sábado, 9 de agosto de 2008

A Ternura e o Papel Toalha

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imagem: Towards the Hills, 1980, de Peter Davidson
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“If there's a place I want to go
Then I'll be there with you
'Cos in my dreams the things
I'm wishing for
Keep coming true”

Belle and Sebastian, em Waiting For The Moon To Rise


Quando alguém querido faz aniversário, quero desperdícios de beijos, orgias de abraços e sorrisos nas orelhas.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o dia nasça ensolarado e sufocante para que seus olhos ardam na garganta a beleza controversa de existir.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que sua noite reflita a luz úmida da emoção dos pais no dia em que ele veio ao mundo.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que chova apenas na janela do seu carro ou do seu ônibus. A chuva no vidro sem molhar o rosto é a lágrima da saudade de uma lembrança que ainda não nasceu.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seu telefone vire uma sinfonia de chamados distintos causando o caos na lembrança, o suspense na memória, o transe na língua indecisa, o conforto do abraço na voz reconhecida.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o trânsito pela manhã tenha o dobro do volume para que os votos de felicidades do amigo que ligou cedinho sejam estendidos com promessas de encontros que duram uma rodovia inteira. A amizade é o asfalto da estrada dos que não estão sozinhos.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seu amigo mais distante e de anos ausente em sua história, apareça em texto confessando a cobiça pelo encontro sempre prometido e nunca realizado. Uma promessa de reencontro não cumprida é o selo de resistência da amizade.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que a voz da pessoa amiga que se transformou em rota indefinida, clareie nesse dia os traços da reconciliação. Que a ausência seja um lapso na memória; que a falta seja substituída pelo indulto; que a carência seja a urgência do afeto amigo.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que o dia se alongue e que a noite não termine. Que suas horas não passem e que as visitas e ligações dos amigos se multipliquem como formiga ao encontro do açúcar. Porque a vida é doce quando se tem amigos.

Quando alguém querido faz aniversário, desejo que seja agraciado com o espanto da surpresa escondida dentro do escuro de uma sala sob palmas e cantos. Que lá esteja presente a sabedoria preocupada da mãe que não descansa nunca e o suor dedicado do pai que protege e encoraja uma nova luta. Que lá esteja vivo o brilho da amizade conquistado na infância e o silêncio respeitoso do amor da menina que ficou guardado nas fotografias. Que o primeiro pedaço do bolo seja oferecido ao guardião do seu coração. Que o segundo pedaço seja colocado de lado como símbolo de que todos os presentes têm a mesma importância. O bolo repartido são pedaços das amizades galgadas no tempo.

Quando eu faço aniversário, o primeiro sopro na vela é um pedido de proteção aos deuses às pessoas que não puderam estar presentes; o segundo sopro é um agradecimento as vidas daqueles que estão comigo; o terceiro é a despedida no tempo que passou e um carinho de boas vindas ao novo instante que iniciou.

Quando alguém querido faz aniversário, sinto vontade de rabiscar nossa história no papel toalha branco e macio e depois enxugar as lágrimas quentes com ele; para que o sal se misture ao azul da caneta e nossa ternura se torne infinita como o mar.

Jânio Dias

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Onde os Fracos não Têm Vez

imagem: Woman Holding a Balance, c.1664 de Jan Vermeer


“Que angústia desesperada
Minha fé parece cansada
E nada, nada mais me acalma

(...)

Apesar de todo desencanto
Eu não desisto de amar”

Barão Vermelho, em Daqui Por Diante



Meus anos de inexperiência nesta vida ainda me questionam: será que sempre é assim?

