quinta-feira, 24 de julho de 2008

O Soneto dos Bons Homens

imagem: The Knife Grinder, 1890, de August Muller


“Eu vou chegar, pedir e agradecer
Pois a vitória de um homem
As vezes se esconde num gesto forte
Que só ele pode ver

Eu sou guerreiro, sou trabalhador
E todo dia vou encarar
Com fé em Deus e na minha batalha”

O Rappa, em Lado B, Lado A
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Alguns homens curiosos e simples, de sabedoria bíblica ou de botequim, ainda enfeitam o varal flutuante das minhas recordações de menino pequeno.

Quando eu tinha em torno de cinco para seis anos, o meu pai acordava às três e meia da manhã para ir trabalhar. Em nome da independência da sua casinha própria, havia escolhido para morar um bairro recém criado numa cidade afastada da Capital, onde era o seu trabalho. Caminhava pela madrugada cerca de trinta minutos até o ponto de ônibus mais próximo, meia hora depois pegava um trem que desembocava na estação do Brás, para depois chegar até a estação da Luz. Seu caminho era iluminado pela determinação em não pagar aluguel. Na volta para casa dava uma passadinha no boteco do Seu Osmar, onde deixava parte de sua tensão diária antes de jantar. Eu só o veria na manhã seguinte, refletido na barra de wafer comprada no vagão do trem e deixada sobre o criado-mudo.

O Seu Juvenal trabalhava como pedreiro, havia chegado ao bairro antes do meu pai. Sua casinha era um cômodo só, um quadrado de quatro por quatro, num terreno de duzentos e cinqüenta metros quadrados, onde morava com quatros filhas e a esposa. Não era homem que bebia e freqüentava a pequena igreja evangélica. Era possível vê-lo à noite na rua bem vestido com seu paletó azul marinho, sua calça marrom e seu sapato Vulcabrás doado pelo patrão de alguma empreitada, segurando a bíblia embaixo do braço indo em direção ao culto. Sua luta contínua era renovar a fé para preencher seis pratos de comida diariamente.

Seu Didi era caminhoneiro, ficava longas semanas longe da família. Tinha duas meninas e um menino. Entre as meninas era mais apegado a mais velha, enquanto a segunda guardava os carinhos mais para a mãe. Adorava uma moda de viola genuína, com sabor de galinha caipira e cheiro de cuscuz recente. Nos raros fins de semana que conseguia separar para ficar no bairro, lotava a venda do Jurandir (homem ganancioso e egoísta, eterno candidato fracassado a vereador) acompanhado do violão e do seu filho. Era feita uma roda em volta dos dois onde os clássicos caipiras e seus dramas quase épicos eram revividos. Sua recompensa consistia em ter o copo constantemente abastecido de conhaque com sal e limão, para que a voz não o abandonasse.

Seu Roberto era Palmeirense fanático. O ônibus que dirigia por cerca de doze horas por dia tinha uma toalha verde estendida atrás de seu banco, como manto a protegê-lo de todo mal. Mesmo nas raras folgas não descansava nunca, ou tava complementando algum detalhe à sua casa, ou tava ajudando algum vizinho em alguma construção pelo bairro. Era muito requisitado para furar poços, possuía um método quase que espírita para determinar o local ideal onde estaria a água. Ele cortava um graveto em forma de Y e de repente o paulzinho começava a se mexer, como um detector de caça-fantasmas. Determinado o ponto preciso da cirurgia, desenhava o círculo simétrico no chão e começava a cavar, como um joão-de-barro a moldar seu abrigo na árvore, depois passava a ferramenta para o dono da casa. Seu Roberto não descansava nunca, sua vitalidade era fortalecida na ajuda ao próximo.

O Zé Cumpadre, além de habilidoso boleiro, era um agitador cultural. Promovia bailinhos na associação de amigos do bairro onde o rap e o break de Thaíde dividiam a noite com as músicas lentas para dançar agarradinho, que eram tema de novela ou filmes como Top Gun. Aos domingos pela manhã lotava um caminhão de gente para jogar futebol em algum outro bairro. Quando a idade e os efeitos da bebida avançaram um pouco mais, passou a organizar partidas na quadra da escola. Era simpático com as crianças aos velhinhos. Sem distinção, não chamava ninguém pelo nome, e sim por seu bordão pessoal: Compadre ou Comadre. Sua maior alegria era ser reconhecido na rua com um singelo cumprimento: - Bom dia Zé Cumpadre!

