quarta-feira, 28 de maio de 2008

Longe Dela

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imagem: Venus and Anchises, 1889-90, de Sir William Blake Richmond


“Diga a ela que me viu na rua
Que eu caminhava muito devagar
Que eu olhava para todos para enxergar
Tanto espaço dentro de mim”

Nenhum de Nós, em Diga a Ela

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Toda vez que minhas letras insistem em não manchar o papel, minha existência estremece os sentidos. Minha voz fica rala, meus olhos ficam enviesados, minhas opiniões tornam-se frágeis. Meus pensamentos dispersam no ar como bocejos. Minhas palavras são aspiradas para dentro de boca fechada, desaparecem sufocadas na garganta. Engulo lagartas que não viram borboletas.

Quando paro de escrever é porque a vida abafou meu grito sem saudação. Escureceu meu encanto, secou minhas motivações.

Quando paro de escrever é porque minha boca curvou-se ao silêncio dos olhos e fez sigilo de minha solidão.

Quando paro de escrever é porque deixei de ser compreendido entre o limite da realidade pessoal e o da ficção social. Minha verdade é opor-se ao que é real sem deixar de sentir a imaginação. O que invento é parte insólita do que sou. Minhas mentiras têm intenção de impulsionar a roda da dúvida. Minhas memórias são expressões lúdicas e ácidas dos dias que virão. Minha criação imaginosa quer ser borboletas literárias no céu.

Quando paro de escrever é porque a amizade sangrou sua capacidade de resistir. O vinho que reuniu velhos amigos tem gosto de suco de morangos azedos. A amizade debilitada mastiga vidro vermelho.

Quando paro de escrever é porque me desprendi do compromisso de ser fiel comigo mesmo. Paro de expor o que sinto para procurar nos lábios de outras letras a ternura de ser sentido. Paro de inventar desejos subjuntivos para me entregar às luxúrias de outras visões.

Quando paro de escrever é porque meu interesse pela pornografia virou vício incontrolável. Minha dependência é cura para o que não sou mais capaz de realizar. Minha capacidade de autoflagelação é insaciável.

Quando paro de escrever é porque o ciúme sobrepôs o amor com luvas escorregadias carregadas de espinhos. Quebrou os pratos que alimentavam a confiança. Furou os balões que mantinham suspenso a liberdade.

Quando paro de escrever é porque a vida extraviou o brilho de minhas exclamações.

Quando paro de escrever é porque meus olhos passaram a ignorar a sabedoria das sobrancelhas e fixar pouso na retina do que passou.

Quando paro de escrever é porque minhas lágrimas apagaram as linhas que desenhavam a forma da casa; e o choro dela queimou o sapé do telhado.

Quando paro de escrever é como um amor que fez de sua existência despedida.

Quando paro de escrever é porque não sei mais como dizer em minhas linhas virtuais como ela é parte de tudo que escrevo, de tudo que opino, de tudo que desejo. Metade de tudo que respiro. Mais da metade de tudo que vivo.

Quando paro de escrever é porque quero apreciar o instante magnânimo da ausência.

Quando paro de escrever sou analfabeto do mundo.

Quando paro de escrever morro um pouco mais longe dela.

Quando volto a escrever é porque ainda há muito para viver perto dela.


Jânio Dias