sábado, 9 de agosto de 2008

A Ternura e o Papel Toalha

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imagem: Towards the Hills, 1980, de Peter Davidson
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“If there's a place I want to go
Then I'll be there with you
'Cos in my dreams the things
I'm wishing for
Keep coming true”

Belle and Sebastian, em Waiting For The Moon To Rise


Quando alguém querido faz aniversário, quero desperdícios de beijos, orgias de abraços e sorrisos nas orelhas.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o dia nasça ensolarado e sufocante para que seus olhos ardam na garganta a beleza controversa de existir.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que sua noite reflita a luz úmida da emoção dos pais no dia em que ele veio ao mundo.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que chova apenas na janela do seu carro ou do seu ônibus. A chuva no vidro sem molhar o rosto é a lágrima da saudade de uma lembrança que ainda não nasceu.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seu telefone vire uma sinfonia de chamados distintos causando o caos na lembrança, o suspense na memória, o transe na língua indecisa, o conforto do abraço na voz reconhecida.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o trânsito pela manhã tenha o dobro do volume para que os votos de felicidades do amigo que ligou cedinho sejam estendidos com promessas de encontros que duram uma rodovia inteira. A amizade é o asfalto da estrada dos que não estão sozinhos.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seu amigo mais distante e de anos ausente em sua história, apareça em texto confessando a cobiça pelo encontro sempre prometido e nunca realizado. Uma promessa de reencontro não cumprida é o selo de resistência da amizade.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que a voz da pessoa amiga que se transformou em rota indefinida, clareie nesse dia os traços da reconciliação. Que a ausência seja um lapso na memória; que a falta seja substituída pelo indulto; que a carência seja a urgência do afeto amigo.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o dia se alongue e que a noite não termine. Que suas horas não passem e que as visitas e ligações dos amigos se multipliquem como formiga ao encontro do açúcar. Porque a vida é doce quando se tem amigos.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seja agraciado com o espanto da surpresa escondida dentro do escuro de uma sala sob palmas e cantos. Que lá esteja presente a sabedoria preocupada da mãe que não descansa nunca e o suor dedicado do pai que protege e encoraja uma nova luta. Que lá esteja vivo o brilho da amizade conquistado na infância e o silêncio respeitoso do amor da menina que ficou guardado nas fotografias. Que o primeiro pedaço do bolo seja oferecido ao guardião do seu coração. Que o segundo pedaço seja colocado de lado como símbolo de que todos os presentes têm a mesma importância. O bolo repartido são pedaços das amizades galgadas no tempo.

Quando eu faço aniversário, o primeiro sopro na vela é um pedido de proteção aos deuses às pessoas que não puderam estar presentes; o segundo sopro é um agradecimento as vidas daqueles que estão comigo; o terceiro é a despedida no tempo que passou e um carinho de boas vindas ao novo instante que iniciou.

Quando alguém querido faz aniversário, sinto vontade de rabiscar nossa história no papel toalha branco e macio e depois enxugar as lágrimas quentes com ele; para que o sal se misture ao azul da caneta e nossa ternura se torne infinita como o mar.

Jânio Dias

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Onde os Fracos não Têm Vez

imagem: Woman Holding a Balance, c.1664 de Jan Vermeer


“Que angústia desesperada
Minha fé parece cansada
E nada, nada mais me acalma

(...)

Apesar de todo desencanto
Eu não desisto de amar”

Barão Vermelho, em Daqui Por Diante



Meus anos de inexperiência nesta vida ainda me questionam: será que sempre é assim?

Um menino de 12 anos está do lado de dentro de uma mercearia, mais precisamente nos fundos, pesando cuidadosamente dois quilos de milho para um freguês. Há ali vários barris com cereais. De arroz a quirela; há até um barril com ração para cães. Os sacos de papel que vão de um a dez quilos estão em uma bancada ao lado, enfileirados em ordem crescente. Seu instrumento de trabalho é uma vasilha para colocar o conteúdo pedido dentro do saquinho, uma balança e uma caneta para somar as contas que são desenhadas no papel que fica exposto sobre o balcão, normalmente usado para enrolar o pão. Outra pessoa aproxima-se e encosta os braços sobre a geladeira horizontal que abriga diversas bebidas. O atendente mirim após devolver o troco pra o comprador do milho, pergunta em que pode ajudá-lo. O novo cliente quer feijão, cinco quilos. O menino, franzino como galhos secos esquecidos no tempo, olha para sua direita e pede ajuda ao colega mais velho de trabalho. Cinco quilos era peso suficiente para sucumbir seus jovens braços de menino que freqüentava a sexta série primária pela manhã, para logo em seguida correr para o trabalho precoce na mercearia. Cinco quilos tornavam a balança que ficava na altura de seu nariz maior em dois metros. Cinco quilos o faziam entregar os pontos e lembrar que deveria estar na rua empinando pipa no céu. Ele sempre sonhava com cinco quilos de nuvens brancas em formatos de desenhos diversos sobre sua cama.

Em uma padaria, o garoto de 16 desembarca de sua bicicleta e entra rapidamente para trocar o agasalho que estava usando no jogo de basquete pelo avental branco e bordado do estabelecimento. Mal entrou e o patrão já ordenara que abastecesse a geladeira com refrigerantes. O garoto arrastou um engradado plástico com coca-cola e passou a colocar em movimentos rápidos as garrafas de vidro no interior do móvel, uma a uma, outra sob outra e outra, quando de repente, um estouro. No contato entre a garrafa de cima e debaixo, o corpo de uma delas explodiu em sua mão direita, provocando um longo corte na palma. O patrão ao perceber o que havia acontecido, arrasta a mão do rapaz para debaixo da torneira da pia na intenção de que a corrente da água parasse o sangramento. Como o vermelho do sangue continuava a colorir a pia, a esposa do chefe resolveu intervir também. Abaixou-se junto à máquina de preparar as bebidas quentes, pegou pó de café, tomou para si a mão do garoto como se fosse um vaso de alguma planta qualquer e a encheu daquele pó preto como terra, estancando a sangria. Havia um silêncio de alívio nos olhares dos patrões. Segundos depois, o proprietário do estabelecimento pegou um pano, enrolou na mão do garoto e lhe explicou que o levaria ao pronto socorro, mas não poderia mencionar em nenhum momento que havia se acidentado no trabalho, pois não tinha registro de emprego. Após levar doze pontos, ter o curativo terminado e tomar uma benzetacil na bunda, voltou para o trabalho para terminar de cumprir suas tarefas, como encher a geladeira com a mão esquerda. Passou a tarde calado executando suas funções, como quem deseja que o relógio avance quatro horas em vinte minutos, lembrando que não poderia voltar para casa de bicicleta, e o pior que uma lembrança pode provocar quando não há mais alternativas para mudar o que está definido: havia sido o cestinha do jogo de basquete pela manhã; não o seria mais tão cedo.

No departamento de Logística de uma empresa de transportes rodoviários, com a promoção de um gerente para o cargo de diretor, o coordenador da área, o Geraldo, foi promovido a gerente. Abaixo dele havia duas analistas, uma delas deveria ser promovida por ele para o cargo que havia sido seu. Uma das meninas, a Helena, tinha mais tempo de casa, havia passado por várias outras funções na empresa até chegar a atual, era de confiança e tinha ótimo relacionamento com o chefe. A outra menina, a Cristina, apesar de mais jovem, tinha mais experiência na área, cursos de especialização, e autonomia própria para exercer suas funções, detalhe que não agradava muito ao Geraldo. Ele chamou as duas para conversar, uma de cada vez, explicou a situação e expôs o que imaginava que havia de bom e ruim no perfil de cada. Disse-lhes que levaria alguns dias para pensar no que considerava tomar uma difícil decisão. Ele olhava para elas e enxergava estilos diferentes com resultados semelhantes. Uma era uma lança, uma arma mais rudimentar, mas ofensiva, que sabia que quando necessário era preciso arremessar-se de cabeça para conseguir o queria. A outra era uma espada, uma arma branca pontiaguda e habilidosa em suas funções. Ambas poderiam ser a nova coordenadora da área, mas havia apenas uma vaga. Alguns dias passaram e no happy hour de confraternização do novo diretor e gerente, Helena perguntou ao Geraldo se ele poderia lhe dar uma carona e deixá-la perto de casa. Quando estavam voltando, enquanto seu novo gerente dirigia, a moça candidata passou a fazer um provocador carinho sobre o tecido da calça do homem que naquele instante era seu motorista. Geraldo a olhou com as sobrancelhas de quem tem fome no sorriso, desviou da rota original e entrou em um motel. Quatro semanas depois, Cristina recebia a notícia: sua colega Helena havia sido a escolhida.