Seu Joaquim era dos homens mais simples e reservado, e muito querido pelos colegas. Quando me via na rua perguntava sempre sereno sobre meu pai. Nunca ficava em casa, mas era fácil encontrá-lo, ou no bar do Seu Osmar ou no botequim do Seu Damião. A diferença entre bar e botequim onde morávamos era que no primeiro era possível comprar pão. Em ambos era possível jogar sinuca, e o Seu Joaquim era mestre na arte de encaçapar. Seus reflexos melhoravam à medida que mais rabos-de-galo eram servidos. Quando não estava jogando, ficava encostado no canto do balcão observando à distância e bebendo devagarzinho sua pinguinha do alambique, tal qual passarinho a contemplar a imensidão preenchida. Quando dava o horário para o trabalho, passava em casa, pegava a bicicleta e depois pedalava trinta minutos até a fábrica de suco que tinha lá perto. Em momentos de maior euforia etílica, declamava Vinícius de forma trepidante, tal como o Fusca do Seu Didi ao passar pelas ruas de paralelepípedos do centro da cidade. Tinha um interesse cultural refinado que era visto com desconfiança e ignorância por seus pares. Gostava de repetir que o dia que a roseira balançasse pararia de beber. Roseira era sua forma poética de amante ao fazer carinho no amigo balcão (Numa tarde de sol de uma quarta-feira de trabalho, enquanto se despedia do último gole do dia, ao se distanciar do companheiro de madeira que apoiava o copo e sustentava parte do peso do seu corpo, a mesa de sinuca se moveu em sua frente, soltando-se de seu ponto fixo. Assustado, deu dois passos para trás apoiando-se outra vez na bancada amiga. Olhou em frente e ao soltar as mãos, o apoio do bar fugiu de seus dedos, correndo como se fosse uma esteira rolante em alta velocidade. Voltou a se apoiar, fechou os olhos, apertou-os forte como quem quer abri-los fora do mar, e quando tentou soltar-se outra vez, o bar era um bosque que rodopiava em sua volta. Voltou a apoiar as costas contra a parede e manter as mãos firmes sobre o balcão, como se fosse âncora que firmava a terra sob seus pés. Seu Joaquim ficou ali em alto mar por 12 horas, incapaz de abandonar a roseira para cumprir seu compromisso com o trabalho, até que o bar fechasse e os colegas o levassem para casa). Depois que a roseira balançou, Seu Joaquim abandonou o bar, nunca mais bebeu e passou a se dedicar à criação dos filhos pequenos. Cheguei a vê-lo lendo Fernando Pessoa em cima de um viaduto. Sei que hoje ele cuida de diversos jardins de um condomínio horizontal perto de sua casa, com zelo e cuidado reverenciado pelos moradores. Seu Joaquim foi meu soneto incompreendido da infância.

Esses homens singelos em suas expressões cotidianas, puros em suas intenções domésticas de sabedoria, arrojados na grandeza de enfeitar com os mesmos laços uma mesma vida inteira, comuns entre eles como o nome da bebida servida no balcão da igreja, ainda despertam em mim a curiosidade de criança que rouba conhecimento com os olhos.

De criança que avança para brincar de ganhar, que se esconde para os dedos não julgarem os atos dos adultos, que chora para que o sol ilumine a tristeza derradeira, que pula para que as barras da calça e as mangas da camisa avisem que o corpo está crescendo, que sua para que o tempo congele no infinito, que corre para que os pais saibam logo da beleza que aconteceu.

São todos homens impregnados de vícios e vicissitudes, enganos e acertos em suas maldizentes ou doces vidas.

Mas antes de qualquer coisa, dos bares ou dos céus, homens bons.

Jânio Dias

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O Amor em Maiúsculas

imagem: arquivo pessoal


“Não preciso de modelos
Não preciso de heróis
Eu tenho meus amigos
E quando a vida dói
Eu tento me concentrar
N'um caminho fácil

Sou eu mesmo e serei eu mesmo então
E eu queria que o tempo
Pudesse voltar dessa vez
Oh yeah"

Legião Urbana, em Comédia Romântica


Há um leve nevoeiro sobre o instante impreciso da memória. Uma cortina fina e branca, quase amarela, rente à retina da lembrança, impregnada pelo perfume suave e ardente da adolescência.

