terça-feira, 3 de junho de 2008

Entre Uma Coisa e Outra Coisa

The Clown, de John Wright


“Eu sou o Poderoso, o Bababã,
o Bão! Eu sou o sangue,
não!Eu sou a Fome! do homem
que come na brecha da mão de quem vacila
Eu sou a Camuflagem que engana o chão
A Malandragem que resvala de mão em mão
Eu sou a Bala que voa pra sempre, sem rumo, perdida”

Lobão, em
El Desdichado II
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Em tempos em que o tema ética só aparece em aula de sociologia ou de história, e que programas de humor (veja bem, de humor) na tv fazem "pegadinha" com pessoas na rua onde dão o troco a mais na venda do cigarro ou deixam um aparelho de celular em algum lugar para testar se a pessoa que recebeu o dinheiro a maior ou encontrou o objeto irá devolver ou não, e 99% não devolvem, fingem estar longe ou serem esquizofrênicas, inventam histórias absurdas para não devolver, e quando são questionados pela equipe do programa da tv se achassem alguma coisa na rua se devolveriam para o dono, e descaradamente dizem que sim, mas segundos atrás haviam agido de forma oposta, ou chegam a dizer que este tipo de questionamento está sendo feito no país errado... Respiro fundo, conto carneirinhos imaginários, sinto vontade de ir embora para as Ilhas Maurício, e lembro que todos os dias o brasileiro passa e provoca desapercebidamente consciente por testes e exemplos de sua ignorância ética, sejam na fila do banco ou do metrô, na vaga do estacionamento reservada para deficientes físicos, no farol vermelho ou quando é parado pela polícia na estrada e a mesma sugere um "jeitinho" para se seguir viagem. Então meu senso comum desperta, grita comigo e aos berros soletra em silabas garrafais que isso só acontece porque estamos diariamente colocando em prática o reflexo da personalidade dos políticos que elegemos. Somos assim como eles e eles assim como nós; são nossa imagem e semelhança.

Vai um nariz de palhaço aí, amigo?

Dia desses, após presenciar um show muito aguardado de uma especial banda de indie rock, fui ler as impressões dos fãs numa comunidade do Orkut. Havia vários depoimentos entusiasmados que iam de encontro ao que eu estava sentindo. Porém, um deles – não menos entusiasmado – entre a alegria e o sentimento de “espertalhão”, contava os detalhes de uma falcatrua para burlar a segurança do local e assim poder se passar por integrante da imprensa, e as peripécias vividas graças a essa fraude.

O trapaceiro cheio de júbilo contou:

“Eu e meu brother, fizemos uma credencial do "Terra" falsa, como se nós fossemos da imprensa....e detalhe, entramos VIP (...)”

“(...) corremos lá pra frente e só mostramos o crachá, o segurança, panção, viu o crachá e liberou... daí então, eu assisti o show inteirinho, literalmente na frente do Palco. (...)”

“Não contente com a credencial VIP dos VIPS, tentamos subir no palco, fomos por trás do palco, mostramos a credencial pro segurança... ele olhou e pediu pra gente subir ..... nooooooooooosssa, pegamos o finalzinho do show, vendo do paaaaaaaalco (...)”

“Foi bem legal... no meu álbum eu coloquei a credencial do "Terra" que eu fiz.... hahahaha, ficou legal vai gente... quem vai dizer que é falsa???”

Achei, digamos, bonito o entusiasmo do rapaz. Eu sei muito bem como é a sensação de sentir bem de pertinho uma banda querida e especial. Então, dirigi algumas palavras logo abaixo de vários comentários que festejavam com admiração a atitude esperta daquele que deu uma banana para milhares de pessoas, inclusive centenas de participantes daquela comunidade que haviam ido ao show.

“Gabriel, admito que entendo perfeitamente sua alegria radiante e a necessidade de dividir momento tão mágico com os outros fãs. (...) E por ser real, por realmente ter acontecido, você deve e merece se sentir muito feliz com isso, e dividir com todos que possa.

