quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Pretérito Imperfeito

imagem: Agatha Katzensprung


“Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro meu amor, são flores de um longo inverno”

Otto, em 6 Minutos


Eu queria que você soubesse que naquele dia em que te vi do outro lado da rua atravessei as paredes do meu orgulho como quem ignora os tijolos erguidos no esquecimento de nossa história.

Queria que soubesse que antes de ultrapassar a linha imaginária que delimitava o repouso e a segurança do encontro de nossos ombros, tive o cuidado de não olhar para os lados da rua na incerteza insólita de ser atingido, atropelado e morto, levando para sempre comigo a imagem estática de seu sorriso preso à minha retina.

Queria que soubesse que quando nos abraçamos naquela manhã de feira livre na minha rua, o cheiro do seu cabelo impregnou as raízes do meu olfato contaminando a respiração da minha memória. Cada piscadela de meus cílios eram flashes cortantes do tempo em que juntos adormecemos o sono do desejo, amordaçamos os lábios da espera.

Queria que soubesse que quando me perguntaste se eu estava bem, gostaria de ter ido além da mera e burocrática confirmação e exposto o quanto me sentia feliz naquele momento em revê-la após tanto tempo de silêncio guardado nos olhos das intenções que viraram palavras suspensas na esfera do arrependimento.

Queria que soubesse que no instante que lhe disse que estava de folga não esperava que abrisse mão do seu dia, mas que compartilhasse comigo a vontade de querer sem poder fazê-lo. E que torci para que não pedisse para eu te ligar, mas sim que dissesse que você me ligaria.

Queria que soubesse que me ocorreu de forma tola e repentina a vontade de lhe contar que agora tenho em meu quarto um quadro metálico com fotos semelhante ao que você tinha no seu escritório e que nele também há um retrato seu, bela e jovem, cabelo longo e solto espalhado pelo vento da estrada, descobrindo as sardas e o vermelho do sol dos seus ombros. Se eu tivesse mais tempo teria lhe contado também que encontrei e revelei um tubo de filme fotográfico antigo, quase que perdido, com imagens nossas, e que a alegria e ternura ali registradas reforçam o caráter intrínseco da nossa intensa e estreita amizade.

Queria que soubesse que outro dia, do alto do terceiro andar, de frente para a parede de vidros, enquanto corria na esteira da academia para alcançar as batidas da canção que saiam flutuando dos fones do ipod, eu vi você passar calmamente caminhando pela calçada da rua, pisando docemente leve e provocante, quase que irritando o meio fio; por pouco não me jogo em uma das janelas e grito seu nome, por pouco você não olhou para cima e em minha direção. E assim que lhe perdi de vista, fechei os olhos e me imaginei infantilmente atravessando os estilhaços da janela para te alcançar.

Queria que soubesse que ainda lembro da nossa intuição revestida de medo à espera do dia em que nossos abrigos seriam ninhos distantes. Nosso temor era a chegada dessa falha na percepção do desequilíbrio amoroso que não nos orienta quando o encanto se vai.

E queria que soubesse que ainda lembro dos cafés daquele último inverno e das tardes que tanto me afligiram. De todos os nossos esforços para emplacar a esperança e de todos os nossos cantos. Da vez que descemos a serra e enquanto freava para não tocar o veículo da frente, tentava alcançar com uma das mãos o par de presilhas de cabelo com rostos de menina que estava embaixo do banco para te dar de presente, o qual eu chamei de Maria e Elisa.

Queria que soubesse que ainda me visitam em sonhos parcos as paradas dos ônibus que eu pegava para chegar a sua casa e que isso me faz recordar do tanto que me perdi quando tentei ir de trem. Que o portão da tua escola de alguma forma está associada à canção do Smiths que te acompanhava. Que o ciúme severo de tua irmã hoje me faz rir pois me remete a vez que fingimos estudar na cozinha. Que quando é madrugada sem luz, lembro da noite que de tanto que choveu, houve um blecaute em todo o bairro; nossos beijos eram as lamparinas da garagem. Lembro como se não soubesse que você também nunca esqueceu.

Queria que soubesse que quando rasteiramente sua voz como um sussurro que se dúvida a exatidão invadiu meus ouvidos em formato de confissão dizendo que sentia saudades, meus joelhos dobraram-se em forma de V a centímetros de sentimentos do chão. E que quando ligeiramente me convidou para segui-la, minha negativa foi um sim que aguarda a confirmação.

