quinta-feira, 26 de junho de 2008

El Amor Después Del Amor

imagem: La Belle Dame Sans Merci, 1926, de Frank Cadogan Cowper


“Tem riso que parece choro,
tem choro que é pura alegria
Tem dia que parece noite
e a tristeza parece poesia
(...)
Descobrir o verdadeiro sentido das coisas
É querer saber demais
Querer saber demais”

O Teatro Mágico, em
Sonho de Uma Flauta



O que vem depois de um dia de sol escaldante? Ou depois de uma noite quase congelante? O que vem depois do cobertor ou da tatuagem?

O que vem depois da palavra ou do afago? Do fogo ou da lágrima? O que vem depois da angústia ou da insônia?

O que vem depois da curva rápida, ou uma rua sem saída? Ou depois do tropeço no pedregulho, ou do buraco na calçada? O que vem depois da sirene ou dos faróis?

O que vem depois do olho no retrovisor?

O que vem depois da sina ou da malícia? Da caça ou da captura? O que vem depois da ciranda ou do pega-pega?

O que vem depois do soluço, ou do afogamento? Da cobrança ou da desculpa? O que vem depois do pedido ou do perdão?

O que vem depois do nó na garganta ou do olhar desviado? Da trégua ou do reencontro? O que vem depois da saudade ou da despedida?

O quem depois da chuva ou do arco íris?

O que vem depois do remédio ou da lição? Do som ou da fúria? O quem vem depois da fonte ou da inspiração?

O que vem depois da entrega ou da fuga? Da rede ou do vento? O que vem depois do olhar ou da memória?

O que vem depois da carne ou da febre? Do óbvio ou do ódio? O que vem depois do suspiro ou da encenação?

O que vem depois do silêncio?

O que vem depois da vontade ou da luta? Da caminhada ou do parque? O que vem depois do salto ou dos pés no chão?

O que vem depois da tristeza ou da inocência? Do riso ou dos lábios? O que vem depois do escuro ou da resignação?

O que vem depois do abraço ou da mordida? Do alarme ou da chegada? O que vem depois da fome ou do desejo?

O que vem depois da tarde ou do beijo?

O que vem depois do deserto ou do agreste? Da sede ou do açude? O que vem depois da aspereza ou da ferrugem do portão?

O que vem depois dos quadros ou da rachadura na parede? Da pintura ou da escavação? O que vem depois da campainha ou do telefone?

O que vem depois da chave ou da porta? Da janela ou da fenda? O que vem depois do telhado ou da lua?

O que vem depois do número da casa?

O que vem depois do alarde ou do descanso? Da bebida ou da música, da tontura ou da ausência? O que vem depois do vômito ou da descarga?

O que vem depois da maré ou da bonança? Da poeira ou do gol, do grito ou da oração? O que vem depois da primavera ou da esperança?

O que vem depois do colo ou do medo? Das cores ou da leveza, do gosto ou da respiração? O que vem depois da dança ou da dúvida?

O que vem depois do esquecimento ou da imaginação?

O que vem depois da resposta ou da contradição?

Vem o doce, o salgado e o azedo. A lembrança indecisa do que ficou. Uma brisa suave e imprecisa do que é o amor.

Jânio Dias

terça-feira, 17 de junho de 2008

Rafaela, 15 anos

escrito por Jânio Dias
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imagem: fotos arquivo família; sobreposição por Jânio Dias



“Quando você sorri pra mim
Parece que o mundo não é um lugar tão ruim”

Capital Inicial, em Giulia



Rafaela,

Não é exagero para nós afirmarmos que a notícia da sua chegada nesse mundinho recheado de complexidades criadas pelo próprio homem foi um ponto de divisão entre o antes e o que se seguiu depois em nossas vidas. Foi como luz que revelou sentidos que ainda não conhecíamos, foi como chuva leve em dia de verão que tem o arco íris como fundo e beleza.

Aquele bebê rosa de olhos genuinamente azuis e sem cabelos fez muitos de nós chorarmos a alegria de uma nova existência, fez todos nós celebrarmos a magia de um novo amor.

Egoístas que somos, desejávamos que você não crescesse logo para que continuasse a alimentar nossos mimos e lembranças do tempo em que a inocência também era nossa companheira.