Contudo, cabe aqui lembrar que, muita gente tão ou mais fã da banda que você, sofreu muito para conseguir comprar o ingresso de R$ 100,00 ou mesmo meia entrada para estar entre os "comuns", aqueles que se acotovelaram e disputaram espaços minúsculos entre umas vinte mil pessoas. Fãs mais ardorosos fizeram loucuras para comprar ou ganhar ingresso na privilegiada área vip. (...)

Então, cara, sem querer diminuir o sentido da sua alegria, acho que é muito mais bacana se sentir um privilegiado, sortudo e um cara muito feliz, sem ter que precisar de certos artifícios, como adulteração de um documento. Devemos ter a exata noção que aquela separação entre vip's e "comuns" já é algo muito injusto, e que a felicidade por vivenciar um momento tão grandioso e histórico (como foi histórico aquele show) pode acontecer de forma bem mais justa, correta e digna.”

Algumas pessoas concordaram comigo, outras acharam que eu estava querendo aparecer.

O garoto da credencial falsa reagiu assim:

“Janio, com certeza sei que ali naquele Show estava exposto da forma mais suja possível, a desigualdade social no Brasil, não é a toa que nós estamos entre os últimos no Ranking de Desigualdade Social.

Os Ricos e Famosos, ganharam o espaço mais priveligiado do SHOW, na boca do palco, sem tumulto, sem aperto... A Galera que curtia a banda mesmo, ficou num total desconforto, segundo relatos que eu li, amassadas na grade, na ponta dos pés etc.

Quando li, que pra estar na área VIP, era preciso R$ 250... eu dei risada, e pensei comigo mesmo em casa "E se eu Burlar este sistema fédido"... Criei a credencial, e enfim curti o Show tanto, ou muito mais do que eles... os VIPs. Pq somente os ricos tem o direito de serem VIPs? Eu um pobre mortal, tenho de aceitar minha situação de ser esmagado numa grade, só pq eu não tenho dinheiro?... seria uma punição pela minha pobreza?

O João, matô a pau, qdo disse: "Vc nunca baixou uma música pelo Kazaa?", se vc já puxou meu amigo, não me venha todo emburradinho, falar que eu estou errado.

Janio, enquanto existirem caras como você, que ajudam a fortalecer a Elite, com esse discursinho Politicamente Correto, típico da Elite, o Brasil será essa Bosta. Temos que mostrar para os mais abastados, que estamos dispostos a comer o frango deles, a invadir o cirquinho deles e a quem sabe um dia.... nivelar a sociedade. NÃO ACEITO SER AMASSADO PQ NÃO TENHO DINHEIRO... se isso pra vc, é ser ético, sinto-lhe informar, mas os valores burgueses correm ferozmente em suas veias.

Não Seja Hipócrita.”


E eu respondi:

“Muito bem. Então é isso? Bom, como diria o filósofo do botequim: "uma coisa é uma coisa; outra coisa, é outra coisa". Ou como diria minha saudosa professora Odete da quarta série: "Uma coisa é saber ler; outra coisa é compreender o que foi escrito".

Uma coisa é saber o significa "desigualdade social no Brasil". É conhecer e ser tratado em hospital público, é não ter condições nem de freqüentar a escola pública, é saber como milhões de nordestinos sobrevivem com três refeições por semana... Outra coisa é afirmar que naquele show "estava exposto da forma mais suja possível a desigualdade social no Brasil". Só estava ali quem realmente gosta do que ia acontecer ali, só quem tem meios econômicos-sociais de acesso àquele tipo de cultura estava naquele lugar naquela noite. No mais, estavam ali jornalistas, artistas, gente do meio cultural em geral, convidados especiais e funcionários do evento. Apesar dos "ricos e famosos ganharem o espaço mais privilegiado dos shows", isso não reflete desigualdade social, e sim uma opção inapropriada e injusta dos organizadores do evento em criar uma espécie de Apartheid musical. Quem vive realmente o drama da "desigualdade social no Brasil", estava em outros lugares e com outras preocupações.