Em uma festa rave na Serra da Cantareira, o jovem Edcarlos de apenas 22 está com os amigos curtindo a balada. A música é muito alta, um putz putz de doer o cérebro, e logo ele pensa que preferiria estar numa dessas casas que tocam clássicos do rock como Pearl Jam e Soundgarden. Edcarlos achava que o rock dos anos 90 era um maravilhoso passado próximo. Mas os amigos, sempre os amigos, o haviam convencido de curtir uma balada diferente. Ele se esforçava para tentar ser mais um ali, imitava gestos, prestava atenção nos semblantes como em órbita, tal qual em viagem astral. Ele dançava sozinho o som da multidão, mas logo viu um rosto bonito que também olhou para o dele. Camila também havia saído aquela noite com as amigas, mas para ela já era quase como que rotina. Todo final de semana aquela curtição, as amigas, as bocas diferentes, o bate estaca na cabeça, os comprimidos, o retorno pra casa e a incerteza de superar a rotina de mais uma semana. Como os olhos do jovem rapaz (cujo corpo parecia que não aproveitava a música como as demais pessoas) não desviavam de sua direção, Camila resolveu aproximar-se dele. Rapidamente estavam se beijando e a música provocando intimidade. Dois meses após esse encontro do acaso, Camila estava morando com Edcarlos. Ed (como era conhecido entre as pessoas próximas) era rapaz correto e simples que apreciava bom rock, amava sua moto e trabalhava num laboratório químico de produtos farmacêuticos. Uma noite quando estava chegando em casa vindo do trabalho, três homens brancos usando moletons com capuz o abordaram na esquina de sua rua. Queriam que ele liquidasse uma suposta dívida de comprimidos que Camila havia contraído com eles. Como sabiam que ele era trabalhador, mas também de família de posses, disseram-lhe que a dívida poderia ser quitada apenas com a entrega da moto, e iriam lhe dar alguns dias para se decidir. Ed ao chegar em casa discutiu com Camila sobre o assunto, ela negou as acusações e naquela noite mesmo saiu da casa do namorado sem dizer para onde ia. No dia seguinte, quando saia do trabalho, Ed optou por deixar a moto guardada lá mesmo. Voltou para casa de ônibus e passou os dias seguintes indo trabalhar dessa forma. Na manhã do quarto dia, quando se preparava para ir para o laboratório, os tais homens apareceram em sua frente novamente. Ele tentou explicar que não tinha o dinheiro que queriam, nem moto e não sabia mais onde estaria Camila. De forma corajosa, virou as costas para os estranhos sujeitos e seguiu para o ponto. Nesse momento, havia um ônibus parado com algumas pessoas entrando. Ed aproximou-se e apoiou a mão direita na barra da porta do veículo e deu leve impulso ao corpo para subir as escadas. O motorista da linha 7401 que observava os passageiros das 6h20 entrarem em seu veículo viu um homem branco e loiro com capuz azul sobre a cabeça logo atrás da última pessoa que lhe cumprimentaria naquele horário. Naquele momento, ao firmar os pés sobre o primeiro degrau do veículo e levantar a cabeça para dar bom dia ao motorista, um tiro a queima-roupa foi disparado contra aquele passageiro. Edcarlos morreu com um tiro na nuca ao subir no ônibus que o levaria para o trabalho.

Dois casais estavam a caminho de uma festa de aniversário, saindo da zona oeste da cidade em direção a zona sul. Mariana que dirigia um Fiesta vermelho usava óculos e não tinha certeza da localização do evento. Essa cidade tão maluca, tão escura mesmo iluminada, tão cheia de pontes e saídas parecidas, confundiam sua noção de localização. Ela não gostava muito de dirigir, mas o namorado enxergava na abdicação do volante um certo charme de independência doado a namorada. O casal amigo no banco de trás havia passado a tarde preocupados na escolha certa do presente. Ficaram indecisos entre o livro infanto-juvenil da Madonna e o primeiro Harry Poter. Acabaram optando pela rainha do pop, achavam que era uma forma criativa de introduzir por linhas paralelas a imagem da artista na vida de uma menina de 12 anos. Enquanto contavam do banco de trás para os amigos da frente os critérios na escolha do presente, Mariana tentava se entender com as placas e seus sinais às vezes tão embaralhados. No momento em que ia passar por um cruzamento, enquanto observava a placa no alto e as informações nela contida, com o carro em movimento lento fazendo a curva para a esquerda, o semáforo passou do verde para o amarelo repentino. Seu carro acabou fechando sem querer e quase sem perceber um Monza preto que vinha do outro lado. O motorista do carro escuro buzinou bravíssimo para o Fiesta, destilando inúmeros palavrões. Mariana acelerou na intenção de se distanciar dos gestos obscenos do Monza, quando de repente observou pelo retrovisor o mesmo carro cortando o seu pela direita, entrando na sua frente e de forma proposital, fazendo-a frear subitamente. Os pneus cantaram na desaceleração brusca, e num movimento rápido e de orgulho para o namorado, jogou o veículo para a direita e acelerou firme na intenção de fugir daquela situação, quando de repente ouviu-se um, dois, três, quatro estampidos. Mariana perdeu o controle do carro, subindo na calçada, batendo de frente com um poste e capotando na rua duas vezes. Policiais Civis estavam perseguindo seu carro por ela ter supostamente passado o farol vermelho no cruzamento. Segundo versão dos policiais, fizeram sinais para o Fiesta parar, mas a ordem não foi obedecida, instintivamente suspeitaram de seqüestro relâmpago, então atiraram no veículo. Apenas a namorada do amigo de trás sobreviveu ao ocorrido.

Impossível não imaginar quão desastroso pode ser a iniciativa de tentar com hombridade a própria sobrevivência ou ingenuamente entregar-se as belezas de uma aventura errante; ou mesmo apenas de bobeira, tentar ser parte minúscula da história de alguém.

Tantas são as histórias conhecidas por cada um de nós sobre as fatalidades que presenciamos ou que somos vítimas, que quase não nos chocamos mais. Quando acontece, em poucos minutos o corpo cria suas próprias camadas de defesas e torna-se negligente à acidez dos acontecimentos. A decência tarda os benefícios de quem almeja o atalho rápido e a perspicácia é a salvação dos valores mundanos. O perigo está ao lado e a morte agachada sobre o meio-fio da calçada. Não há mais lugar para inocências inatas e declarações de fé; além de pesares insignificantes como este.

Meus anos de incertezas dessa vida querem uma noite suave de sono ao lado da mulher amada para acordar na manhã seguinte e, despreocupadamente, como se nada tivesse acontecido, abrir a janela e tentar acreditar que nem sempre é assim.

Não adianta, sou dessas pessoas que oscilam entre a santa indiferença e a diabólica compaixão.

Jânio Dias

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O Soneto dos Bons Homens

imagem: The Knife Grinder, 1890, de August Muller


“Eu vou chegar, pedir e agradecer
Pois a vitória de um homem
As vezes se esconde num gesto forte
Que só ele pode ver

Eu sou guerreiro, sou trabalhador
E todo dia vou encarar
Com fé em Deus e na minha batalha”

O Rappa, em Lado B, Lado A
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Alguns homens curiosos e simples, de sabedoria bíblica ou de botequim, ainda enfeitam o varal flutuante das minhas recordações de menino pequeno.

Quando eu tinha em torno de cinco para seis anos, o meu pai acordava às três e meia da manhã para ir trabalhar. Em nome da independência da sua casinha própria, havia escolhido para morar um bairro recém criado numa cidade afastada da Capital, onde era o seu trabalho. Caminhava pela madrugada cerca de trinta minutos até o ponto de ônibus mais próximo, meia hora depois pegava um trem que desembocava na estação do Brás, para depois chegar até a estação da Luz. Seu caminho era iluminado pela determinação em não pagar aluguel. Na volta para casa dava uma passadinha no boteco do Seu Osmar, onde deixava parte de sua tensão diária antes de jantar. Eu só o veria na manhã seguinte, refletido na barra de wafer comprada no vagão do trem e deixada sobre o criado-mudo.

O Seu Juvenal trabalhava como pedreiro, havia chegado ao bairro antes do meu pai. Sua casinha era um cômodo só, um quadrado de quatro por quatro, num terreno de duzentos e cinqüenta metros quadrados, onde morava com quatros filhas e a esposa. Não era homem que bebia e freqüentava a pequena igreja evangélica. Era possível vê-lo à noite na rua bem vestido com seu paletó azul marinho, sua calça marrom e seu sapato Vulcabrás doado pelo patrão de alguma empreitada, segurando a bíblia embaixo do braço indo em direção ao culto. Sua luta contínua era renovar a fé para preencher seis pratos de comida diariamente.

Seu Didi era caminhoneiro, ficava longas semanas longe da família. Tinha duas meninas e um menino. Entre as meninas era mais apegado a mais velha, enquanto a segunda guardava os carinhos mais para a mãe. Adorava uma moda de viola genuína, com sabor de galinha caipira e cheiro de cuscuz recente. Nos raros fins de semana que conseguia separar para ficar no bairro, lotava a venda do Jurandir (homem ganancioso e egoísta, eterno candidato fracassado a vereador) acompanhado do violão e do seu filho. Era feita uma roda em volta dos dois onde os clássicos caipiras e seus dramas quase épicos eram revividos. Sua recompensa consistia em ter o copo constantemente abastecido de conhaque com sal e limão, para que a voz não o abandonasse.

Seu Roberto era Palmeirense fanático. O ônibus que dirigia por cerca de doze horas por dia tinha uma toalha verde estendida atrás de seu banco, como manto a protegê-lo de todo mal. Mesmo nas raras folgas não descansava nunca, ou tava complementando algum detalhe à sua casa, ou tava ajudando algum vizinho em alguma construção pelo bairro. Era muito requisitado para furar poços, possuía um método quase que espírita para determinar o local ideal onde estaria a água. Ele cortava um graveto em forma de Y e de repente o paulzinho começava a se mexer, como um detector de caça-fantasmas. Determinado o ponto preciso da cirurgia, desenhava o círculo simétrico no chão e começava a cavar, como um joão-de-barro a moldar seu abrigo na árvore, depois passava a ferramenta para o dono da casa. Seu Roberto não descansava nunca, sua vitalidade era fortalecida na ajuda ao próximo.