Altruístas que não somos, sempre recebemos mais de você do que fomos capazes de lhe dar.

Bem que tentamos nos esforçar para que você fosse uma criança educada e de bons modos.

Tentamos, em vão, que todos saibam agora.

Porque nossas tentativas eram sempre antecipadas a algum gesto de carinho inerente a sua natureza, a alguma graça carregada de meiguice e beleza. Sempre o bebê mais educado, o mais fofo, o mais belo.

Você nos deu o trabalho doce de acompanhar o seu crescimento.

15 anos se passaram e os elementos daquela criança com olhos de aniz e cabelos radiantes como raios da luz do sol continuam presentes despertando atenção e provocando encanto por onde passe.

Hoje não é só mais uma festa de aniversário. Hoje é a nossa recordação do dia em que você veio ao mundo.

É você que faz o aniversário, mas somos nós, sua Família e amigos que recebemos o presente.

O presente diário da sua existência.

Feliz Aniversário!

Com amor,

Sua Família.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Sobre O Teatro Mágico, de Fernando Anitelli

por Jânio Dias
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imagem: arquivo pessoal


“Sem horas e sem dores / respeitável público pagão / a partir de sempre toda cura pertence a nós / toda resposta e dúvida / todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser / todo verbo é livre para ser direto ou indireto / nenhum predicado será prejudicado / nem tampouco a crase, nem a frase, nem a vírgula e ponto final! / afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas / e estar entre vírgulas pode ser aposto / e eu aposto o oposto que vou cativar a todos / sendo apenas um sujeito simples / um sujeito e sua oração / sua pressa e sua prece / que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não / que enxerguemos o fato / de termos acessórios para nossa oração / separados ou adjuntos, nominais ou não / façamos parte do contexto / sejamos todas as capas de edição especial / mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante / sejamos também a contra-capa / porque ser a capa e ser a contra-capa / é a beleza da contradição / é negar a si mesmo / e negar a si mesmo / é muitas vezes, encontrar-se com Deus / com o teu Deus / sem horas e sem dores / que nesse momento que cada um se encontra aqui agora / um possa se encontrar no outro, e o outro no um / até porque... / tem horas que a gente se pergunta... / por que é que não se junta tudo numa coisa só?”

O Teatro Mágico, em Sintaxe à Vontade, de Fernando Anitelli



Um vento leve havia soprado o nome aos cílios da novidade, um link no blog da
menina-cabeça-de-liquidificador havia despertado a atenção dos olhos curiosos, uma matéria sobre fãs fanáticos no guia de cultura do jornal provocou um sussurro ao pé da sobrancelha. Era preciso visitar a magia, conhecer seus efeitos, mas eu só encontrava os rastros desfeitos de quem já a conhecia, e por isso sabia que era preciso estar atento as datas e locais do acontecimento. As entradas são para raros.

Quase duas dúzias de meses depois, em uma das últimas apresentações do 1º ato, os olhos puderam descansar felizes, inteiramente sorridentes.

O relógio piscava 0h48 de domingo, 08 de junho, Mogi da Cruzes, SP, quando a mágica apagou as luzes para acender o canto de milhares de vozes em uníssono. Duas horas antes, parado na calçada esperando que os carros deixassem que fosse possível atravessar para o outro lado da rua para entrar no Clube de Campo, uma menina que aparentemente não era da cidade, explicava ao garoto aparentemente da cidade, num misto de segredo e mistério, que O Teatro Mágico era uma cartola gigante de onde saltavam os personagens que alimentavam seus sonhos mais coloridos. Fiquei alguns longos e indecifráveis três segundos parado olhando para a menina, mais olhando do que tentando entendê-la, quando fui puxado para atravessar a rua.

Se eu pudesse compartilhar o gosto impreciso da minha saliva com ela, lhe diria que O Teatro Mágico é um hospício que hospeda a tristeza risonha dos dias que esquecemos no amanhã, para nos doar a beleza do agora.

É felicidade que inventa a mentira que queremos viver, é verdade que lembramos de contar nos dedos da manhã. É alegria que inverte o sentido da maquiagem do rosto, é lagrima que rejuvenesce as linhas do tempo.

É loucura que transborda a sensatez do pranto, é delírio que desperta a inconsciência do riso descontrolado. É a sanidade de quem reencontrou o mar.