Queria que soubesse que assim que nos despedimos, infinitos três minutos e trinta e três segundos depois, o tempo congelou e retornou - como se nossas vidas coubessem em uma xícara preenchida por uma canção rock-pop de amor - numa sucessão de horas de dias passados que me contenta e desalenta, me derruba e reinventa, por ter vivido o possível e não o imponderável.

Queria que soubesse tanta coisa e tão pouca quanta não seria capaz de contar.

Jânio Dias

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Maria Elisa

imagem: Agatha Katzensprung


“Half of what I say is meaningless
But I say it just to reach you,
Julia”

The Beatles, em Julia

II

Era uma tarde de sábado de fim de inverno. As flores dos pés de ipê enfeitavam o caminho. Pisávamos sobre o meio fio da calçada com sapatos atentos para desviarmos das cores ora amarela, ora roxa e branca que embelezavam o chão. A temperatura caia devagar como nossos passos a caminhar até a estação do metrô.

Meu amigo Lucio e eu íamos recepcionar algumas pessoas do fã clube “Metal Contra as Nuvens” da Legião Urbana em retribuição a festa que havíamos visitado como convidados especiais. Nada podia ser mais pueril do que um intercâmbio de fã clubes da mesma banda. Uma década antes e um encontro assim seria um ato político. Em nossas cabeças política era debater sentimentos em letras de canções.

Contornamos a última curva em direção ao metrô, paro por meio segundo e recolho uma flor caída sobre o asfalto, olho para a entrada da estação e penso se ela também estaria entre os convidados daquela tarde.

Avistamos o grupo pelas estampas inconfundíveis das camisetas. Apesar do vento frio que percorria o interior da estação, os agasalhos ficavam abertos para exposição de um tipo raro de orgulho que carregávamos no peito.

Eles também nos reconhecem e se aproximam. Um grupo de cinco pessoas e apenas uma menina. Repasso com pressa as cortesias masculinas. Ignoro os rostos com qualquer sinal de pêlos. Só tenho olhos para a moça que protegia as mãos nos bolsos do casaco jeans não abotoado. Um sorriso gentil de que eu já te conheço é lançado. Largo os olhos no movimento ligeiro de seu corpo em minha direção, e com apenas uma das mãos, apóia meu rosto contra suas bochechas rosadas.

Era ela, a menina da bandeira, agora como visitante. Rapidamente aprendo seu nome. Tudo fica mais fácil quando se conhece a palavra que se designa uma pessoa.

- Oi!; desculpe a mão gelada, é onde costumo sentir mais frio. Diz retornando os dedos para o bolso do casaco e encolhendo o queixo.

- Não se preocupe, o apartamento é aqui perto. Logo você se sentirá melhor. Apesar de que lá faz muito frio também, talvez você precise de mais uma blusa.

- Talvez eu aceite um par de luvas! Replica mordendo o lábio inferior, inclinando a cabeça levemente sobre o ombro esquerdo.

O vento da estação rente aos meus cílios é um silêncio revelador. Ao contrario das mãos dela, as minhas suam. Se ela precisa de mais agasalho, eu posso doar o meu. Diferente do combinado, sinto vontade de mandar todos embora: seus amigos, meu amigo e todas as outras pessoas que nos esperavam no apartamento. Queria aquela tarde para saber bem mais do que apenas seu nome. Queria bem mais do que dividir nossa experiência de shows. Queria bem mais do que a narrativa de algumas histórias. Queria lhe oferecer minha boca para aquecer seu corpo.

Eu quase que podia vê-la entrando sozinha no quarto e abrindo a segunda gaveta da direita, debaixo para cima do guarda roupas e escolhendo um par de meias. Quase que podia imaginá-la saindo do banheiro só de toalha e andando descalça pela sala para depois me pedir para aquecer seus pés. Quase que podia sentir a fragrância da paixão percorrer os braços dos meus óculos. Quase que ainda posso tocá-la só de pronunciar seu nome.

Maria Elisa. Nunca mais esqueci esse lindo nome.

Maria Elisa. Cabelos negros ondulados em contraste com a pele branca, lisa qual cerâmica a escorregar. Olhos de amêndoas descascadas, lânguidos e repuxados como a provocar um mistério entre o norte e o oriente. Lábios lascivos de exclamações invertidas a duvidar de sentidos e intenções. O grande prazer dos sentidos é não exigir razão.

