quinta-feira, 17 de julho de 2008

O Amor em Maiúsculas

imagem: arquivo pessoal


“Não preciso de modelos
Não preciso de heróis
Eu tenho meus amigos
E quando a vida dói
Eu tento me concentrar
N'um caminho fácil

Sou eu mesmo e serei eu mesmo então
E eu queria que o tempo
Pudesse voltar dessa vez
Oh yeah"

Legião Urbana, em Comédia Romântica


Há um leve nevoeiro sobre o instante impreciso da memória. Uma cortina fina e branca, quase amarela, rente à retina da lembrança, impregnada pelo perfume suave e ardente da adolescência.

Há em minha frente espasmos em slow motion de imagens de quando o corpo era capaz num primeiro impulso para o alto, como que fosse dar um toco na bola de basquete com o quadril auxiliado pelas pernas, o pulo sobre o muro da linha do trem passando para o outro lado, e depois o andar tranqüilo sobre os trilhos até a plataforma da estação. Para eu chegar até o centro da cidade para encontrar a minha turma, era preciso antes do desejo de estar presente, não pagar a condução.

Eu gostava de olhar para a minha turma como cavaleiros do século XIII, seres nobres e honrados, fiéis às suas regras e finalidades. Tínhamos o nosso próprio lema que era declamado em forma de canção e impresso em adesivo colante. Uns vestiam-se todo de preto e roupa de couro, outros de branco com jeans com buracos enormes. Quase não bebíamos por falta de dinheiro, logo investíamos todo nosso potencial criativo em cantar e discutir as canções da banda preferida. Havia também as leituras de poesia e prosa, nossa maior expressão de diferenciação. Éramos diferentes porque antes de tudo, cultivávamos a amizade e a paixão por nós e pela arte.

Havia as meninas, corpos brancos e morenos com pêlo, que em sua maioria (ou para preservar a amizade ou para celebrar a diversidade) formavam par com alguém fora do grupo. O inverso também era verdadeiro, bem como o oposto do inverso. Logo pares duradouros se formaram e o grupo ficou maior, unido e íntimo, como família italiana nas cenas de festa em filme de máfia. Uma máfia que organizava celebrações.

Tantos anos já se passaram parecendo não ser tantos assim. Às vezes parece que foi ontem, outras vezes há tanto tempo atrás. A cada ano um estágio diferente da vida foi iniciado, cumprido, modificado ou nem tanto assim. Os namoros, os trabalhos, os cursos universitários, as desistências, as formaturas, os sonhos, os casamentos, as revisões, o retorno ao começo. Os novos frutos do amor unido. Uma enxurrada de desafios dando forma à vida adulta, tomando o lugar das coisas que mais gostávamos de ter por perto, produzindo espaço para outras formas de amar. O desafio de encarar a beleza do novo, de insistir no passado, de manter a coerência do que tentávamos ser. A vontade de romper a linha do tempo e viver tudo outra vez.

Desde o dia que entraram na minha vida, nenhum inverno foi igual ao anterior.

Há como que intacto no semblante sereno da memória, como que casaco abotoado, a imagem da camiseta da banda preferida estampada com o desenho da flor que não se sabia se era um lírio ou uma flor-de-papoula. Na dúvida constrangedora da imprecisão da resposta, um apelo lírico: - Essa flor é amor-perfeito, caro senhor.

A festa numa casa noturna onde todos foram embora porque o lugar não permitia meninas de 15 anos; os encontros nos bares da região do Bexiga sem dinheiro no bolso, pedia-se uma porção de queijo e um refrigerante para a noite toda, até o metrô abrir as 5h; o primeiro amigo secreto e o presente improvisado em papel de celofane vermelho, eram flores roubadas de uma casa com jardim; a vaquinha para convencer a gerente do flat/hotel a alugar um quarto para 12 pessoas passarem a noite; o dia em que uma das meninas mais bonitas apareceu, e muito rápido um de nós disse: – Essa será minha futura esposa.

A festa de aniversário quando a menina de quinze fez 18 e todos apareceram de surpresa, gesto ensaiado com os pais da amiga; os cafés da manhã na casa do casal amigo, os churrascos revesados e as macarronadas da dona Tereza; a viagem de ônibus para um sítio, enquanto todos cantavam Mamonas Assassinas no fundão, um de nós passava mal mais ao meio com necessidade extrema de fazer xixi, mas o ônibus não tinha banheiro e não fazia parada no caminho, o amigo tentou fazer no vidro de gatorade e não conseguiu, o motorista foi obrigado a parar o veículo no meio da rodovia; a despedida de solteiro do amigo que de tanto que já ouvi repetidamente os detalhes, às vezes acho que eu também estava lá; a viagem para o casamento do outro amigo no interior do Paraná como padrinho - a primeira vez que usei um terno. – Você nunca esteve tão bonito!

A imagem do amigo músico tocando violão pela primeira vez em volta de uma fogueira improvisada, que ia a show fora do estado só com o dinheiro de ida e vendia camisetas para a comida e a volta, a lembrança do dia que fomos apresentados por um amigo meu que era amigo de infância dele e a descoberta que já o conhecia pelo adereço que usava na cabeça: - Cara, eu conheço esse boné!