Há em minha frente espasmos em slow motion de imagens de quando o corpo era capaz num primeiro impulso para o alto, como que fosse dar um toco na bola de basquete com o quadril auxiliado pelas pernas, o pulo sobre o muro da linha do trem passando para o outro lado, e depois o andar tranqüilo sobre os trilhos até a plataforma da estação. Para eu chegar até o centro da cidade para encontrar a minha turma, era preciso antes do desejo de estar presente, não pagar a condução.

Eu gostava de olhar para a minha turma como cavaleiros do século XIII, seres nobres e honrados, fiéis às suas regras e finalidades. Tínhamos o nosso próprio lema que era declamado em forma de canção e impresso em adesivo colante. Uns vestiam-se todo de preto e roupa de couro, outros de branco com jeans com buracos enormes. Quase não bebíamos por falta de dinheiro, logo investíamos todo nosso potencial criativo em cantar e discutir as canções da banda preferida. Havia também as leituras de poesia e prosa, nossa maior expressão de diferenciação. Éramos diferentes porque antes de tudo, cultivávamos a amizade e a paixão por nós e pela arte.

Havia as meninas, corpos brancos e morenos com pêlo, que em sua maioria (ou para preservar a amizade ou para celebrar a diversidade) formavam par com alguém fora do grupo. O inverso também era verdadeiro, bem como o oposto do inverso. Logo pares duradouros se formaram e o grupo ficou maior, unido e íntimo, como família italiana nas cenas de festa em filme de máfia. Uma máfia que organizava celebrações.

Tantos anos já se passaram parecendo não ser tantos assim. Às vezes parece que foi ontem, outras vezes há tanto tempo atrás. A cada ano um estágio diferente da vida foi iniciado, cumprido, modificado ou nem tanto assim. Os namoros, os trabalhos, os cursos universitários, as desistências, as formaturas, os sonhos, os casamentos, as revisões, o retorno ao começo. Os novos frutos do amor unido. Uma enxurrada de desafios dando forma à vida adulta, tomando o lugar das coisas que mais gostávamos de ter por perto, produzindo espaço para outras formas de amar. O desafio de encarar a beleza do novo, de insistir no passado, de manter a coerência do que tentávamos ser. A vontade de romper a linha do tempo e viver tudo outra vez.

Desde o dia que entraram na minha vida, nenhum inverno foi igual ao anterior.

Há como que intacto no semblante sereno da memória, como que casaco abotoado, a imagem da camiseta da banda preferida estampada com o desenho da flor que não se sabia se era um lírio ou uma flor-de-papoula. Na dúvida constrangedora da imprecisão da resposta, um apelo lírico: - Essa flor é amor-perfeito, caro senhor.

A festa numa casa noturna onde todos foram embora porque o lugar não permitia meninas de 15 anos; os encontros nos bares da região do Bexiga sem dinheiro no bolso, pedia-se uma porção de queijo e um refrigerante para a noite toda, até o metrô abrir as 5h; o primeiro amigo secreto e o presente improvisado em papel de celofane vermelho, eram flores roubadas de uma casa com jardim; a vaquinha para convencer a gerente do flat/hotel a alugar um quarto para 12 pessoas passarem a noite; o dia em que uma das meninas mais bonitas apareceu, e muito rápido um de nós disse: – Essa será minha futura esposa.

A festa de aniversário quando a menina de quinze fez 18 e todos apareceram de surpresa, gesto ensaiado com os pais da amiga; os cafés da manhã na casa do casal amigo, os churrascos revesados e as macarronadas da dona Tereza; a viagem de ônibus para um sítio, enquanto todos cantavam Mamonas Assassinas no fundão, um de nós passava mal mais ao meio com necessidade extrema de fazer xixi, mas o ônibus não tinha banheiro e não fazia parada no caminho, o amigo tentou fazer no vidro de gatorade e não conseguiu, o motorista foi obrigado a parar o veículo no meio da rodovia; a despedida de solteiro do amigo que de tanto que já ouvi repetidamente os detalhes, às vezes acho que eu também estava lá; a viagem para o casamento do outro amigo no interior do Paraná como padrinho - a primeira vez que usei um terno. – Você nunca esteve tão bonito!