Lembro agora que naquela tarde eu não tinha luvas para te emprestar, mas levaste minha blusa de lã e uma flor roxa contigo.

Agora sei por que sempre olho com carinho para todo pé de ipê que amanhece desagasalhado para minhas retinas.

Jânio Dias

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Menina da Bandeira

imagem: Agatha Katzensprung


“In the moonlight
you'll dance 'til you fall,
and always be here in my heart”

Travis, em Follow The Light


I

Da primeira vez que a vi, ela estava em uma festa, ou melhor, em uma celebração. Celebração da alegria juvenil revestida de amizade.

Amizade adolescente, docemente ingênua e irresponsável. Ela estava lá, docemente responsável.

- A bandeira do Brasil é sagrada, não faz isso menino. Ele não fez; acho que mesmo sem saber o que fazia.

Lá estava ela, entre a seriedade e o clima feliz da festa. Olhou em minha direção como quem percebe algo diferente na sala de casa. Para minha própria surpresa, joguei-lhe um afoito sorriso. Tendo certeza de que era com ela, desviou o rosto vermelho de inverno, para em frações de segundos que se sente na aceleração do coração, devolver-me um semblante protegido e altivo.

Algum amigo seu acena e nossos olhos se desviam.

O volume do som aumenta como convite para que as pessoas parem de conversar.

Sentindo-me alheio entre tantas pessoas desconhecidas, limitei-me a ficar por perto, algo como um discreto estranho a observá-la. Contente, ela dançava e cantava celebrando. Aproximei-me um pouco mais, e lhe joguei outro sorriso, mas ela continuou dançando e cantando.

Não me movi e fiquei quase uma canção inteira respirando seus movimentos. Como se eu fosse puxado por uma das mãos, passei a cantar e dançar também. Os braços balançavam desajeitados, os pés quase que se desprendiam do chão, a letra da musica guiada por tantas vozes era quase uma oração, e tantas outras bocas em volta complementavam um suposto balé de expressões faciais.

O volume diminui, o vinil parece estar sendo trocado.

Um amigo meu acena e nossos olhos se encontram.

Alguém nos apresenta, não presto atenção ao seu nome. Falamos rápido, atropelando uma seqüência óbvia de apresentações. Substituímos o “onde você mora” por brevidades sobre a última música, a música preferida, a próxima canção. Nossos lábios brilham os batimentos de nossos ouvidos.

Um silêncio repentino de olhares se faz e comento sobre a bandeira.

- Você viu, o menino parecia querer cheirar as estrelas do cruzeiro do sul. Fala com as sobrancelhas irritadas.

Mais rápida do que eu poderia raciocinar, me faz um convite: - “Entra para o nosso fã clube”. Fico desconcertado. Lisonjeado. Não entrarei; pertenço a um outro grupo de Amigos. A imagem congela.

Um grupo de pessoas a tira de perto, outras falam comigo. Tudo bem, tenho que aceitar, estava ali para conhecer o pessoal daquele outro fã clube da Legião. O que se deseja não demora a acontecer, havia lido em algum livro do suposto talento da literatura contemporânea nacional. Nossos olhos se encontrarão em outro momento.

A noite passa veloz. A aurora do galo roseia o céu. É hora de ir embora.

Momento de despedidas. Apertos de mãos, abraços, sorrisos suspensos sob uma lua que já se despediu.

- Até outro dia. Ouço ao longe. Retorno o corpo, giro rápido o olhar. Lá está ela, imóvel. Congelo outra vez a imagem.

– Venha mais vezes, volte quando quiser.

Mal a vejo dos degraus de onde avisto uma mão a desenhar um tchau em retirada. Retribuo com um aceno seco, um sorriso pálido e lento, sem certeza dos passos que preciso dar para ultrapassar a linha do portão.

A festa acabou. A rua é uma língua longa e fria que clareia devagar, mas não junta pedras espalhadas.

Vou embora, sem saber seu nome.

Jânio Dias

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Veja Essa Canção

imagem: arquivo pessoal


“Se um dia fores embora
Te amarei bem mais do que esta hora”

Legião Urbana, em Música Ambiente


Se acaso acontecer de não mais vê-la, saiba que ainda estarás comigo.