A primeira vez da menina do Rio entre nós e a estranheza e os risos que causou ao de repente começar pular e cantar para logo se explicar: - Ué gente, olha a placa, estamos na Rua da Alegria. Os nossos telefonemas de madrugada e minha mãe me repreendendo do quarto: - Olha a conta... Desliga o telefone e vai dormir menino. Mas a gente queria sempre mais.

Às vezes é tão cansativo tentar lembrar, mas nenhum inverno possui o mesmo sabor sem que sejam recontadas algumas das histórias mais importantes de nossas vidas. O amor ainda mora ao lado.

Eu queria poder contar a história de cada um deles sob a minha visão sempre estreita e amplificada, ingênua e romanceada de como as coisas aconteceram, de como conheci cada um lá atrás, no auge de nossas descobertas e inocência. Mas a memória não é mais a mesma e o espaço aqui não seria suficiente para detalhar os campos indefinidos e indecifráveis da paixão.

Acho que sinto assim porque é julho. O mês em que alguns inocentes e sonhadores jovens se conheceram e ficaram... De repente... Como dizer?

- AMIGOS.

Há um cheiro aveludado no ar de saudade guardada.

Jânio Dias

11 comentários:

Livinha Gi disse...

Olá!
Que bom que gostou...
E eu gostei ainda mais...da sua visita!
Obrigada!
Meus textos sempre parecem esperar uma melodia mesmo, para se tornarem canções...é o que muitos dizem... mas...quem sabe...neh? rs

Beijo com carinho

Dauri Batisti disse...

JANIO, só tenho uma palavra a dizer sobre este teu texto.Mas vou repetir tres vezes: bonito, bonito, bonito. Vou repetir outras tres: paraéns,parabéns, parabéns.

Anônimo disse...

Porque a vida só vale com amigos!

Beijos.

Anônimo disse...

é estranho... eu q escrevo tanto, nunca sei ao certo o que te escrever... deve ser em razão do seu estilo, da sua linguagem... apurada, delicada, uma verdadeira escrita de amor... acho q isso inibe uma "técnica" como eu... é, preciso exercitar... :) linda homenagem aos seus bons amigos! bj.

Livinha Gi disse...

Como sempre, muito bom ter um comentário seu em meus textos. E esse ultimo de suma importância...
Estava lendo esse seu "Amor em maiúscula", há um livro lançado há pouco chamado "Amor em minúscula", quero muito ler, ao ver lembrei-me de ti..rs

Beijo com carinho

Renata disse...

BELO POST!

Anônimo disse...

O que será que vamos lembrar daqui mais alguns anos....?
Não quero pensar nisso agora, pois sinceramente ainda me acho jovem...hahahaha
Mas pensando bem, acho que foi 23 de julho de 94, pq agora tenho quase certeza que a festa do Coração foi 16, pois foi eu quem fiz os convites e o número 16 veio bem vivo na memória...
Sendo assim , parabéns para todos nós e para você que não nos deixa esquecer daquilo que ainda não passou.
Ai, é tanta coisa pra falar, tantas lembranças e emoções.
É o espaço não seria suficiente para o tamanho de nossa amizade
Abraços meu amigo, meu eterno amigo...

Anônimo disse...

16 ou 23

Duas datas
Nunca lembro ao certo
Mas o mesmo mês
Sempre me lembro do mês
Lembro outras coisas também
Das esperas e chegadas
Os abraços e os beijos
Castigos aos atrasados
Festas e reuniões
Pizza e hot-dog
Casas e mais casas
Algumas bem perto
Outras bem longe
Pousos quase sem permissão
Maus tratos ao violão
Flash quase profissional
Churrasco e futebol
Oculos deixados de lado
Aparelhos arrancados
Fofinhos que já foram magros
Alias, bem magros
Caminhadas intermináveis
Jornal e entrevista
Sorteio e poesia
Cartas que pensávamos
Que era mentira
Pintura em camisa
Lembro até de uma "Tiazinha"
Nossa lembro muito coisa
Mas a data, essa me escapa
Mas o mês eu lembro
Mas essa data ?
Se tiver que escolher uma
Fico com 23
Simplesmente porque hoje é 22
E amanha posso lembrar
De tudo outra vez

Jânio Dias disse...

Dauri, Verônica e Re: muito OBRIGADO!

Lívia, eu também quero lê-lo! Gostei muito da sua lembrança.

Má... você deveria comentar mais por aqui. Faria-me muito bem. Obrigado pelo carinho.

Amigo Paulo... sinto saudades de você por aqui. Seu poema é ótimo, fez-me lembrar de muitas outras coisas... tinhamos até Jornal!!! A ficha só não caiu (eu disse ficha?!!??? (risos)) para "Cartas que pensávamos / Que era mentira". Mas depois você me conta.

BEIJOS!

Iuri Gabriel disse...

Haha, engraçado. Quando escrevi aquilo, não pensei em MEtal contras as nuvens, foi um impulso meu de querer confortar alguém.

MAs é verdade! Haha. Aliás, O trecho que eu quero tatuar, é do Caio:
"Que seja doce"

Anônimo disse...

Amigo Jânio B. Seus textos sempre me emocionam e, por incrível que pareça, me emocionam por me trazerem à memória a futuro: nunca mais será o mesmo, nunca mais reuniões, nunca mais histórias... só lembranças e saudades do que eu nunca vi...Um beijo.