É canto que seduz a menina virgem, é texto que encanta a menina experimentada, é melodia que desacredita o rancor do velho senhor. É teatro que estreita a distância entre os parágrafos.

É infância revisitada com bolinhos de chuva na cozinha da avó, é café com leite em manhã que não teve aula. É beijo na bochecha do irmão mais novo quando estava dormindo, é ser beijado pelo irmão mais velho e fingir que estava dormindo.

É levar a sobrinha para passear com a motinha na pracinha da cidade e insistir pra ela pedalar, quando o mais bonito é vê-la empurrar o próprio brinquedo. É perder-se cantando junto quando o mais belo é apreciar o restante do público cantar em harmonia desesperada.

É enlevar o rosto borrado nos caminhos mais trôpegos, é encenar o riso quente nas curvas do precipício, é encarar a queda sem colocar a mão no nariz. É encandear os pensamentos nas alegrias que virão.

É estender as mãos para as singularidades do acaso. É acordar o dia seguinte com confiança guardada no peito. É abranger a prece para o amigo do lado.

É acenar a boca molhada de desejo para a fruta nua sobre a mesa.

É fomentar a independência da nossa imaginária liberdade.

São acordes luminosos no fogo de cordel encantado. É romantismo carnavalesco entre hermanos e lirismo revolucionário de uma legião.

É poesia que faz da arte lençóis que cobrem multidões; é prosa que inventa arte nas multidões descobertas.

É aceitar a partida sem pressa, de bicicleta; é acertar a chegada sem calma, a cavalo.

O Teatro Mágico é a esperança que não me acompanhava.

Jânio Dias


PS.: thanks Veneza, por proporcionar o encontro do desejo à magia.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Entre Uma Coisa e Outra Coisa

The Clown, de John Wright


“Eu sou o Poderoso, o Bababã,
o Bão! Eu sou o sangue,
não!Eu sou a Fome! do homem
que come na brecha da mão de quem vacila
Eu sou a Camuflagem que engana o chão
A Malandragem que resvala de mão em mão
Eu sou a Bala que voa pra sempre, sem rumo, perdida”

Lobão, em
El Desdichado II
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Em tempos em que o tema ética só aparece em aula de sociologia ou de história, e que programas de humor (veja bem, de humor) na tv fazem "pegadinha" com pessoas na rua onde dão o troco a mais na venda do cigarro ou deixam um aparelho de celular em algum lugar para testar se a pessoa que recebeu o dinheiro a maior ou encontrou o objeto irá devolver ou não, e 99% não devolvem, fingem estar longe ou serem esquizofrênicas, inventam histórias absurdas para não devolver, e quando são questionados pela equipe do programa da tv se achassem alguma coisa na rua se devolveriam para o dono, e descaradamente dizem que sim, mas segundos atrás haviam agido de forma oposta, ou chegam a dizer que este tipo de questionamento está sendo feito no país errado... Respiro fundo, conto carneirinhos imaginários, sinto vontade de ir embora para as Ilhas Maurício, e lembro que todos os dias o brasileiro passa e provoca desapercebidamente consciente por testes e exemplos de sua ignorância ética, sejam na fila do banco ou do metrô, na vaga do estacionamento reservada para deficientes físicos, no farol vermelho ou quando é parado pela polícia na estrada e a mesma sugere um "jeitinho" para se seguir viagem. Então meu senso comum desperta, grita comigo e aos berros soletra em silabas garrafais que isso só acontece porque estamos diariamente colocando em prática o reflexo da personalidade dos políticos que elegemos. Somos assim como eles e eles assim como nós; são nossa imagem e semelhança.

Vai um nariz de palhaço aí, amigo?

Dia desses, após presenciar um show muito aguardado de uma especial banda de indie rock, fui ler as impressões dos fãs numa comunidade do Orkut. Havia vários depoimentos entusiasmados que iam de encontro ao que eu estava sentindo. Porém, um deles – não menos entusiasmado – entre a alegria e o sentimento de “espertalhão”, contava os detalhes de uma falcatrua para burlar a segurança do local e assim poder se passar por integrante da imprensa, e as peripécias vividas graças a essa fraude.