Mesmo que eu passe caminhando em frente a sua casa, olhe para sua janela, torça para que seus olhos percebam o balanço de meu cabelo dançando com o vento, saiba que minha vontade de entrar ficou suspensa no número do seu endereço. Minha vontade de entrar é a segurança de que você é feliz quando sai e quando volta para casa.

Mesmo que eu não mais te leve à nova mostra de cinema, à próxima bienal do livro ou à exposição dos dinossauros, saiba que a descoberta do novo é tão importante quanto o aroma das uvas envelhecidas. O equilíbrio entre o sabor do passado já conhecido e a observação de perto do que vem depois é a inovação do presente. Mesmo que não seja eu a sua companhia, as digitais de seus dedos ainda estarão dentro de meus bolsos.

Mesmo que eu não mais te escreva, mesmo que você não mais me leia em lugar algum, saiba que os sons das suas vogais sempre influenciarão a entonação da minha leitura em todo poema.

Mesmo que eu não mais revise o carro e encha o tanque para descermos a serra com a leviana intenção de molharmos os pés e marcarmos nossos passos na areia para em seguida voltarmos, saiba que toda onda que se aproxima de minha sandália é um dilúvio que não altera ou apaga nossas pegadas.

Mesmo que eu não mais lhe envie flores em seu aniversário e não mais me desculpe pela confusão que sempre faço com datas, saiba que todo lírio e todo amor-perfeito sempre exalam a sua presença; e que todo pequeno cartão em branco é um complexo desafio de ser preenchido sem que você comece a primeira frase.

Mesmo que você não mais me avise de suas viagens ou comente após a volta das belezas que descobriu, saiba que quando viajo cada par de meias é escolhido imaginando a sua aprovação. Os colarinhos de meus casacos só acomodam o nó do cachecol que você me ensinou a fazer.

Mesmo que eu não mais use em meus dedos o anel com seu nome impresso no lado de dentro, saiba que este que uso hoje e vive passeando entre o polegar, o indicador e o dedo do meio de ambas as mãos, tem o desenho de uma lua e uma estrela (eu sou a lua); e que antes deles já existia o meu amor, e que depois permaneceu.

Mesmo que eu não mais lhe pergunte sobre seus pais, saiba que carrego diariamente comigo um ramo de estima e afeto.

Mesmo que eu não mais contorne as cores dos seus dias, saiba que cada lápis de cor daquele estojo que me destes é uma alma viva sobre o relevo de minha pele.

Mesmo que nossas vozes não mais conflitem os gritos dos apaixonados, a lembrança de sua língua ainda silenciará os relâmpagos externos.

Mesmo que nossa fúria não mais alimente a intensidade de nossos lábios ao se chocarem, a insônia de nossas noites adormecerá o horizonte do meu corpo.

E se amanhã eu não mais tiver seu beijo antes de me encontrar com o sono, se eu não mais sentir meus joelhos dobrados em suas costas, se eu não mais entrelaçar meus braços por entre seus seios, se eu não mais me perder entre os fios dos seus cabelos, se eu não mais tiver que reclamar que meus pés estão para fora da coberta, ou que os travesseiros estão trocados, saiba que ainda assim você permanecerá comigo.

E se acaso acontecer de não mais senti-la em mim, saiba que ainda assim, eu te amarei.

Jânio Dias

terça-feira, 26 de maio de 2009

Tios e Tias

imagem: Gabriel, by Reinaldo Rabello


“Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Ié Ié!”

Pato Fu, em Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!


Meu pai dizia que ser tio é fazer pose para retrato.

Ainda desconheço a experiência da paternidade. Não que eu não semeie e não deseje que germine, ao contrário. Sempre penso no assunto com a alegria de quem vive a expectativa de que se sabe que será presenteado; para só depois então lembrar de todo o universo de cuidados. Uma sensação de prêmio no horizonte de céu azul e cristalino, para momentos depois visualizar a pressão da responsabilidade carregada de nuvens indecifráveis.

Imaginar a possibilidade é sempre leve e agradável como a brisa de uma sombra em tarde de verão. Pensar na realidade às vezes pode ser denso como nevoeiro encobrindo a cidade nas manhãs de inverno.

O mais próximo que já estive da verdade, é que as incertezas desaparecem no primeiro contato com o vidro do berçário. Falo com a sabedoria da experiência de tio de fato e tio eleito.