A imagem do amigo músico tocando violão pela primeira vez em volta de uma fogueira improvisada, que ia a show fora do estado só com o dinheiro de ida e vendia camisetas para a comida e a volta, a lembrança do dia que fomos apresentados por um amigo meu que era amigo de infância dele e a descoberta que já o conhecia pelo adereço que usava na cabeça: - Cara, eu conheço esse boné!

A primeira vez da menina do Rio entre nós e a estranheza e os risos que causou ao de repente começar pular e cantar para logo se explicar: - Ué gente, olha a placa, estamos na Rua da Alegria. Os nossos telefonemas de madrugada e minha mãe me repreendendo do quarto: - Olha a conta... Desliga o telefone e vai dormir menino. Mas a gente queria sempre mais.

Às vezes é tão cansativo tentar lembrar, mas nenhum inverno possui o mesmo sabor sem que sejam recontadas algumas das histórias mais importantes de nossas vidas. O amor ainda mora ao lado.

Eu queria poder contar a história de cada um deles sob a minha visão sempre estreita e amplificada, ingênua e romanceada de como as coisas aconteceram, de como conheci cada um lá atrás, no auge de nossas descobertas e inocência. Mas a memória não é mais a mesma e o espaço aqui não seria suficiente para detalhar os campos indefinidos e indecifráveis da paixão.

Acho que sinto assim porque é julho. O mês em que alguns inocentes e sonhadores jovens se conheceram e ficaram... De repente... Como dizer?

- AMIGOS.

Há um cheiro aveludado no ar de saudade guardada.

Jânio Dias

sábado, 12 de julho de 2008

Le Scaphandre et le Papillon

imagem: The Red Sphinx, de Odilon Redon


“Sometimes I feel like I don't know
Sometimes I feel like checking out.
I wanna get it wrong
Can't always be strong
And love, it won't be long.”

U2, em Ultraviolet (Light My Way)
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Ele está sentado em sua cadeira de frente para o mar. Há um vento forte e frio que passa por ali. Está bem agasalhado e com o corpo coberto por mais de uma manta. A praia está deserta, há apenas ele, a ex-esposa, os filhos e gaivotas no céu que parecem procurar outra estação. As crianças estão brincando incansavelmente na areia, a ex-esposa dividindo seus cuidados e preocupação entre ele e os filhos. As gaivotas são um rastro rápido no azul do céu que deixou de ser infinito.

Seu olhar parado e aparentemente sempre perdido, ora seguindo o circulo da passagem dos movimentos infantis, ora admirando o carinho contemplativo da ex-esposa, tem atenção especial para as ondas que vão e retornam em sinfonia rítmica. Parecem levá-lo em mente e espírito às lembranças mais raras e ricas de sua vida, às lembranças dos mais belos sonhos não vividos quando criança, dos momentos mais intensos realizados quando adulto.

Em suas andanças pelos caminhos desnivelados da memória, há entre tantas paradas e comitivas emocionais, a visita surpresa à mulher amada ainda inconsciente pelo sono. O toque gentil em seu rosto, o arrumar cuidadoso dos cabelos, o beijo carinhoso sobre as pálpebras adormecidas. O mergulho para debaixo do cobertor da amada sem tirar as roupas, o encontro com seu corpo nu e quente. A saída correndo para a praia como dois velocistas apostando corrida para ver quem se molharia primeiro. A queda sobre a água morna da manhã, o rolar abraçado a ela sobre a areia como se fosse o Marlon Brando em “A Um Passo da Eternidade”.

Há os dias de sol mais felizes envolto com as crianças, os passeios de carro em meio ao verde e as montanhas francesas, os cabelos esvoaçantes dos filhos sentindo o vento como parte imediata da vida, as tardes nubladas de sábado com as cores mais vivas que um dia poderia ter. As brincadeiras de rodar no ar como pião descontrolado mas equilibrado sobre o chão, o levantar vôo com a tontura dos giros, o largar do corpo na confiança de que o pai estará do lado certo no momento da queda. O amparo irremediável para as dúvidas e as certezas que só os filhos têm.