O trapaceiro cheio de júbilo contou:

“Eu e meu brother, fizemos uma credencial do "Terra" falsa, como se nós fossemos da imprensa....e detalhe, entramos VIP (...)”

“(...) corremos lá pra frente e só mostramos o crachá, o segurança, panção, viu o crachá e liberou... daí então, eu assisti o show inteirinho, literalmente na frente do Palco. (...)”

“Não contente com a credencial VIP dos VIPS, tentamos subir no palco, fomos por trás do palco, mostramos a credencial pro segurança... ele olhou e pediu pra gente subir ..... nooooooooooosssa, pegamos o finalzinho do show, vendo do paaaaaaaalco (...)”

“Foi bem legal... no meu álbum eu coloquei a credencial do "Terra" que eu fiz.... hahahaha, ficou legal vai gente... quem vai dizer que é falsa???”

Achei, digamos, bonito o entusiasmo do rapaz. Eu sei muito bem como é a sensação de sentir bem de pertinho uma banda querida e especial. Então, dirigi algumas palavras logo abaixo de vários comentários que festejavam com admiração a atitude esperta daquele que deu uma banana para milhares de pessoas, inclusive centenas de participantes daquela comunidade que haviam ido ao show.

“Gabriel, admito que entendo perfeitamente sua alegria radiante e a necessidade de dividir momento tão mágico com os outros fãs. (...) E por ser real, por realmente ter acontecido, você deve e merece se sentir muito feliz com isso, e dividir com todos que possa.

Contudo, cabe aqui lembrar que, muita gente tão ou mais fã da banda que você, sofreu muito para conseguir comprar o ingresso de R$ 100,00 ou mesmo meia entrada para estar entre os "comuns", aqueles que se acotovelaram e disputaram espaços minúsculos entre umas vinte mil pessoas. Fãs mais ardorosos fizeram loucuras para comprar ou ganhar ingresso na privilegiada área vip. (...)

Então, cara, sem querer diminuir o sentido da sua alegria, acho que é muito mais bacana se sentir um privilegiado, sortudo e um cara muito feliz, sem ter que precisar de certos artifícios, como adulteração de um documento. Devemos ter a exata noção que aquela separação entre vip's e "comuns" já é algo muito injusto, e que a felicidade por vivenciar um momento tão grandioso e histórico (como foi histórico aquele show) pode acontecer de forma bem mais justa, correta e digna.”

Algumas pessoas concordaram comigo, outras acharam que eu estava querendo aparecer.

O garoto da credencial falsa reagiu assim:

“Janio, com certeza sei que ali naquele Show estava exposto da forma mais suja possível, a desigualdade social no Brasil, não é a toa que nós estamos entre os últimos no Ranking de Desigualdade Social.

Os Ricos e Famosos, ganharam o espaço mais priveligiado do SHOW, na boca do palco, sem tumulto, sem aperto... A Galera que curtia a banda mesmo, ficou num total desconforto, segundo relatos que eu li, amassadas na grade, na ponta dos pés etc.

Quando li, que pra estar na área VIP, era preciso R$ 250... eu dei risada, e pensei comigo mesmo em casa "E se eu Burlar este sistema fédido"... Criei a credencial, e enfim curti o Show tanto, ou muito mais do que eles... os VIPs. Pq somente os ricos tem o direito de serem VIPs? Eu um pobre mortal, tenho de aceitar minha situação de ser esmagado numa grade, só pq eu não tenho dinheiro?... seria uma punição pela minha pobreza?

O João, matô a pau, qdo disse: "Vc nunca baixou uma música pelo Kazaa?", se vc já puxou meu amigo, não me venha todo emburradinho, falar que eu estou errado.

Janio, enquanto existirem caras como você, que ajudam a fortalecer a Elite, com esse discursinho Politicamente Correto, típico da Elite, o Brasil será essa Bosta. Temos que mostrar para os mais abastados, que estamos dispostos a comer o frango deles, a invadir o cirquinho deles e a quem sabe um dia.... nivelar a sociedade. NÃO ACEITO SER AMASSADO PQ NÃO TENHO DINHEIRO... se isso pra vc, é ser ético, sinto-lhe informar, mas os valores burgueses correm ferozmente em suas veias.

Não Seja Hipócrita.”