Minha mãe conta que quando eu tinha nove anos, ainda filho único, chorei na frente de alguns parentes reivindicando um irmãozinho. Sensibilizei a todos e meus pais foram intimados a tomarem providências. Minha apreensão era a possibilidade de nunca ter um sobrinho; não ter ninguém de direito para me chamar de tio. E se algo de ruim acontecesse comigo, como ficariam? Um ano depois vinha ao mundo minha irmã, para no ano seguinte meu irmão. Eu ameacei meus pais com a crueldade da pureza.

Há três anos nasceu minha sobrinha Eduarda, um ruído rosa, toda cura para todo mal. Minha relação com ela é sempre o de tentar ser o que ela ainda não descobriu. Tentar antecipar o que seus pequenos olhos ainda não tocaram, o que suas mãozinhas ainda não morderam. Se o escorregador parece alto, vou até o meio do caminho para encurtar o medo, espero por seus pés em meus ombros para descermos juntos a continuação do brinquedo. Se o balanço parece um pedaço de tábua suspensa, ofereço meu colo e o apoio do meu braço sobre sua cintura enquanto deslizamos para trás e para frente. Se o mar de bolinhas de plástico parece engoli-la, eu me afogo primeiro para que ela perceba que também dependo dela para emergir. Minha sobrinha é o endereço do afago.

Depois dela virei tio de consideração do João Pedro, filho encantador com cara de desenho animado da querida amiga Eneida. Ele deve ter me visto umas duas vezes apenas, no dia seguinte ao seu nascimento e talvez um ano depois. Minha amiga sempre lembra de que ele ainda tem o presentinho dado por mim, um travesseirinho que também vira um cachorrinho, e que por muito tempo foi seu preferido para fechar os olhos e adormecer o sono dos inocentes. Tê-lo visitado menos de 48 horas após ter nascido foi definitivo para senti-lo como sobrinho. Um irmão também se faz de estima.

Há nove meses atrás fiquei sabendo que seria outra vez tio; outra vez seguindo os trilhos vicejantes do afeto e da amizade. Meu querido amigo de infância Reinaldo e sua esposa Emanuela estavam grávidos.

A notícia dada num almoço arquitetado por ambos na cozinha de casa foi como a explosão de um gol de desempate aos 44 minutos do segundo tempo. Abri imediatamente uma garrafa de Tequila estrategicamente guardada para algum evento extraordinário e festejamos a alegria da conquista. Tamanha vibração tinha muitos motivos para existir, desde o desejo recíproco do casal ao histórico de tentativas; desde o sonho do matrimônio à realização da vida a dois. Havia ali a semente do fruto da renovação do amor.

Nesse último fim de semana, de forma programada, o pequeno Gabriel nos deu a graça de seus lentos movimentos ainda sonolentos. Enquanto o papai Reinaldo superava no centro obstétrico seus bloqueios emocionais relativos a seringas, instrumentos cirúrgicos e sangue, toda uma torcida de familiares e amigos se organizava no café da maternidade ao redor de uma mesa em frente a uma moderna televisão gigante a espera da primeira imagem de um neném com sobrenome Rabello. Mais de uma hora depois, a audição da vinheta avisava da exibição de um novo bebê na telona, ilustrada por uma animação com uma simpática cegonha munida de GPS. Era o menino Gabriel todo exposto, sem roupa, mas sem chorar, forte, sadio e já querido.

Excluindo as avós, todas as outras pessoas vibravam o jubilo de se sentirem tios e tias. E todos queriam seu registro exclusivo do tempo.

Meu pai tinha razão, ser tio é sair na foto da festa.

Ser tio revela uma alegria imensa.

Jânio Dias

domingo, 17 de maio de 2009

Doce Vida

imagem: Still Life with Sky Element, 1995, Alan Kingsbury


“A fome tem uma saúde de ferro
Forte, forte como quem come”

Nação Zumbi, em Fome de Tudo


Eu tenho fome de tudo que se move. Eu tenho fome de tudo que derrama. Tenho fome de tudo que é calor; fome de tudo que molha; fome de tudo que ainda posso tocar com o repouso dos cílios. Tenho fome de tudo que cativa o afeto da retina.