Um menino de 12 anos está do lado de dentro de uma mercearia, mais precisamente nos fundos, pesando cuidadosamente dois quilos de milho para um freguês. Há ali vários barris com cereais. De arroz a quirela; há até um barril com ração para cães. Os sacos de papel que vão de um a dez quilos estão em uma bancada ao lado, enfileirados em ordem crescente. Seu instrumento de trabalho é uma vasilha para colocar o conteúdo pedido dentro do saquinho, uma balança e uma caneta para somar as contas que são desenhadas no papel que fica exposto sobre o balcão, normalmente usado para enrolar o pão. Outra pessoa aproxima-se e encosta os braços sobre a geladeira horizontal que abriga diversas bebidas. O atendente mirim após devolver o troco pra o comprador do milho, pergunta em que pode ajudá-lo. O novo cliente quer feijão, cinco quilos. O menino, franzino como galhos secos esquecidos no tempo, olha para sua direita e pede ajuda ao colega mais velho de trabalho. Cinco quilos era peso suficiente para sucumbir seus jovens braços de menino que freqüentava a sexta série primária pela manhã, para logo em seguida correr para o trabalho precoce na mercearia. Cinco quilos tornavam a balança que ficava na altura de seu nariz maior em dois metros. Cinco quilos o faziam entregar os pontos e lembrar que deveria estar na rua empinando pipa no céu. Ele sempre sonhava com cinco quilos de nuvens brancas em formatos de desenhos diversos sobre sua cama.

Em uma padaria, o garoto de 16 desembarca de sua bicicleta e entra rapidamente para trocar o agasalho que estava usando no jogo de basquete pelo avental branco e bordado do estabelecimento. Mal entrou e o patrão já ordenara que abastecesse a geladeira com refrigerantes. O garoto arrastou um engradado plástico com coca-cola e passou a colocar em movimentos rápidos as garrafas de vidro no interior do móvel, uma a uma, outra sob outra e outra, quando de repente, um estouro. No contato entre a garrafa de cima e debaixo, o corpo de uma delas explodiu em sua mão direita, provocando um longo corte na palma. O patrão ao perceber o que havia acontecido, arrasta a mão do rapaz para debaixo da torneira da pia na intenção de que a corrente da água parasse o sangramento. Como o vermelho do sangue continuava a colorir a pia, a esposa do chefe resolveu intervir também. Abaixou-se junto à máquina de preparar as bebidas quentes, pegou pó de café, tomou para si a mão do garoto como se fosse um vaso de alguma planta qualquer e a encheu daquele pó preto como terra, estancando a sangria. Havia um silêncio de alívio nos olhares dos patrões. Segundos depois, o proprietário do estabelecimento pegou um pano, enrolou na mão do garoto e lhe explicou que o levaria ao pronto socorro, mas não poderia mencionar em nenhum momento que havia se acidentado no trabalho, pois não tinha registro de emprego. Após levar doze pontos, ter o curativo terminado e tomar uma benzetacil na bunda, voltou para o trabalho para terminar de cumprir suas tarefas, como encher a geladeira com a mão esquerda. Passou a tarde calado executando suas funções, como quem deseja que o relógio avance quatro horas em vinte minutos, lembrando que não poderia voltar para casa de bicicleta, e o pior que uma lembrança pode provocar quando não há mais alternativas para mudar o que está definido: havia sido o cestinha do jogo de basquete pela manhã; não o seria mais tão cedo.