Uma coisa é se indignar com o valor do ingresso absurdamente caro e pensar numa forma inteligente de não aceitá-lo como boicote ao evento, ou criar honestamente condições próprias para aceitá-lo, como contou um rapaz num outro tópico (Vitor, no tópico Falando Francamente). Diz ele que ficou um mês sem sair de casa para juntar o total de R$ 100,00 para a área vip (provavelmente ele foi atrás do desconto de estudante e outras possibilidades), ou ligar insistentemente numa rádio e ganhar o convite. Outra coisa é fraudar documento oficial para ter acesso aos shows.

Uma coisa é uma mente preguiçosa achar que só os ricos têm o direito de serem vip's; outra coisa é a constatação através de relatos como o do Vitor de que qualquer pessoa que tivesse realmente se esforçado para estar ali, poderia ter estado.

Uma coisa é alguém que possui estrutura material e intelectual para forjar um documento oficial se considere "um pobre mortal"; outra coisa é esse mesmo alguém alegar falta de dinheiro e justificar numa possível "pobreza" a motivação para a fraude documental.

Uma coisa é achar que um cara como eu, que expõe uma opinião contrária ao comportamento de alguém que - em primeira e gentil análise - não quer tirar a bunda da cadeira e fazer as coisas acontecerem honestamente, é um representante da elite brasileira. Representar a elite brasileira é - em última e cruel análise - defender atos criminosos como o seu.

Uma coisa é pensar e agir burramente que se está fazendo justiça ao "invadir o cirquinho deles"; outra coisa tão burra quanto é misturar valor moral e ético com padrões burgueses - é o mesmo que misturar água com óleo.

Uma coisa é fazer de conta que achou o cérebro num cesto de lixo e comparar troca online de arquivos digitais com a falsificação de documentos. Uma coisa é o cara que sobrevive da venda de produtos piratas; outra coisa é o cara que falsifica um diploma de medicina e faz uma cirurgia num parente seu. Uma coisa é o cara que compra um DVD pirata na barraquinha; outra coisa é o cara que compra a carta de motorista e vai dirigir uma lotação. Uma coisa é o imigrante ilegal trabalhando num país; outra coisa é o cara que falsifica o passaporte para roubar no seu país. Uma coisa é não saber distinguir atitude de pose e exibicionismo. Uma coisa sou eu me expor publicamente sobre algo que você deveria ter aprendido no jardim de infância. Outra coisa é a pessoa que não possui credibilidade pra dizer o que pensa porque assina como anônimo.

E para concluir, ontem eu vi um outdoor gigante na Paulista que é a foto de um senhor, provavelmente pelas feições, um bravo retirante nordestino, alguém que realmente sofre e vive a desigualdade social no Brasil, com meia dúzia de dentes na boca, mas com um sorriso inacreditável de felicidade... Aí eu pensei: "uma coisa é defender a prática de um crime para ser mais feliz; outra coisa é ser feliz com os dentes que se têm.”

Entre uma coisa e outra, vou vivendo assim, como palhaço desse circo sem futuro.


Jânio Dias

2 comentários:

Renata disse...

Lembrei de um show da Ana Carolina que assisti com a sua Ana, ouvi pela primeira vez ela recitando "Só de Sacanagem"... eu vou com ela(s)...

[ ...então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar.

Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba" e vou dizer: "Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau."

Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final! ]

beijo honesto!

Veronica Almeida disse...

Lembro que quando li este texto há alguns anos, fiquei com preguiça de lê-lo até o final. Acho que às vezes não estamos preparados para ler algumas coisas.

Hoje relendo o início e lendo o final, entendo o quanto as pessoas misturam tantos assuntos, justificando seus atos. E como é um costume chamar as pessoas de "hipócritas". E como é fácil viver do "jeitinho brasileiro", sempre enganando, forjando, chegando antes. E como tudo que não é a favor desse jeitinho, pode ser entendido como um serviço pra elite. E como gostamos de nos fazer de vítimas. E como é sujo. E como é triste estas falácias.

Beijos!