As visitas ao pai já velhinho e com dificuldade de andar, com dificuldades de lembrar o pensamento articulado nos últimos quinze segundos. A facilidade de fazer graça com o início do alzheimer, a facilidade de sorrir para os amores que existiram e não serão esquecidos, a graça da dureza de não admitir ser barbeado pelo próprio filho. A delicadeza da certeza de ainda ser o mais belo dos homens barbeados.

O passeio solitário de madrugada por ruas de um bairro mexicano. As luzes de néon convidando para entrar e viver o azeite e o escorregadio da perdição, seguir reto e encontrar a esquerda uma vitrine gigante com a imagem de Lourdes. Observá-la atentamente como se de repente a fé surgisse e fosse possível passar a acreditar. Como se naquele momento surgisse uma espécie de redenção, como se fosse possível pedir um mínimo de conforto para os dias ainda mais difíceis que surgirão. Como que seu espírito fosse ali liberto do escafandro em que vivia e passasse a voar lépido como borboleta. Para ele a crença na fé dependia da existência comprovada de milagres. E sua vida não era um milagre.

Seus dias sempre haviam sido ricos em disposição atlética, em energia melódica, em beleza intensa. Seus dias tinham o brilho rasgante dos raios do sol por entre as cópulas das árvores. Seus dias tinham o fogo ardente da terra do nunca. Seus dias tinham cores do espírito santo.

Mas numa tarde de sábado nublado e feliz, um acidente cardiovascular deixou-o sem movimentos, sem sentidos. Cabeça, boca, mãos, dedos, pés, nada está lá. Ou todos estão lá. O coração bate, seus pulmões aspiram e espiram. Sua capacidade intelectual está intacta. Compreende, fica bravo, triste; sente saudade, remorso, tem senso de humor e gostaria de seduzir a fisioterapeuta. Mas seu tronco cerebral foi desconectado. Nenhuma reação a estímulos, nenhuma expressão facial. Nem sorriso de bom dia, nem lágrima de alegria. Nem o olho direito. Apenas o esquerdo.

Ele se comunica com o olho esquerdo. Uma piscadela para sim, duas para não. Dita para uma assistente a história de sua vida através de movimentos com a pálpebra esquerda.

Ele diz o que quer a quem ama com um piscar de olho.

Jânio Dias

quinta-feira, 3 de julho de 2008

The Constant

imagem: Score sheet of 'Moonlight Sonata', de Ludwig van Beethoven


“Enquanto for... um berço meu
Enquanto for... um terço meu
Serás vida... bem vinda
Serás viva... bem viva
Em mim”

"Os opostos se distraem
Os dispostos se atraem"

O Teatro Mágico, em Realejo


Sempre que eu lembro de você, um cheiro de mar agitado e gentil invade a sala.

Eu ainda era tão pequeno quando era obrigado a ouvir por tabela a rádio AM que minha mãe sintonizava, ainda era tão cru como ser assistindo a televisão no sábado a tarde o programa daquele sujeito que jogava bacalhau no público, e via meu pai olhar aquelas mulheres que dançavam alegremente e o faziam sorrir como que se algo acontecesse dentro dele, como se elas despertassem alívio para a semana de trabalho que havia passado, e você lá, do outro lado, com sua voz feroz e lírica, cheio de energia e ideais expondo seu talento e já algumas contradições do seu gênio para um público incapaz de entendê-lo.

E eu do lado de cá, na sala de casa enquanto minha mãe passava o pano de chão na cozinha e meu pai se deleitava no sofá com algo que só agora entendo (ou um pouco mais de tempo depois passei a entender), curioso com aqueles movimentos descompassados do seu corpo, com aqueles óculos que deixavam seus olhos flamejantes tão pequenos, com aquela fúria que invadia a sala e me fazia sorrir sem entender por que sorria.

Ainda um tanto pequeno, adorava observar seu discurso quando o apresentador do programa alternativo na outra emissora vinha lhe questionar sobre o futuro da nação. Era tão racional, político e incendiário, parecia que fagulhas saiam da sua boca e atiçavam o senso adormecido de justiça dos jovens daquela época.