E eu respondi:

“Muito bem. Então é isso? Bom, como diria o filósofo do botequim: "uma coisa é uma coisa; outra coisa, é outra coisa". Ou como diria minha saudosa professora Odete da quarta série: "Uma coisa é saber ler; outra coisa é compreender o que foi escrito".

Uma coisa é saber o significa "desigualdade social no Brasil". É conhecer e ser tratado em hospital público, é não ter condições nem de freqüentar a escola pública, é saber como milhões de nordestinos sobrevivem com três refeições por semana... Outra coisa é afirmar que naquele show "estava exposto da forma mais suja possível a desigualdade social no Brasil". Só estava ali quem realmente gosta do que ia acontecer ali, só quem tem meios econômicos-sociais de acesso àquele tipo de cultura estava naquele lugar naquela noite. No mais, estavam ali jornalistas, artistas, gente do meio cultural em geral, convidados especiais e funcionários do evento. Apesar dos "ricos e famosos ganharem o espaço mais privilegiado dos shows", isso não reflete desigualdade social, e sim uma opção inapropriada e injusta dos organizadores do evento em criar uma espécie de Apartheid musical. Quem vive realmente o drama da "desigualdade social no Brasil", estava em outros lugares e com outras preocupações.

Uma coisa é se indignar com o valor do ingresso absurdamente caro e pensar numa forma inteligente de não aceitá-lo como boicote ao evento, ou criar honestamente condições próprias para aceitá-lo, como contou um rapaz num outro tópico (Vitor, no tópico Falando Francamente). Diz ele que ficou um mês sem sair de casa para juntar o total de R$ 100,00 para a área vip (provavelmente ele foi atrás do desconto de estudante e outras possibilidades), ou ligar insistentemente numa rádio e ganhar o convite. Outra coisa é fraudar documento oficial para ter acesso aos shows.

Uma coisa é uma mente preguiçosa achar que só os ricos têm o direito de serem vip's; outra coisa é a constatação através de relatos como o do Vitor de que qualquer pessoa que tivesse realmente se esforçado para estar ali, poderia ter estado.

Uma coisa é alguém que possui estrutura material e intelectual para forjar um documento oficial se considere "um pobre mortal"; outra coisa é esse mesmo alguém alegar falta de dinheiro e justificar numa possível "pobreza" a motivação para a fraude documental.

Uma coisa é achar que um cara como eu, que expõe uma opinião contrária ao comportamento de alguém que - em primeira e gentil análise - não quer tirar a bunda da cadeira e fazer as coisas acontecerem honestamente, é um representante da elite brasileira. Representar a elite brasileira é - em última e cruel análise - defender atos criminosos como o seu.

Uma coisa é pensar e agir burramente que se está fazendo justiça ao "invadir o cirquinho deles"; outra coisa tão burra quanto é misturar valor moral e ético com padrões burgueses - é o mesmo que misturar água com óleo.

Uma coisa é fazer de conta que achou o cérebro num cesto de lixo e comparar troca online de arquivos digitais com a falsificação de documentos. Uma coisa é o cara que sobrevive da venda de produtos piratas; outra coisa é o cara que falsifica um diploma de medicina e faz uma cirurgia num parente seu. Uma coisa é o cara que compra um DVD pirata na barraquinha; outra coisa é o cara que compra a carta de motorista e vai dirigir uma lotação. Uma coisa é o imigrante ilegal trabalhando num país; outra coisa é o cara que falsifica o passaporte para roubar no seu país. Uma coisa é não saber distinguir atitude de pose e exibicionismo. Uma coisa sou eu me expor publicamente sobre algo que você deveria ter aprendido no jardim de infância. Outra coisa é a pessoa que não possui credibilidade pra dizer o que pensa porque assina como anônimo.

E para concluir, ontem eu vi um outdoor gigante na Paulista que é a foto de um senhor, provavelmente pelas feições, um bravo retirante nordestino, alguém que realmente sofre e vive a desigualdade social no Brasil, com meia dúzia de dentes na boca, mas com um sorriso inacreditável de felicidade... Aí eu pensei: "uma coisa é defender a prática de um crime para ser mais feliz; outra coisa é ser feliz com os dentes que se têm.”

Entre uma coisa e outra, vou vivendo assim, como palhaço desse circo sem futuro.


Jânio Dias