelos bocejos do estômago. Seja uma peixada portuguesa, uma irrecusável feijoada, a simplicidade do improviso da macarronada, o encanto do cheiro do arroz com feijão, a imbatível omelete de batatas, ou o irrecusável cafezinho fresquinho, Dona Ana desmonta a casa para criar na visita a vontade de voltar sempre. Há visitas que remoem seus sorrisos por não poderem ficar.

Dona Ana é uma figura simples do lar com coração de mãe que não cansa de acariciar. Dia destes havia sobre a estante de sua sala ao lado do rádio, um cd intitulado Pena Branca, Cantar Caipira. Peguei-o com a curiosidade da beleza que me trouxe à memória as manhãs caipiras de domingo na tevê que meu pai não perdia em casa. Quando abri o encarte, uma surpresa pra mim: estava autografado. Carinhosamente dedicado para aquela senhora que estava na cozinha providenciando um cheiroso café. Perguntei espantado a ela sobre aquela proeza (já que ela nunca havia mencionado o gostar caipira) e ela me respondeu com a naturalidade mãe da espontaneidade: “Ah, esse cd o Pena Branca veio aqui em casa com a esposa dele que é minha amiga e deu pra mim. Você gosta dele? Vou ligar agora pra casa deles e contar que você gosta dele.”

Dona Ana tem a alma agitada como criança superativa e docemente irresponsável como adolescente apaixonado. Meses atrás ela torceu um dos tornozelos, não foi ao médico e se automedicou. Todo o pé inchava um pouco mais a cada vez que alguém a repreendia pelo descuido. De tanto que a amolaram resolveu ir ao hospital, recebeu algumas broncas como se fosse a mãe do paciente que demorou para levar o filho. Foi claramente advertida a ficar em repouso: “nada de colocar o pé no chão”. Ao chegar em casa ela obedeceu prontamente o médico. Deve ter ficado umas seis horas descançando para em seguida preparar a lista do supermercado e arrastar a perna de um lado para outro da casa que tem escada que leva ao quarto. Recusou-se nos primeiros dias a usar muletas, alguém pensando em seu conforto até sugeriu uma cadeira de rodas, o que foi também recusado. Logo a dor aumentou e todo o pé mais meia perna foram engessados. Resolveu então aceitar as muletas e fazer compras no mercado com um carrinho motorizado. O gesso quebrou e a planta do pé trincou em dois lugares. Foi ameaçada de internação e cirurgia, mas desafiou a idade e o tempo para ajudar a enfeitar a festa de fim de ano da empresa. Bem que o médico tentou, mas não conseguiu parar a Dona Ana.

Dona Ana renova a cumplicidade e confiança com as gerações mais recentes. Em um 1º de abril não muito distante, a neta de apenas 13 anos ligou para ela com uma suposta novidade: estava namorando. A neta arteira já havia ligado para uma Tia onde recebeu de reação um preocupante e abalado “você já contou isso para o seu pai?”. Dona Ana, no lumiar de sua sobriedade e modernidade, comemorou com a neta: “Que ótimo meu amor! E como ele é?”.

Dona Ana sempre trabalhou com vendas, mas desarmada da intenção de iludir. Talvez venha daí o aperfeiçoamento do carisma para cativar as pessoas, a sensibilidade para a atenção minuciosa com alguém ainda desconhecido, o alerta para não faltar o pão, a paciência para primeiro acomodar e depois se servir, a insistência para que provem o doce de sua simpatia. Dona Ana sempre vendeu cuidado.

Dona Ana é da época dos retratos em preto e branco, da elegância discreta em trajes de banho, dos chapéus como símbolo de inocência e progresso, das luvas que tocavam com delicadeza ou desafiavam com aspereza, da dança no salão de olhos fechados e respeito nas mãos, do suspiro suspenso ao avistar o pretendente mais bonito. Dona Ana é de uma época onde a paixão tinha o som leve da neblina.

Dona Ana é vendaval de sentimentos em casa cheia e mesa farta.

Jânio Dias

4 comentários:

Dauri Batisti disse...

Muito bom ler-te novamente. esta tua crônica combinou certinho com a manhã linda que se abriu aqui em Vitória depois de dias de chuva. Bom, muito bom ler "Dona Ana".

Abraço.

Anônimo disse...

Linda homenagem a minha querida tia Ana!!!

Unknown disse...

Oi Janio...
Nossa!!! Vc me deixou emocionada,será que sou merecedora o tantos elogios??rsrsr Vc e mesmo um poeta, gosto muito de vc e faço as coisas com carinho para quem eu gosto sou muito transparente. Obrigada mais uma vez!!! Bjos de sua sogras srssssr

Katia De Carli disse...

Dona Ana existe mesmo? Parece-me aquelas senhoras em que o tempo passa e não deixa marcas, só sabedoria. Deve ser um privilégio conviver com ela.
Mas sabe de uma coisa, Menino Bonito, pessoas especiais costumam atrair-se mutuamente...
Quem sabe um dia eu ainda não conheça de tomar café junto, você e Dona Ana?
O Futuro guarda tanta coisa boa!
beijos para os dois