O Zé Cumpadre, além de habilidoso boleiro, era um agitador cultural. Promovia bailinhos na associação de amigos do bairro onde o rap e o break de Thaíde dividiam a noite com as músicas lentas para dançar agarradinho, que eram tema de novela ou filmes como Top Gun. Aos domingos pela manhã lotava um caminhão de gente para jogar futebol em algum outro bairro. Quando a idade e os efeitos da bebida avançaram um pouco mais, passou a organizar partidas na quadra da escola. Era simpático com as crianças aos velhinhos. Sem distinção, não chamava ninguém pelo nome, e sim por seu bordão pessoal: Compadre ou Comadre. Sua maior alegria era ser reconhecido na rua com um singelo cumprimento: - Bom dia Zé Cumpadre!

Seu Joaquim era dos homens mais simples e reservado, e muito querido pelos colegas. Quando me via na rua perguntava sempre sereno sobre meu pai. Nunca ficava em casa, mas era fácil encontrá-lo, ou no bar do Seu Osmar ou no botequim do Seu Damião. A diferença entre bar e botequim onde morávamos era que no primeiro era possível comprar pão. Em ambos era possível jogar sinuca, e o Seu Joaquim era mestre na arte de encaçapar. Seus reflexos melhoravam à medida que mais rabos-de-galo eram servidos. Quando não estava jogando, ficava encostado no canto do balcão observando à distância e bebendo devagarzinho sua pinguinha do alambique, tal qual passarinho a contemplar a imensidão preenchida. Quando dava o horário para o trabalho, passava em casa, pegava a bicicleta e depois pedalava trinta minutos até a fábrica de suco que tinha lá perto. Em momentos de maior euforia etílica, declamava Vinícius de forma trepidante, tal como o Fusca do Seu Didi ao passar pelas ruas de paralelepípedos do centro da cidade. Tinha um interesse cultural refinado que era visto com desconfiança e ignorância por seus pares. Gostava de repetir que o dia que a roseira balançasse pararia de beber. Roseira era sua forma poética de amante ao fazer carinho no amigo balcão (Numa tarde de sol de uma quarta-feira de trabalho, enquanto se despedia do último gole do dia, ao se distanciar do companheiro de madeira que apoiava o copo e sustentava parte do peso do seu corpo, a mesa de sinuca se moveu em sua frente, soltando-se de seu ponto fixo. Assustado, deu dois passos para trás apoiando-se outra vez na bancada amiga. Olhou em frente e ao soltar as mãos, o apoio do bar fugiu de seus dedos, correndo como se fosse uma esteira rolante em alta velocidade. Voltou a se apoiar, fechou os olhos, apertou-os forte como quem quer abri-los fora do mar, e quando tentou soltar-se outra vez, o bar era um bosque que rodopiava em sua volta. Voltou a apoiar as costas contra a parede e manter as mãos firmes sobre o balcão, como se fosse âncora que firmava a terra sob seus pés. Seu Joaquim ficou ali em alto mar por 12 horas, incapaz de abandonar a roseira para cumprir seu compromisso com o trabalho, até que o bar fechasse e os colegas o levassem para casa). Depois que a roseira balançou, Seu Joaquim abandonou o bar, nunca mais bebeu e passou a se dedicar à criação dos filhos pequenos. Cheguei a vê-lo lendo Fernando Pessoa em cima de um viaduto. Sei que hoje ele cuida de diversos jardins de um condomínio horizontal perto de sua casa, com zelo e cuidado reverenciado pelos moradores. Seu Joaquim foi meu soneto incompreendido da infância.

Esses homens singelos em suas expressões cotidianas, puros em suas intenções domésticas de sabedoria, arrojados na grandeza de enfeitar com os mesmos laços uma mesma vida inteira, comuns entre eles como o nome da bebida servida no balcão da igreja, ainda despertam em mim a curiosidade de criança que rouba conhecimento com os olhos.

De criança que avança para brincar de ganhar, que se esconde para os dedos não julgarem os atos dos adultos, que chora para que o sol ilumine a tristeza derradeira, que pula para que as barras da calça e as mangas da camisa avisem que o corpo está crescendo, que sua para que o tempo congele no infinito, que corre para que os pais saibam logo da beleza que aconteceu.

São todos homens impregnados de vícios e vicissitudes, enganos e acertos em suas maldizentes ou doces vidas.

Mas antes de qualquer coisa, dos bares ou dos céus, homens bons.

Jânio Dias

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O Amor em Maiúsculas

imagem: arquivo pessoal


“Não preciso de modelos
Não preciso de heróis
Eu tenho meus amigos
E quando a vida dói
Eu tento me concentrar
N'um caminho fácil

Sou eu mesmo e serei eu mesmo então
E eu queria que o tempo
Pudesse voltar dessa vez
Oh yeah"

Legião Urbana, em Comédia Romântica


Há um leve nevoeiro sobre o instante impreciso da memória. Uma cortina fina e branca, quase amarela, rente à retina da lembrança, impregnada pelo perfume suave e ardente da adolescência.

Há em minha frente espasmos em slow motion de imagens de quando o corpo era capaz num primeiro impulso para o alto, como que fosse dar um toco na bola de basquete com o quadril auxiliado pelas pernas, o pulo sobre o muro da linha do trem passando para o outro lado, e depois o andar tranqüilo sobre os trilhos até a plataforma da estação. Para eu chegar até o centro da cidade para encontrar a minha turma, era preciso antes do desejo de estar presente, não pagar a condução.

Eu gostava de olhar para a minha turma como cavaleiros do século XIII, seres nobres e honrados, fiéis às suas regras e finalidades. Tínhamos o nosso próprio lema que era declamado em forma de canção e impresso em adesivo colante. Uns vestiam-se todo de preto e roupa de couro, outros de branco com jeans com buracos enormes. Quase não bebíamos por falta de dinheiro, logo investíamos todo nosso potencial criativo em cantar e discutir as canções da banda preferida. Havia também as leituras de poesia e prosa, nossa maior expressão de diferenciação. Éramos diferentes porque antes de tudo, cultivávamos a amizade e a paixão por nós e pela arte.

Havia as meninas, corpos brancos e morenos com pêlo, que em sua maioria (ou para preservar a amizade ou para celebrar a diversidade) formavam par com alguém fora do grupo. O inverso também era verdadeiro, bem como o oposto do inverso. Logo pares duradouros se formaram e o grupo ficou maior, unido e íntimo, como família italiana nas cenas de festa em filme de máfia. Uma máfia que organizava celebrações.

Tantos anos já se passaram parecendo não ser tantos assim. Às vezes parece que foi ontem, outras vezes há tanto tempo atrás. A cada ano um estágio diferente da vida foi iniciado, cumprido, modificado ou nem tanto assim. Os namoros, os trabalhos, os cursos universitários, as desistências, as formaturas, os sonhos, os casamentos, as revisões, o retorno ao começo. Os novos frutos do amor unido. Uma enxurrada de desafios dando forma à vida adulta, tomando o lugar das coisas que mais gostávamos de ter por perto, produzindo espaço para outras formas de amar. O desafio de encarar a beleza do novo, de insistir no passado, de manter a coerência do que tentávamos ser. A vontade de romper a linha do tempo e viver tudo outra vez.

Desde o dia que entraram na minha vida, nenhum inverno foi igual ao anterior.

Há como que intacto no semblante sereno da memória, como que casaco abotoado, a imagem da camiseta da banda preferida estampada com o desenho da flor que não se sabia se era um lírio ou uma flor-de-papoula. Na dúvida constrangedora da imprecisão da resposta, um apelo lírico: - Essa flor é amor-perfeito, caro senhor.

A festa numa casa noturna onde todos foram embora porque o lugar não permitia meninas de 15 anos; os encontros nos bares da região do Bexiga sem dinheiro no bolso, pedia-se uma porção de queijo e um refrigerante para a noite toda, até o metrô abrir as 5h; o primeiro amigo secreto e o presente improvisado em papel de celofane vermelho, eram flores roubadas de uma casa com jardim; a vaquinha para convencer a gerente do flat/hotel a alugar um quarto para 12 pessoas passarem a noite; o dia em que uma das meninas mais bonitas apareceu, e muito rápido um de nós disse: – Essa será minha futura esposa.

A festa de aniversário quando a menina de quinze fez 18 e todos apareceram de surpresa, gesto ensaiado com os pais da amiga; os cafés da manhã na casa do casal amigo, os churrascos revesados e as macarronadas da dona Tereza; a viagem de ônibus para um sítio, enquanto todos cantavam Mamonas Assassinas no fundão, um de nós passava mal mais ao meio com necessidade extrema de fazer xixi, mas o ônibus não tinha banheiro e não fazia parada no caminho, o amigo tentou fazer no vidro de gatorade e não conseguiu, o motorista foi obrigado a parar o veículo no meio da rodovia; a despedida de solteiro do amigo que de tanto que já ouvi repetidamente os detalhes, às vezes acho que eu também estava lá; a viagem para o casamento do outro amigo no interior do Paraná como padrinho - a primeira vez que usei um terno. – Você nunca esteve tão bonito!

A imagem do amigo músico tocando violão pela primeira vez em volta de uma fogueira improvisada, que ia a show fora do estado só com o dinheiro de ida e vendia camisetas para a comida e a volta, a lembrança do dia que fomos apresentados por um amigo meu que era amigo de infância dele e a descoberta que já o conhecia pelo adereço que usava na cabeça: - Cara, eu conheço esse boné!