No departamento de Logística de uma empresa de transportes rodoviários, com a promoção de um gerente para o cargo de diretor, o coordenador da área, o Geraldo, foi promovido a gerente. Abaixo dele havia duas analistas, uma delas deveria ser promovida por ele para o cargo que havia sido seu. Uma das meninas, a Helena, tinha mais tempo de casa, havia passado por várias outras funções na empresa até chegar a atual, era de confiança e tinha ótimo relacionamento com o chefe. A outra menina, a Cristina, apesar de mais jovem, tinha mais experiência na área, cursos de especialização, e autonomia própria para exercer suas funções, detalhe que não agradava muito ao Geraldo. Ele chamou as duas para conversar, uma de cada vez, explicou a situação e expôs o que imaginava que havia de bom e ruim no perfil de cada. Disse-lhes que levaria alguns dias para pensar no que considerava tomar uma difícil decisão. Ele olhava para elas e enxergava estilos diferentes com resultados semelhantes. Uma era uma lança, uma arma mais rudimentar, mas ofensiva, que sabia que quando necessário era preciso arremessar-se de cabeça para conseguir o queria. A outra era uma espada, uma arma branca pontiaguda e habilidosa em suas funções. Ambas poderiam ser a nova coordenadora da área, mas havia apenas uma vaga. Alguns dias passaram e no happy hour de confraternização do novo diretor e gerente, Helena perguntou ao Geraldo se ele poderia lhe dar uma carona e deixá-la perto de casa. Quando estavam voltando, enquanto seu novo gerente dirigia, a moça candidata passou a fazer um provocador carinho sobre o tecido da calça do homem que naquele instante era seu motorista. Geraldo a olhou com as sobrancelhas de quem tem fome no sorriso, desviou da rota original e entrou em um motel. Quatro semanas depois, Cristina recebia a notícia: sua colega Helena havia sido a escolhida.

Em uma festa rave na Serra da Cantareira, o jovem Edcarlos de apenas 22 está com os amigos curtindo a balada. A música é muito alta, um putz putz de doer o cérebro, e logo ele pensa que preferiria estar numa dessas casas que tocam clássicos do rock como Pearl Jam e Soundgarden. Edcarlos achava que o rock dos anos 90 era um maravilhoso passado próximo. Mas os amigos, sempre os amigos, o haviam convencido de curtir uma balada diferente. Ele se esforçava para tentar ser mais um ali, imitava gestos, prestava atenção nos semblantes como em órbita, tal qual em viagem astral. Ele dançava sozinho o som da multidão, mas logo viu um rosto bonito que também olhou para o dele. Camila também havia saído aquela noite com as amigas, mas para ela já era quase como que rotina. Todo final de semana aquela curtição, as amigas, as bocas diferentes, o bate estaca na cabeça, os comprimidos, o retorno pra casa e a incerteza de superar a rotina de mais uma semana. Como os olhos do jovem rapaz (cujo corpo parecia que não aproveitava a música como as demais pessoas) não desviavam de sua direção, Camila resolveu aproximar-se dele. Rapidamente estavam se beijando e a música provocando intimidade. Dois meses após esse encontro do acaso, Camila estava morando com Edcarlos. Ed (como era conhecido entre as pessoas próximas) era rapaz correto e simples que apreciava bom rock, amava sua moto e trabalhava num laboratório químico de produtos farmacêuticos. Uma noite quando estava chegando em casa vindo do trabalho, três homens brancos usando moletons com capuz o abordaram na esquina de sua rua. Queriam que ele liquidasse uma suposta dívida de comprimidos que Camila havia contraído com eles. Como sabiam que ele era trabalhador, mas também de família de posses, disseram-lhe que a dívida poderia ser quitada apenas com a entrega da moto, e iriam lhe dar alguns dias para se decidir. Ed ao chegar em casa discutiu com Camila sobre o assunto, ela negou as acusações e naquela noite mesmo saiu da casa do namorado sem dizer para onde ia. No dia seguinte, quando saia do trabalho, Ed optou por deixar a moto guardada lá mesmo. Voltou para casa de ônibus e passou os dias seguintes indo trabalhar dessa forma. Na manhã do quarto dia, quando se preparava para ir para o laboratório, os tais homens apareceram em sua frente novamente. Ele tentou explicar que não tinha o dinheiro que queriam, nem moto e não sabia mais onde estaria Camila. De forma corajosa, virou as costas para os estranhos sujeitos e seguiu para o ponto. Nesse momento, havia um ônibus parado com algumas pessoas entrando. Ed aproximou-se e apoiou a mão direita na barra da porta do veículo e deu leve impulso ao corpo para subir as escadas. O motorista da linha 7401 que observava os passageiros das 6h20 entrarem em seu veículo viu um homem branco e loiro com capuz azul sobre a cabeça logo atrás da última pessoa que lhe cumprimentaria naquele horário. Naquele momento, ao firmar os pés sobre o primeiro degrau do veículo e levantar a cabeça para dar bom dia ao motorista, um tiro a queima-roupa foi disparado contra aquele passageiro. Edcarlos morreu com um tiro na nuca ao subir no ônibus que o levaria para o trabalho.