Eu te ouvia no rádio como se fossem dois artistas diferentes abordando assuntos semelhantes. Sua voz me parecia tão distinta naquela outra canção que eu era capaz de apostar com quem quisesse que você, não era você. Eu não admitia que você fosse capaz de falar de colonização e paixão na mesma canção, não acreditava que você falaria de medos e outros sentimentos de forma tão... digamos, desnuda. Um pensador essencialmente político não seria capaz de amar de maneira tão explicita. Demorei a entender que desde sempre tudo o que você falava remetia a algo maior.

Já um pouco mais crescido, ficava fascinado com o encarte do vinil nas mãos. Eram os livros de poesia que eu não entendia traduzidos. Cada letra da canção era lida e repetida de olhos fechados até que fosse possível cantá-las antes que você saltasse da vitrola. Cada verso era rabiscado no caderno da escola como se houvesse ali a essência de todo aprendizado. A professora de português que tocava violão e colocava versos seus para interpretá-los, além de a mais bonita, era também a única e mais importante.

A menina linda de 16 anos que vestia uma camiseta branca de manga longa com o logotipo do fã-clube estampado sobre o coração, quando subia a rua do condomínio carregando embaixo dos braços os discos do Smiths (que você tanto adorava e tinha como referência e inspiração), fazia o coração disparar em desespero mudo. A língua ficava paralisada só de olhar para ela. Quando ela falava meus olhos mergulhavam em suas palavras e as roubava para mim. Sugava sua sabedoria sobre você e sua obra como se devorasse um livro religioso, como se aprendesse nela através de você um pouco mais sobre o sentido de existir.

A primeira vez que fiz uma entrevista de emprego misturei dezenas de frases de suas canções no texto. O entrevistador ignorante disse que minha redação era quase um poema, mas o outro candidato à vaga era mais objetivo. Fiquei feliz com o quase. Passei a brincar ainda mais com seus versos que já eram quase meus.

A minha primeira namorada não concordou que eu fosse sem ela a um show seu. Acho que ela não entendia a paixão, e disse: “ou eu ou o show”. Fiquei sem namorada e tive a primeira grande realização da minha vida. O mundo se mostrou mais interessante e acolhedor naquela noite em Sorocaba.

Você não tem a mínima idéia, mas conheci algumas das pessoas mais importantes da minha vida porque elas também gostavam e tinham o mesmo interesse em você. Quando você estava mais presente, eles eram muitos. Hoje são poucos, mas essencialmente raros em beleza. São amigos que quando se encontram brilham o suave da poesia e o amargo do tempo. Assim como você costumava se comportar com os seus: doce e ácido, displicente e generoso em sua diversidade.

Aquela vez que eu lhe escrevi, você quis saber mais sobre mim. Minha timidez e nossa distância não permitiram que nos encontrássemos. Mesmo assim senti-me feliz e orgulhoso com o interesse, afinal, aquela carta o criticava, mostrava-me decepcionado com suas atitudes, irritado e triste com o seu comportamento naquele último show, exatamente o oposto de quem não admite as falhas e evita enxergar criticamente seu ídolo; exatamente o comportamento oposto do artista que se acostumou a viver rodeado de jubilo. Aquela carta mostrou que minha fé em você seria uma constante.

Desde que você se foi, eu vivo meus dias em busca de uma nova descoberta, uma nova perspectiva, uma nova equação diferencial e exata. Uma nova constante. Algo que possa ser a diferença entre o que se passou e iluminar o insosso do hoje. Algo que traga o despertar do novo com poesia e sabedoria. Algo que crie harmonia e alimente a inteligência dos meus vestígios.

Eu tenho você como lembrança rara de tudo que aprendi, de tudo que eu poderia ser. Eu tenho você como mensagem verdadeira para o que devo fazer quando a luz se afasta dentro do túnel. Eu tenho você como garantia da vida que adormeceu por segundos antes das seis. Eu tenho você como forma de amor que não dilui com a saudade ou a tempestade. Eu tenho você como a menor distância entre o fechar dos olhos e o apertar das mãos.

E sempre que eu lembro de você, meus olhos viram mar que invade a calçada, mas não transbordam mais.

Jânio Dias