A primeira vez da menina do Rio entre nós e a estranheza e os risos que causou ao de repente começar pular e cantar para logo se explicar: - Ué gente, olha a placa, estamos na Rua da Alegria. Os nossos telefonemas de madrugada e minha mãe me repreendendo do quarto: - Olha a conta... Desliga o telefone e vai dormir menino. Mas a gente queria sempre mais.

Às vezes é tão cansativo tentar lembrar, mas nenhum inverno possui o mesmo sabor sem que sejam recontadas algumas das histórias mais importantes de nossas vidas. O amor ainda mora ao lado.

Eu queria poder contar a história de cada um deles sob a minha visão sempre estreita e amplificada, ingênua e romanceada de como as coisas aconteceram, de como conheci cada um lá atrás, no auge de nossas descobertas e inocência. Mas a memória não é mais a mesma e o espaço aqui não seria suficiente para detalhar os campos indefinidos e indecifráveis da paixão.

Acho que sinto assim porque é julho. O mês em que alguns inocentes e sonhadores jovens se conheceram e ficaram... De repente... Como dizer?

- AMIGOS.

Há um cheiro aveludado no ar de saudade guardada.

Jânio Dias

sábado, 12 de julho de 2008

Le Scaphandre et le Papillon

imagem: The Red Sphinx, de Odilon Redon


“Sometimes I feel like I don't know
Sometimes I feel like checking out.
I wanna get it wrong
Can't always be strong
And love, it won't be long.”

U2, em Ultraviolet (Light My Way)
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Ele está sentado em sua cadeira de frente para o mar. Há um vento forte e frio que passa por ali. Está bem agasalhado e com o corpo coberto por mais de uma manta. A praia está deserta, há apenas ele, a ex-esposa, os filhos e gaivotas no céu que parecem procurar outra estação. As crianças estão brincando incansavelmente na areia, a ex-esposa dividindo seus cuidados e preocupação entre ele e os filhos. As gaivotas são um rastro rápido no azul do céu que deixou de ser infinito.

Seu olhar parado e aparentemente sempre perdido, ora seguindo o circulo da passagem dos movimentos infantis, ora admirando o carinho contemplativo da ex-esposa, tem atenção especial para as ondas que vão e retornam em sinfonia rítmica. Parecem levá-lo em mente e espírito às lembranças mais raras e ricas de sua vida, às lembranças dos mais belos sonhos não vividos quando criança, dos momentos mais intensos realizados quando adulto.

Em suas andanças pelos caminhos desnivelados da memória, há entre tantas paradas e comitivas emocionais, a visita surpresa à mulher amada ainda inconsciente pelo sono. O toque gentil em seu rosto, o arrumar cuidadoso dos cabelos, o beijo carinhoso sobre as pálpebras adormecidas. O mergulho para debaixo do cobertor da amada sem tirar as roupas, o encontro com seu corpo nu e quente. A saída correndo para a praia como dois velocistas apostando corrida para ver quem se molharia primeiro. A queda sobre a água morna da manhã, o rolar abraçado a ela sobre a areia como se fosse o Marlon Brando em “A Um Passo da Eternidade”.

Há os dias de sol mais felizes envolto com as crianças, os passeios de carro em meio ao verde e as montanhas francesas, os cabelos esvoaçantes dos filhos sentindo o vento como parte imediata da vida, as tardes nubladas de sábado com as cores mais vivas que um dia poderia ter. As brincadeiras de rodar no ar como pião descontrolado mas equilibrado sobre o chão, o levantar vôo com a tontura dos giros, o largar do corpo na confiança de que o pai estará do lado certo no momento da queda. O amparo irremediável para as dúvidas e as certezas que só os filhos têm.

As visitas ao pai já velhinho e com dificuldade de andar, com dificuldades de lembrar o pensamento articulado nos últimos quinze segundos. A facilidade de fazer graça com o início do alzheimer, a facilidade de sorrir para os amores que existiram e não serão esquecidos, a graça da dureza de não admitir ser barbeado pelo próprio filho. A delicadeza da certeza de ainda ser o mais belo dos homens barbeados.

O passeio solitário de madrugada por ruas de um bairro mexicano. As luzes de néon convidando para entrar e viver o azeite e o escorregadio da perdição, seguir reto e encontrar a esquerda uma vitrine gigante com a imagem de Lourdes. Observá-la atentamente como se de repente a fé surgisse e fosse possível passar a acreditar. Como se naquele momento surgisse uma espécie de redenção, como se fosse possível pedir um mínimo de conforto para os dias ainda mais difíceis que surgirão. Como que seu espírito fosse ali liberto do escafandro em que vivia e passasse a voar lépido como borboleta. Para ele a crença na fé dependia da existência comprovada de milagres. E sua vida não era um milagre.

Seus dias sempre haviam sido ricos em disposição atlética, em energia melódica, em beleza intensa. Seus dias tinham o brilho rasgante dos raios do sol por entre as cópulas das árvores. Seus dias tinham o fogo ardente da terra do nunca. Seus dias tinham cores do espírito santo.

Mas numa tarde de sábado nublado e feliz, um acidente cardiovascular deixou-o sem movimentos, sem sentidos. Cabeça, boca, mãos, dedos, pés, nada está lá. Ou todos estão lá. O coração bate, seus pulmões aspiram e espiram. Sua capacidade intelectual está intacta. Compreende, fica bravo, triste; sente saudade, remorso, tem senso de humor e gostaria de seduzir a fisioterapeuta. Mas seu tronco cerebral foi desconectado. Nenhuma reação a estímulos, nenhuma expressão facial. Nem sorriso de bom dia, nem lágrima de alegria. Nem o olho direito. Apenas o esquerdo.

Ele se comunica com o olho esquerdo. Uma piscadela para sim, duas para não. Dita para uma assistente a história de sua vida através de movimentos com a pálpebra esquerda.

Ele diz o que quer a quem ama com um piscar de olho.

Jânio Dias

quinta-feira, 3 de julho de 2008

The Constant

imagem: Score sheet of 'Moonlight Sonata', de Ludwig van Beethoven


“Enquanto for... um berço meu
Enquanto for... um terço meu
Serás vida... bem vinda
Serás viva... bem viva
Em mim”

"Os opostos se distraem
Os dispostos se atraem"

O Teatro Mágico, em Realejo


Sempre que eu lembro de você, um cheiro de mar agitado e gentil invade a sala.

Eu ainda era tão pequeno quando era obrigado a ouvir por tabela a rádio AM que minha mãe sintonizava, ainda era tão cru como ser assistindo a televisão no sábado a tarde o programa daquele sujeito que jogava bacalhau no público, e via meu pai olhar aquelas mulheres que dançavam alegremente e o faziam sorrir como que se algo acontecesse dentro dele, como se elas despertassem alívio para a semana de trabalho que havia passado, e você lá, do outro lado, com sua voz feroz e lírica, cheio de energia e ideais expondo seu talento e já algumas contradições do seu gênio para um público incapaz de entendê-lo.

E eu do lado de cá, na sala de casa enquanto minha mãe passava o pano de chão na cozinha e meu pai se deleitava no sofá com algo que só agora entendo (ou um pouco mais de tempo depois passei a entender), curioso com aqueles movimentos descompassados do seu corpo, com aqueles óculos que deixavam seus olhos flamejantes tão pequenos, com aquela fúria que invadia a sala e me fazia sorrir sem entender por que sorria.

Ainda um tanto pequeno, adorava observar seu discurso quando o apresentador do programa alternativo na outra emissora vinha lhe questionar sobre o futuro da nação. Era tão racional, político e incendiário, parecia que fagulhas saiam da sua boca e atiçavam o senso adormecido de justiça dos jovens daquela época.

Eu te ouvia no rádio como se fossem dois artistas diferentes abordando assuntos semelhantes. Sua voz me parecia tão distinta naquela outra canção que eu era capaz de apostar com quem quisesse que você, não era você. Eu não admitia que você fosse capaz de falar de colonização e paixão na mesma canção, não acreditava que você falaria de medos e outros sentimentos de forma tão... digamos, desnuda. Um pensador essencialmente político não seria capaz de amar de maneira tão explicita. Demorei a entender que desde sempre tudo o que você falava remetia a algo maior.

Já um pouco mais crescido, ficava fascinado com o encarte do vinil nas mãos. Eram os livros de poesia que eu não entendia traduzidos. Cada letra da canção era lida e repetida de olhos fechados até que fosse possível cantá-las antes que você saltasse da vitrola. Cada verso era rabiscado no caderno da escola como se houvesse ali a essência de todo aprendizado. A professora de português que tocava violão e colocava versos seus para interpretá-los, além de a mais bonita, era também a única e mais importante.

A menina linda de 16 anos que vestia uma camiseta branca de manga longa com o logotipo do fã-clube estampado sobre o coração, quando subia a rua do condomínio carregando embaixo dos braços os discos do Smiths (que você tanto adorava e tinha como referência e inspiração), fazia o coração disparar em desespero mudo. A língua ficava paralisada só de olhar para ela. Quando ela falava meus olhos mergulhavam em suas palavras e as roubava para mim. Sugava sua sabedoria sobre você e sua obra como se devorasse um livro religioso, como se aprendesse nela através de você um pouco mais sobre o sentido de existir.

A primeira vez que fiz uma entrevista de emprego misturei dezenas de frases de suas canções no texto. O entrevistador ignorante disse que minha redação era quase um poema, mas o outro candidato à vaga era mais objetivo. Fiquei feliz com o quase. Passei a brincar ainda mais com seus versos que já eram quase meus.