Dois casais estavam a caminho de uma festa de aniversário, saindo da zona oeste da cidade em direção a zona sul. Mariana que dirigia um Fiesta vermelho usava óculos e não tinha certeza da localização do evento. Essa cidade tão maluca, tão escura mesmo iluminada, tão cheia de pontes e saídas parecidas, confundiam sua noção de localização. Ela não gostava muito de dirigir, mas o namorado enxergava na abdicação do volante um certo charme de independência doado a namorada. O casal amigo no banco de trás havia passado a tarde preocupados na escolha certa do presente. Ficaram indecisos entre o livro infanto-juvenil da Madonna e o primeiro Harry Poter. Acabaram optando pela rainha do pop, achavam que era uma forma criativa de introduzir por linhas paralelas a imagem da artista na vida de uma menina de 12 anos. Enquanto contavam do banco de trás para os amigos da frente os critérios na escolha do presente, Mariana tentava se entender com as placas e seus sinais às vezes tão embaralhados. No momento em que ia passar por um cruzamento, enquanto observava a placa no alto e as informações nela contida, com o carro em movimento lento fazendo a curva para a esquerda, o semáforo passou do verde para o amarelo repentino. Seu carro acabou fechando sem querer e quase sem perceber um Monza preto que vinha do outro lado. O motorista do carro escuro buzinou bravíssimo para o Fiesta, destilando inúmeros palavrões. Mariana acelerou na intenção de se distanciar dos gestos obscenos do Monza, quando de repente observou pelo retrovisor o mesmo carro cortando o seu pela direita, entrando na sua frente e de forma proposital, fazendo-a frear subitamente. Os pneus cantaram na desaceleração brusca, e num movimento rápido e de orgulho para o namorado, jogou o veículo para a direita e acelerou firme na intenção de fugir daquela situação, quando de repente ouviu-se um, dois, três, quatro estampidos. Mariana perdeu o controle do carro, subindo na calçada, batendo de frente com um poste e capotando na rua duas vezes. Policiais Civis estavam perseguindo seu carro por ela ter supostamente passado o farol vermelho no cruzamento. Segundo versão dos policiais, fizeram sinais para o Fiesta parar, mas a ordem não foi obedecida, instintivamente suspeitaram de seqüestro relâmpago, então atiraram no veículo. Apenas a namorada do amigo de trás sobreviveu ao ocorrido.

Impossível não imaginar quão desastroso pode ser a iniciativa de tentar com hombridade a própria sobrevivência ou ingenuamente entregar-se as belezas de uma aventura errante; ou mesmo apenas de bobeira, tentar ser parte minúscula da história de alguém.

Tantas são as histórias conhecidas por cada um de nós sobre as fatalidades que presenciamos ou que somos vítimas, que quase não nos chocamos mais. Quando acontece, em poucos minutos o corpo cria suas próprias camadas de defesas e torna-se negligente à acidez dos acontecimentos. A decência tarda os benefícios de quem almeja o atalho rápido e a perspicácia é a salvação dos valores mundanos. O perigo está ao lado e a morte agachada sobre o meio-fio da calçada. Não há mais lugar para inocências inatas e declarações de fé; além de pesares insignificantes como este.

Meus anos de incertezas dessa vida querem uma noite suave de sono ao lado da mulher amada para acordar na manhã seguinte e, despreocupadamente, como se nada tivesse acontecido, abrir a janela e tentar acreditar que nem sempre é assim.

Não adianta, sou dessas pessoas que oscilam entre a santa indiferença e a diabólica compaixão.

Jânio Dias