A minha primeira namorada não concordou que eu fosse sem ela a um show seu. Acho que ela não entendia a paixão, e disse: “ou eu ou o show”. Fiquei sem namorada e tive a primeira grande realização da minha vida. O mundo se mostrou mais interessante e acolhedor naquela noite em Sorocaba.

Você não tem a mínima idéia, mas conheci algumas das pessoas mais importantes da minha vida porque elas também gostavam e tinham o mesmo interesse em você. Quando você estava mais presente, eles eram muitos. Hoje são poucos, mas essencialmente raros em beleza. São amigos que quando se encontram brilham o suave da poesia e o amargo do tempo. Assim como você costumava se comportar com os seus: doce e ácido, displicente e generoso em sua diversidade.

Aquela vez que eu lhe escrevi, você quis saber mais sobre mim. Minha timidez e nossa distância não permitiram que nos encontrássemos. Mesmo assim senti-me feliz e orgulhoso com o interesse, afinal, aquela carta o criticava, mostrava-me decepcionado com suas atitudes, irritado e triste com o seu comportamento naquele último show, exatamente o oposto de quem não admite as falhas e evita enxergar criticamente seu ídolo; exatamente o comportamento oposto do artista que se acostumou a viver rodeado de jubilo. Aquela carta mostrou que minha fé em você seria uma constante.

Desde que você se foi, eu vivo meus dias em busca de uma nova descoberta, uma nova perspectiva, uma nova equação diferencial e exata. Uma nova constante. Algo que possa ser a diferença entre o que se passou e iluminar o insosso do hoje. Algo que traga o despertar do novo com poesia e sabedoria. Algo que crie harmonia e alimente a inteligência dos meus vestígios.

Eu tenho você como lembrança rara de tudo que aprendi, de tudo que eu poderia ser. Eu tenho você como mensagem verdadeira para o que devo fazer quando a luz se afasta dentro do túnel. Eu tenho você como garantia da vida que adormeceu por segundos antes das seis. Eu tenho você como forma de amor que não dilui com a saudade ou a tempestade. Eu tenho você como a menor distância entre o fechar dos olhos e o apertar das mãos.

E sempre que eu lembro de você, meus olhos viram mar que invade a calçada, mas não transbordam mais.

Jânio Dias

quinta-feira, 26 de junho de 2008

El Amor Después Del Amor

imagem: La Belle Dame Sans Merci, 1926, de Frank Cadogan Cowper


“Tem riso que parece choro,
tem choro que é pura alegria
Tem dia que parece noite
e a tristeza parece poesia
(...)
Descobrir o verdadeiro sentido das coisas
É querer saber demais
Querer saber demais”

O Teatro Mágico, em
Sonho de Uma Flauta



O que vem depois de um dia de sol escaldante? Ou depois de uma noite quase congelante? O que vem depois do cobertor ou da tatuagem?

O que vem depois da palavra ou do afago? Do fogo ou da lágrima? O que vem depois da angústia ou da insônia?

O que vem depois da curva rápida, ou uma rua sem saída? Ou depois do tropeço no pedregulho, ou do buraco na calçada? O que vem depois da sirene ou dos faróis?

O que vem depois do olho no retrovisor?

O que vem depois da sina ou da malícia? Da caça ou da captura? O que vem depois da ciranda ou do pega-pega?

O que vem depois do soluço, ou do afogamento? Da cobrança ou da desculpa? O que vem depois do pedido ou do perdão?

O que vem depois do nó na garganta ou do olhar desviado? Da trégua ou do reencontro? O que vem depois da saudade ou da despedida?

O quem depois da chuva ou do arco íris?

O que vem depois do remédio ou da lição? Do som ou da fúria? O quem vem depois da fonte ou da inspiração?

O que vem depois da entrega ou da fuga? Da rede ou do vento? O que vem depois do olhar ou da memória?

O que vem depois da carne ou da febre? Do óbvio ou do ódio? O que vem depois do suspiro ou da encenação?

O que vem depois do silêncio?

O que vem depois da vontade ou da luta? Da caminhada ou do parque? O que vem depois do salto ou dos pés no chão?

O que vem depois da tristeza ou da inocência? Do riso ou dos lábios? O que vem depois do escuro ou da resignação?

O que vem depois do abraço ou da mordida? Do alarme ou da chegada? O que vem depois da fome ou do desejo?

O que vem depois da tarde ou do beijo?

O que vem depois do deserto ou do agreste? Da sede ou do açude? O que vem depois da aspereza ou da ferrugem do portão?

O que vem depois dos quadros ou da rachadura na parede? Da pintura ou da escavação? O que vem depois da campainha ou do telefone?

O que vem depois da chave ou da porta? Da janela ou da fenda? O que vem depois do telhado ou da lua?

O que vem depois do número da casa?

O que vem depois do alarde ou do descanso? Da bebida ou da música, da tontura ou da ausência? O que vem depois do vômito ou da descarga?

O que vem depois da maré ou da bonança? Da poeira ou do gol, do grito ou da oração? O que vem depois da primavera ou da esperança?

O que vem depois do colo ou do medo? Das cores ou da leveza, do gosto ou da respiração? O que vem depois da dança ou da dúvida?

O que vem depois do esquecimento ou da imaginação?

O que vem depois da resposta ou da contradição?

Vem o doce, o salgado e o azedo. A lembrança indecisa do que ficou. Uma brisa suave e imprecisa do que é o amor.

Jânio Dias

terça-feira, 17 de junho de 2008

Rafaela, 15 anos

escrito por Jânio Dias
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imagem: fotos arquivo família; sobreposição por Jânio Dias



“Quando você sorri pra mim
Parece que o mundo não é um lugar tão ruim”

Capital Inicial, em Giulia



Rafaela,

Não é exagero para nós afirmarmos que a notícia da sua chegada nesse mundinho recheado de complexidades criadas pelo próprio homem foi um ponto de divisão entre o antes e o que se seguiu depois em nossas vidas. Foi como luz que revelou sentidos que ainda não conhecíamos, foi como chuva leve em dia de verão que tem o arco íris como fundo e beleza.

Aquele bebê rosa de olhos genuinamente azuis e sem cabelos fez muitos de nós chorarmos a alegria de uma nova existência, fez todos nós celebrarmos a magia de um novo amor.

Egoístas que somos, desejávamos que você não crescesse logo para que continuasse a alimentar nossos mimos e lembranças do tempo em que a inocência também era nossa companheira.

Altruístas que não somos, sempre recebemos mais de você do que fomos capazes de lhe dar.

Bem que tentamos nos esforçar para que você fosse uma criança educada e de bons modos.

Tentamos, em vão, que todos saibam agora.

Porque nossas tentativas eram sempre antecipadas a algum gesto de carinho inerente a sua natureza, a alguma graça carregada de meiguice e beleza. Sempre o bebê mais educado, o mais fofo, o mais belo.

Você nos deu o trabalho doce de acompanhar o seu crescimento.

15 anos se passaram e os elementos daquela criança com olhos de aniz e cabelos radiantes como raios da luz do sol continuam presentes despertando atenção e provocando encanto por onde passe.

Hoje não é só mais uma festa de aniversário. Hoje é a nossa recordação do dia em que você veio ao mundo.

É você que faz o aniversário, mas somos nós, sua Família e amigos que recebemos o presente.

O presente diário da sua existência.

Feliz Aniversário!

Com amor,

Sua Família.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Sobre O Teatro Mágico, de Fernando Anitelli

por Jânio Dias
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imagem: arquivo pessoal


“Sem horas e sem dores / respeitável público pagão / a partir de sempre toda cura pertence a nós / toda resposta e dúvida / todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser / todo verbo é livre para ser direto ou indireto / nenhum predicado será prejudicado / nem tampouco a crase, nem a frase, nem a vírgula e ponto final! / afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas / e estar entre vírgulas pode ser aposto / e eu aposto o oposto que vou cativar a todos / sendo apenas um sujeito simples / um sujeito e sua oração / sua pressa e sua prece / que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não / que enxerguemos o fato / de termos acessórios para nossa oração / separados ou adjuntos, nominais ou não / façamos parte do contexto / sejamos todas as capas de edição especial / mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante / sejamos também a contra-capa / porque ser a capa e ser a contra-capa / é a beleza da contradição / é negar a si mesmo / e negar a si mesmo / é muitas vezes, encontrar-se com Deus / com o teu Deus / sem horas e sem dores / que nesse momento que cada um se encontra aqui agora / um possa se encontrar no outro, e o outro no um / até porque... / tem horas que a gente se pergunta... / por que é que não se junta tudo numa coisa só?”

O Teatro Mágico, em Sintaxe à Vontade, de Fernando Anitelli



Um vento leve havia soprado o nome aos cílios da novidade, um link no blog da
menina-cabeça-de-liquidificador havia despertado a atenção dos olhos curiosos, uma matéria sobre fãs fanáticos no guia de cultura do jornal provocou um sussurro ao pé da sobrancelha. Era preciso visitar a magia, conhecer seus efeitos, mas eu só encontrava os rastros desfeitos de quem já a conhecia, e por isso sabia que era preciso estar atento as datas e locais do acontecimento. As entradas são para raros.

Quase duas dúzias de meses depois, em uma das últimas apresentações do 1º ato, os olhos puderam descansar felizes, inteiramente sorridentes.

O relógio piscava 0h48 de domingo, 08 de junho, Mogi da Cruzes, SP, quando a mágica apagou as luzes para acender o canto de milhares de vozes em uníssono. Duas horas antes, parado na calçada esperando que os carros deixassem que fosse possível atravessar para o outro lado da rua para entrar no Clube de Campo, uma menina que aparentemente não era da cidade, explicava ao garoto aparentemente da cidade, num misto de segredo e mistério, que O Teatro Mágico era uma cartola gigante de onde saltavam os personagens que alimentavam seus sonhos mais coloridos. Fiquei alguns longos e indecifráveis três segundos parado olhando para a menina, mais olhando do que tentando entendê-la, quando fui puxado para atravessar a rua.

Se eu pudesse compartilhar o gosto impreciso da minha saliva com ela, lhe diria que O Teatro Mágico é um hospício que hospeda a tristeza risonha dos dias que esquecemos no amanhã, para nos doar a beleza do agora.

É felicidade que inventa a mentira que queremos viver, é verdade que lembramos de contar nos dedos da manhã. É alegria que inverte o sentido da maquiagem do rosto, é lagrima que rejuvenesce as linhas do tempo.

É loucura que transborda a sensatez do pranto, é delírio que desperta a inconsciência do riso descontrolado. É a sanidade de quem reencontrou o mar.

É canto que seduz a menina virgem, é texto que encanta a menina experimentada, é melodia que desacredita o rancor do velho senhor. É teatro que estreita a distância entre os parágrafos.

É infância revisitada com bolinhos de chuva na cozinha da avó, é café com leite em manhã que não teve aula. É beijo na bochecha do irmão mais novo quando estava dormindo, é ser beijado pelo irmão mais velho e fingir que estava dormindo.

É levar a sobrinha para passear com a motinha na pracinha da cidade e insistir pra ela pedalar, quando o mais bonito é vê-la empurrar o próprio brinquedo. É perder-se cantando junto quando o mais belo é apreciar o restante do público cantar em harmonia desesperada.

É enlevar o rosto borrado nos caminhos mais trôpegos, é encenar o riso quente nas curvas do precipício, é encarar a queda sem colocar a mão no nariz. É encandear os pensamentos nas alegrias que virão.

É estender as mãos para as singularidades do acaso. É acordar o dia seguinte com confiança guardada no peito. É abranger a prece para o amigo do lado.

É acenar a boca molhada de desejo para a fruta nua sobre a mesa.

É fomentar a independência da nossa imaginária liberdade.

São acordes luminosos no fogo de cordel encantado. É romantismo carnavalesco entre hermanos e lirismo revolucionário de uma legião.

É poesia que faz da arte lençóis que cobrem multidões; é prosa que inventa arte nas multidões descobertas.

É aceitar a partida sem pressa, de bicicleta; é acertar a chegada sem calma, a cavalo.

O Teatro Mágico é a esperança que não me acompanhava.

Jânio Dias


PS.: thanks Veneza, por proporcionar o encontro do desejo à magia.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Entre Uma Coisa e Outra Coisa

The Clown, de John Wright


“Eu sou o Poderoso, o Bababã,
o Bão! Eu sou o sangue,
não!Eu sou a Fome! do homem
que come na brecha da mão de quem vacila
Eu sou a Camuflagem que engana o chão
A Malandragem que resvala de mão em mão
Eu sou a Bala que voa pra sempre, sem rumo, perdida”

Lobão, em
El Desdichado II
'
'
Em tempos em que o tema ética só aparece em aula de sociologia ou de história, e que programas de humor (veja bem, de humor) na tv fazem "pegadinha" com pessoas na rua onde dão o troco a mais na venda do cigarro ou deixam um aparelho de celular em algum lugar para testar se a pessoa que recebeu o dinheiro a maior ou encontrou o objeto irá devolver ou não, e 99% não devolvem, fingem estar longe ou serem esquizofrênicas, inventam histórias absurdas para não devolver, e quando são questionados pela equipe do programa da tv se achassem alguma coisa na rua se devolveriam para o dono, e descaradamente dizem que sim, mas segundos atrás haviam agido de forma oposta, ou chegam a dizer que este tipo de questionamento está sendo feito no país errado... Respiro fundo, conto carneirinhos imaginários, sinto vontade de ir embora para as Ilhas Maurício, e lembro que todos os dias o brasileiro passa e provoca desapercebidamente consciente por testes e exemplos de sua ignorância ética, sejam na fila do banco ou do metrô, na vaga do estacionamento reservada para deficientes físicos, no farol vermelho ou quando é parado pela polícia na estrada e a mesma sugere um "jeitinho" para se seguir viagem. Então meu senso comum desperta, grita comigo e aos berros soletra em silabas garrafais que isso só acontece porque estamos diariamente colocando em prática o reflexo da personalidade dos políticos que elegemos. Somos assim como eles e eles assim como nós; são nossa imagem e semelhança.

Vai um nariz de palhaço aí, amigo?

Dia desses, após presenciar um show muito aguardado de uma especial banda de indie rock, fui ler as impressões dos fãs numa comunidade do Orkut. Havia vários depoimentos entusiasmados que iam de encontro ao que eu estava sentindo. Porém, um deles – não menos entusiasmado – entre a alegria e o sentimento de “espertalhão”, contava os detalhes de uma falcatrua para burlar a segurança do local e assim poder se passar por integrante da imprensa, e as peripécias vividas graças a essa fraude.

O trapaceiro cheio de júbilo contou:

“Eu e meu brother, fizemos uma credencial do "Terra" falsa, como se nós fossemos da imprensa....e detalhe, entramos VIP (...)”

“(...) corremos lá pra frente e só mostramos o crachá, o segurança, panção, viu o crachá e liberou... daí então, eu assisti o show inteirinho, literalmente na frente do Palco. (...)”

“Não contente com a credencial VIP dos VIPS, tentamos subir no palco, fomos por trás do palco, mostramos a credencial pro segurança... ele olhou e pediu pra gente subir ..... nooooooooooosssa, pegamos o finalzinho do show, vendo do paaaaaaaalco (...)”

“Foi bem legal... no meu álbum eu coloquei a credencial do "Terra" que eu fiz.... hahahaha, ficou legal vai gente... quem vai dizer que é falsa???”

Achei, digamos, bonito o entusiasmo do rapaz. Eu sei muito bem como é a sensação de sentir bem de pertinho uma banda querida e especial. Então, dirigi algumas palavras logo abaixo de vários comentários que festejavam com admiração a atitude esperta daquele que deu uma banana para milhares de pessoas, inclusive centenas de participantes daquela comunidade que haviam ido ao show.

“Gabriel, admito que entendo perfeitamente sua alegria radiante e a necessidade de dividir momento tão mágico com os outros fãs. (...) E por ser real, por realmente ter acontecido, você deve e merece se sentir muito feliz com isso, e dividir com todos que possa.

Contudo, cabe aqui lembrar que, muita gente tão ou mais fã da banda que você, sofreu muito para conseguir comprar o ingresso de R$ 100,00 ou mesmo meia entrada para estar entre os "comuns", aqueles que se acotovelaram e disputaram espaços minúsculos entre umas vinte mil pessoas. Fãs mais ardorosos fizeram loucuras para comprar ou ganhar ingresso na privilegiada área vip. (...)

Então, cara, sem querer diminuir o sentido da sua alegria, acho que é muito mais bacana se sentir um privilegiado, sortudo e um cara muito feliz, sem ter que precisar de certos artifícios, como adulteração de um documento. Devemos ter a exata noção que aquela separação entre vip's e "comuns" já é algo muito injusto, e que a felicidade por vivenciar um momento tão grandioso e histórico (como foi histórico aquele show) pode acontecer de forma bem mais justa, correta e digna.”

Algumas pessoas concordaram comigo, outras acharam que eu estava querendo aparecer.

O garoto da credencial falsa reagiu assim:

“Janio, com certeza sei que ali naquele Show estava exposto da forma mais suja possível, a desigualdade social no Brasil, não é a toa que nós estamos entre os últimos no Ranking de Desigualdade Social.

Os Ricos e Famosos, ganharam o espaço mais priveligiado do SHOW, na boca do palco, sem tumulto, sem aperto... A Galera que curtia a banda mesmo, ficou num total desconforto, segundo relatos que eu li, amassadas na grade, na ponta dos pés etc.

Quando li, que pra estar na área VIP, era preciso R$ 250... eu dei risada, e pensei comigo mesmo em casa "E se eu Burlar este sistema fédido"... Criei a credencial, e enfim curti o Show tanto, ou muito mais do que eles... os VIPs. Pq somente os ricos tem o direito de serem VIPs? Eu um pobre mortal, tenho de aceitar minha situação de ser esmagado numa grade, só pq eu não tenho dinheiro?... seria uma punição pela minha pobreza?

O João, matô a pau, qdo disse: "Vc nunca baixou uma música pelo Kazaa?", se vc já puxou meu amigo, não me venha todo emburradinho, falar que eu estou errado.

Janio, enquanto existirem caras como você, que ajudam a fortalecer a Elite, com esse discursinho Politicamente Correto, típico da Elite, o Brasil será essa Bosta. Temos que mostrar para os mais abastados, que estamos dispostos a comer o frango deles, a invadir o cirquinho deles e a quem sabe um dia.... nivelar a sociedade. NÃO ACEITO SER AMASSADO PQ NÃO TENHO DINHEIRO... se isso pra vc, é ser ético, sinto-lhe informar, mas os valores burgueses correm ferozmente em suas veias.

Não Seja Hipócrita.”


E eu respondi:

“Muito bem. Então é isso? Bom, como diria o filósofo do botequim: "uma coisa é uma coisa; outra coisa, é outra coisa". Ou como diria minha saudosa professora Odete da quarta série: "Uma coisa é saber ler; outra coisa é compreender o que foi escrito".

Uma coisa é saber o significa "desigualdade social no Brasil". É conhecer e ser tratado em hospital público, é não ter condições nem de freqüentar a escola pública, é saber como milhões de nordestinos sobrevivem com três refeições por semana... Outra coisa é afirmar que naquele show "estava exposto da forma mais suja possível a desigualdade social no Brasil". Só estava ali quem realmente gosta do que ia acontecer ali, só quem tem meios econômicos-sociais de acesso àquele tipo de cultura estava naquele lugar naquela noite. No mais, estavam ali jornalistas, artistas, gente do meio cultural em geral, convidados especiais e funcionários do evento. Apesar dos "ricos e famosos ganharem o espaço mais privilegiado dos shows", isso não reflete desigualdade social, e sim uma opção inapropriada e injusta dos organizadores do evento em criar uma espécie de Apartheid musical. Quem vive realmente o drama da "desigualdade social no Brasil", estava em outros lugares e com outras preocupações.

Uma coisa é se indignar com o valor do ingresso absurdamente caro e pensar numa forma inteligente de não aceitá-lo como boicote ao evento, ou criar honestamente condições próprias para aceitá-lo, como contou um rapaz num outro tópico (Vitor, no tópico Falando Francamente). Diz ele que ficou um mês sem sair de casa para juntar o total de R$ 100,00 para a área vip (provavelmente ele foi atrás do desconto de estudante e outras possibilidades), ou ligar insistentemente numa rádio e ganhar o convite. Outra coisa é fraudar documento oficial para ter acesso aos shows.

Uma coisa é uma mente preguiçosa achar que só os ricos têm o direito de serem vip's; outra coisa é a constatação através de relatos como o do Vitor de que qualquer pessoa que tivesse realmente se esforçado para estar ali, poderia ter estado.

Uma coisa é alguém que possui estrutura material e intelectual para forjar um documento oficial se considere "um pobre mortal"; outra coisa é esse mesmo alguém alegar falta de dinheiro e justificar numa possível "pobreza" a motivação para a fraude documental.

Uma coisa é achar que um cara como eu, que expõe uma opinião contrária ao comportamento de alguém que - em primeira e gentil análise - não quer tirar a bunda da cadeira e fazer as coisas acontecerem honestamente, é um representante da elite brasileira. Representar a elite brasileira é - em última e cruel análise - defender atos criminosos como o seu.

Uma coisa é pensar e agir burramente que se está fazendo justiça ao "invadir o cirquinho deles"; outra coisa tão burra quanto é misturar valor moral e ético com padrões burgueses - é o mesmo que misturar água com óleo.

Uma coisa é fazer de conta que achou o cérebro num cesto de lixo e comparar troca online de arquivos digitais com a falsificação de documentos. Uma coisa é o cara que sobrevive da venda de produtos piratas; outra coisa é o cara que falsifica um diploma de medicina e faz uma cirurgia num parente seu. Uma coisa é o cara que compra um DVD pirata na barraquinha; outra coisa é o cara que compra a carta de motorista e vai dirigir uma lotação. Uma coisa é o imigrante ilegal trabalhando num país; outra coisa é o cara que falsifica o passaporte para roubar no seu país. Uma coisa é não saber distinguir atitude de pose e exibicionismo. Uma coisa sou eu me expor publicamente sobre algo que você deveria ter aprendido no jardim de infância. Outra coisa é a pessoa que não possui credibilidade pra dizer o que pensa porque assina como anônimo.

E para concluir, ontem eu vi um outdoor gigante na Paulista que é a foto de um senhor, provavelmente pelas feições, um bravo retirante nordestino, alguém que realmente sofre e vive a desigualdade social no Brasil, com meia dúzia de dentes na boca, mas com um sorriso inacreditável de felicidade... Aí eu pensei: "uma coisa é defender a prática de um crime para ser mais feliz; outra coisa é ser feliz com os dentes que se têm.”

Entre uma coisa e outra, vou vivendo assim, como palhaço desse circo sem futuro.


Jânio Dias

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Longe Dela

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imagem: Venus and Anchises, 1889-90, de Sir William Blake Richmond


“Diga a ela que me viu na rua
Que eu caminhava muito devagar
Que eu olhava para todos para enxergar
Tanto espaço dentro de mim”

Nenhum de Nós, em Diga a Ela

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Toda vez que minhas letras insistem em não manchar o papel, minha existência estremece os sentidos. Minha voz fica rala, meus olhos ficam enviesados, minhas opiniões tornam-se frágeis. Meus pensamentos dispersam no ar como bocejos. Minhas palavras são aspiradas para dentro de boca fechada, desaparecem sufocadas na garganta. Engulo lagartas que não viram borboletas.

Quando paro de escrever é porque a vida abafou meu grito sem saudação. Escureceu meu encanto, secou minhas motivações.

Quando paro de escrever é porque minha boca curvou-se ao silêncio dos olhos e fez sigilo de minha solidão.

Quando paro de escrever é porque deixei de ser compreendido entre o limite da realidade pessoal e o da ficção social. Minha verdade é opor-se ao que é real sem deixar de sentir a imaginação. O que invento é parte insólita do que sou. Minhas mentiras têm intenção de impulsionar a roda da dúvida. Minhas memórias são expressões lúdicas e ácidas dos dias que virão. Minha criação imaginosa quer ser borboletas literárias no céu.

Quando paro de escrever é porque a amizade sangrou sua capacidade de resistir. O vinho que reuniu velhos amigos tem gosto de suco de morangos azedos. A amizade debilitada mastiga vidro vermelho.

Quando paro de escrever é porque me desprendi do compromisso de ser fiel comigo mesmo. Paro de expor o que sinto para procurar nos lábios de outras letras a ternura de ser sentido. Paro de inventar desejos subjuntivos para me entregar às luxúrias de outras visões.

Quando paro de escrever é porque meu interesse pela pornografia virou vício incontrolável. Minha dependência é cura para o que não sou mais capaz de realizar. Minha capacidade de autoflagelação é insaciável.

Quando paro de escrever é porque o ciúme sobrepôs o amor com luvas escorregadias carregadas de espinhos. Quebrou os pratos que alimentavam a confiança. Furou os balões que mantinham suspenso a liberdade.

Quando paro de escrever é porque a vida extraviou o brilho de minhas exclamações.

Quando paro de escrever é porque meus olhos passaram a ignorar a sabedoria das sobrancelhas e fixar pouso na retina do que passou.

Quando paro de escrever é porque minhas lágrimas apagaram as linhas que desenhavam a forma da casa; e o choro dela queimou o sapé do telhado.

Quando paro de escrever é como um amor que fez de sua existência despedida.

Quando paro de escrever é porque não sei mais como dizer em minhas linhas virtuais como ela é parte de tudo que escrevo, de tudo que opino, de tudo que desejo. Metade de tudo que respiro. Mais da metade de tudo que vivo.

Quando paro de escrever é porque quero apreciar o instante magnânimo da ausência.

Quando paro de escrever sou analfabeto do mundo.

Quando paro de escrever morro um pouco mais longe dela.

Quando volto a escrever é porque ainda há muito para viver perto dela.


Jânio Dias

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Quando Ela Rouba

imagem: Adore, by Jerry Clovis

“Só tenho inveja da longevidade
E dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos”


Caetano Veloso, em Homem


Ele, agitado: “Você rouba a parte do jornal que estou lendo, rouba o livro que ainda não terminei, rouba o meu travesseiro, o meu lado da cama, a minha caneta preferida, a minha caneca do U2, o meu dvd do Morrissey, o meu pedaço de frango no prato, a minha bebida no bar... “

Ela, serena: - “Eu sei, eu roubo tudo de você...”

Ele, inconformado: - “Ah, que bom... E o que mais você quer roubar de mim?”

Ela, firme: - “Mais nada. Já tenho tudo que quero. E quando quero mais, roubo mais”

Ele, quase assustado: - ”Mais? Mais o quê?”

Ela, quase distraída: - “Mais de mim”

Ele, interrogativo: - “Como assim?”

Ela, misteriosa: - “Eu me roubo de você”

Ele, insatisfeito: - “Como assim, você se rouba de mim”?

Ela, subjetiva: - “Eu roubo eu mesma de você”

Ele, tenso: - “Você ta me confundindo... Como é isso, de me roubar de mim?”

Ela, excitada: - “Quando você me faz gozar, eu estou roubando eu mesma de você”.

Jânio Dias

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Um Copo de Cólera

imagem: The Last Judgement, before 1562 by Domenico Robusti Tintoretto


“Trouxe flores mortas pra ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar”

Legião Urbana, em A Tempestade


O que você ainda não entendeu é que nunca mais verá meu riso cúmplice deslizar pelas veias do seu pescoço branco.

Nunca mais encostará em meu peito seus cabelos molhados como chumaço de curativo que pedem alívio para a solidão.

Nunca mais terá de mim a saliva que umedece a dúvida e encobre suas mentiras fabulosas.

Nunca mais viverá comigo a tarde de quarta-feira deitada no parque sobre a grama coberta pela canga que levaste como se fosse um divã móvel. Nunca mais me contará dos anseios ardentes de menina em tempo de mulher, das fantasias sexuais que abalam uma vida convencional e que adoçam os dias amargos de quem quer viver o fogo intransigente do fim próximo.

Nunca mais me fará encher o tanque do carro para descer a serra só para andar descalça sobre a calçada da praia numa sexta-feira à noite qualquer e sentir a brisa provocada pela movimentação das ondas, molhar os pés e se oferecer para o mar. Nunca mais terás de mim o mesmo amor que encontraste na intensidade e exuberância da vaga.

Nunca mais seu telefone tocará após a meia noite para transformar seus desejos luxuriosos em mãos que te atacam no escuro da sua sala grande e confortável, abafando seus gemidos e protegendo seus pais e irmãos que dormem tranqüilos nos quartos de cima. Nunca mais seu telefone terá lábios que extraem de seu sexo o suco que a estremece deixando-a suspensa sobre o sofá.

Nunca mais terás a minha loucura para seus mimos que tanto me divertiram.

Nunca mais fará de mim brinquedo que manipula com seus dedos macios e ferinos como rosas carregadas de espinhos. Não decidirá o lugar e muito menos os minutos quebrados do horário para me apanhar. Não dirá em qual copo devo derramar minha vodka ou qual sabor de pizza não devo pedir. Dirigirei na contra mão atravessando o farol vermelho e não escutarei a ordem do policial corrupto e assassino para parar. Levarei um tiro na cabeça ouvindo feliz no volume máximo Franz Ferdinand.

Quero Arcade Fire no meu funeral. Eu sei que para sempre só você entenderá as minhas razões musicais. Mas antes, não terás mais minha entrega para compartilhar ao seu lado a nova música da nova banda que preenche de alegria e motivação meu ultrajado espírito. Não doarei mais minha alma para relembrar contigo o gosto fértil de quando éramos jovens ao lado daquelas velhas bandas e suas nunca ultrapassadas canções.

Nunca mais será premiada com músicas escolhidas como cenas de um filme de amor que têm esperança e reparação no final. Nosso último filme teve o suicídio do amor na última cena.

Nunca mais será celebrada por mim como musa inquieta e inalcançável. Eu te escalei o suficiente para te viver por cima e por dentro.

Você me faz sangrar o som da fúria.

Nunca mais lerá na saudação inicial de um e-mail meu os adjetivos que sempre encheram de ardor juvenil seu coração de estátua de cera. Não encontrará no fim do mesmo bilhete virtual a despedida que se contorcia como grito na forca na espera de vê-la outra vez. O carteiro entregando um envelope branco com uma folha rosa dentro amparando meia dúzia de pensamentos em você virou um registro apagado na memória da calçada da rua da sua casa.

Nunca mais meu abraço virá acompanhado do beijo que encarna a sua presença na lembrança dos anos que presenciaram minha transição de menino para o que sou hoje.

Nunca mais encontrará em meus olhos flamejantes o conforto que sua mãe já lhe deu, a segurança que seu pai nunca lhe assegurou.

Nunca mais terá de mim a força de um coração esguio que ampare com a ternura dos ouvidos as lamentações de sua boca inconseqüente. Nunca mais encontrará em meus pulsos limpos o abrigo para descansar as imperfeições de sua alma egoísta.

Não estou mais disposto a lhe promover em palavras que alimentem seu ego narcisista.

Nunca mais minha língua pulsara dentro de ti como início de vida clamando para nascer.

Nunca mais viverá em meus lábios a sede da procura pelo amor definitivo.

Hoje sou uma campainha que não toca, os cachorros que não latem, o portão automático enferrujado que não abre, o reboco embolorado da parede do corredor descascando pela ação estagnada do tempo. Sou palmas mudas em frente a uma casa fantasma.

O que você ainda não visualizou na retina desfigurada dos dias que criou para nós é que nunca mais serei seu.

O que você ainda não entendeu é que não encontrará mais em meus dias os vestígios de nosso amor.

Jânio Dias

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Ventura

imagem: by Sylvia Ji, Garden of Sin


“And I awake from dreams
To a scary world of screams”

Jesus and Mary Chain, em Darklands



Quando te vi pela primeira vez, vislumbrei ao beijar-te com um singelo toque no rosto complementado de um imprevisível abraço, o cheiro latente de mulher hábil e experimentada, provocante e requintada, dessas que desafiam suspiros desesperançosos e galanteios obscenos por onde passa.

Naquela noite você usava salto alto, o que me fazia sentir um individuo nanico, um ser visto abaixo do seu nariz, que já procurava roubar seu ar mesmo sem conhecê-la, capaz apenas de contemplar tamanha formosura com olhares que se revezavam entre a margem carnuda de sua boca e a sede do mistério do seu olhar. Ainda hoje seus olhos são um culto secreto cuja porta de entrada é inacessível. Sua beleza era tão radiante que chegava a cegar qualquer resquício de juízo, tão imponderável que o novo ocultava qualquer presença de culpa ou pecado.

Nossas conversas fluíam fáceis como se sentissem atraídas, como que compartilhassem as mesmas sensações de alegrias e incertezas percorridas pela vida. Nossas conversas entreolhavam-se com interesses lascivos e secretos.

Não me preocupava em conhecer detalhes de onde vinhas nem se iríamos para algum lugar. Perturbava-me apenas a dúvida da liberdade de poder abraçá-la longa e publicamente, de acariciar-lhe as mãos e de estalar seus dedos quando estivesse distraída, de dirigir com vidros abertos e perceber o vento desalinhando impetuosamente seu cabelo.

Não me visitava a possibilidade das conseqüências de uma aventura errante.

Subitamente a paixão instalou-se de forma desenfreada e explosiva. Mal nos conhecíamos e já estava conhecendo suas sobrinhas e gatos. Eu pouco sabia do bairro onde mora e já te buscava na faculdade. Sua mãe nem sabia ao certo como eu me chamava e já preparava minha sobremesa preferida. Meus amigos mais íntimos a recebia em casa e a convidava para passeios. Minha mãe não trocou seu nome quando a conheceu. Você se tornou um hábito dominador.

Parecia que existíamos para o outro há décadas, que havíamos crescido e brincado na mesma escola e que nossas famílias sempre haviam sido amigas nessa vida. Sentia como que sempre estivesse estado presente e soubesse - não sabendo - nosso destino certo.

Agora parece que a ressaca de nosso amor encontrou os obstáculos que o impedem de seguir. Descobriu que qualquer vida tem seus passados de brilhos rústicos ou sombrios imaculados, e que qualquer nova história só será forte e terá valor se souber lidar de forma matura com esses aspectos e adversidades. E a maturidade parece ainda não ter se apresentado para nós.

A descoberta indesejada da vida passada de alguém será sempre uma mancha cinza e dolorosa na lembrança de quem você é antes de conhecer o outro.

Hoje em dia quando te olho, uma luz frouxa se aproxima e afasta com raiva a beleza dos tempos afortunados em que nos conhecemos. Uma sensação de insatisfação com o caminho percorrido me absorve pelos dentes e adormece qualquer indício de sentido do meu corpo. Os acontecimentos que existiram antes de nós tornaram-se nossa derrota.

E desde que éramos crianças, eu só queria ter sido seu domingo de sol.

Jânio Dias

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A Vida Secreta das Palavras

imagem: Naked Young Man Sitting by the Sea, 1836 by Hippolyte Flandrin

“Everyday is like sunday
Everyday is silent and grey”

Morrissey, em Everyday is Like Sunday


Meu silêncio é amigo zeloso. Respeita nossa história como se fizesse reverência a coisas sagradas.

Meu silêncio destila mel sobre o amargo de nossas imperfeições, atribui peso de valor onde há uma medida vazia, apaga o cinza que seu coração manchou, sopra as cinzas da fogueira da sua vaidade. Meu silêncio promove meios de vida à nossa amizade.

Meu silêncio protege você de mim. Cala teu sussurro perto do meu olhar, evita o afago do rosto quando devo cumprimentá-la, escurece a respiração antes de nosso abraço, afasta o vento que desliza pelos fios dos seus cabelos, desvia o toque secreto dos lábios no momento da partida.

Meu silêncio pensa em você mais do que eu. Não me deixa insultá-la, não me permite a réplica veloz, me afasta do revide à suas calúnias infantis e mimos burgueses, me segura quando deveria espancá-la com as palavras mais ácidas, quando deveria cuspir no céu de nosso passado o quanto fiz sem nunca receber em troca o olhar de quem entende o significado do sacrifício.

Meu silêncio releva suas mentiras. Simula acreditar em todas as bebidas que acompanham suas fantasias e acepções. Meu silêncio revela o quanto o amor é submisso e covarde.

Meu silêncio passa a pé em frente a sua casa para encontrar no vazio da calma o arrependimento necessário para seguir adiante.

Meu silêncio contradiz a expectativa de eu não ser mais aquele que esteve ao seu lado. Meu silêncio é carregado de sons que nunca lhe abandonaram.

Meu silêncio faz sigilo comigo mesmo para que você não saiba o quanto nossas lembranças passadas refletem a memória do presente.

Meu silêncio é colchão de retalhos que absorve o impacto da nossa falta de intemperança.

Meu silêncio ampara meus dedos sobre as teclas do computador, reduz minha raiva, desacelera minha fúria, perdoa sua insanidade.

Meu silêncio seca as lágrimas de um domingo a tarde qualquer.

Meu silêncio é grito aprisionado no peito.

Meu silêncio é mais impetuoso que sua cólera.

Meu silêncio é fingimento para viver tão perto de você.

Meu silêncio não é abandono, é refúgio.

Jânio Dias