Eu tenho fome do tempo em que minha mãe me levava para a escola. Tenho fome do tempo em que meu pai me buscava na escola. Tenho fome do bordado que desenhava meu nome no boné. Tenho fome de vender geladinho frente ao portão de casa. Tenho fome de juntar moedinhas para comprar doce na venda do seu Osmar. Tenho fome da coleguinha que me ajudava a amarrar o cadarço do tênis no prézinho. Tenho fome da professora Edna que me ensinou a cantar o alfabeto. Tenho fome de escorregar no pátio de mãos dadas. Tenho fome dos meninos mais velhos que conversavam sobre Star Wars. Tenho fome do gramado do outro lado da janela da sala de aula. Tenho fome da merenda da dona Lourdes. Tenho fome das gincanas das festas juninas. Tenho fome das danças com as meninas mais altas. Tenho fome dos pedidos de prendas nas portas das casas. Tenho fome do balanço improvisado entre o pé de abacate e o pé de manga. Tenho fome dos álbuns de figurinhas incompletos. Tenho fome de bater e trocar figurinhas. Tenho fome do cheiro da terra vermelha da estrada. Tenho fome de brincar de fazer lama atrás do quintal. Tenho fome das unhas compridas que ajudavam no momento de jogar bolinha de gude. Tenho fome da minha coleção de bolinhas. Tenho fome de fazer cerol escondido da minha mãe. Tenho fome da linha corrente 10. Tenho fome do vento que me fazia senhor do céu. Tenho fome de disputar a posição de melhor goleiro com meu amigo Carlinhos. Tenho fome dos chutes precisos do meu amigo Jefferson. Tenho fome das bolas de plásticos que furavam nos espinhos do limoeiro. Tenho fome de falar sobre a seleção brasileira com minha vizinha Renata. Tenho fome dos filmes de Bruce Lee. Tenho fome do meu cachorrinho Lulu. Tenho fome da comida da dona Geralda. Tenho fome da esperteza da Simone que cuidava de mim. Tenho fome das roupas curtas da Jacqueline que também cuidou de mim. Tenho fome da Solange que visitava a minha mãe. Tenho fome das visitas em noites de quarta-feira do tio Antonio. Tenho fome dos chocolates que meu pai comprava no trem. Tenho fome da pressa de vê-lo chegar em casa com alguma surpresa. Tenho fome da falta de sua presença. Tenho fome da bicicleta que nunca consegui impor o equilíbrio. Tenho fome dos quadrinhos que me eram proibidos. Tenho fome dos gibis que os amigos liam. Tenho fome das rádios AM que minha mãe ouvia e tocavam rock nacional. Tenho fome dos programas de TV que repetiam tanta novidade. Tenho fome do gosto de descobrir o estranho para meus pais. Tenho fome de estudar na mesma rua de casa. Tenho fome da barraquinha de doces do seu Ezequiel. Tenho fome da coleção de livros Vaga-Lume. Tenho fome da postura sensual da professora Vera Lúcia. Tenho fome das incitações políticas da professora Jurema. Tenho fome das letras das canções que despertava furor juvenil. Tenho fome do eu romântico das canções em primeira pessoa. Tenho fome das aulas de educação física do professor João Seleção. Tenho fome das competições de futebol de salão. Tenho fome das tardes rumo à cachoeira. Tenho fome do andar despreocupado pela rodovia com a camiseta enrolada na cabeça. Tenho fome dos bailinhos da oitava série. Tenho fome da troca do futebol pelo basquete. Tenho fome das manhãs de domingo indo de casa em casa para juntar o pessoal para jogar basquete. Tenho fome dos cafés da tarde na casa da Dona Sônia. Tenho fome da falta de fotos com os meus irmãos pequenos. Tenho fome das conversas sobre paixão com o amigo Alves. Tenho fome das discussões sobre o que é a vida com o amigo Sidnei. Tenho fome dos encontros e debates musicais com o pessoal do fã-clube da Legião. Tenho fome da astúcia concreta do Márcio. Tenho fome da maturidade precisa da Luzia. Tenho fome do encantamento radiante da Alcina. Tenho fome da sabedoria critica da Claudinha. Tenho fome dos shows que não vimos juntos. Tenho fome das bandas de Seattle. Tenho fome do Nirvana em São Paulo. Tenho fome de Caio Fernando Abreu. Tenho fome dos Amigos eleitos. Tenho fome das nossas reuniões. Tenho fome das nossas leituras. Tenho fome das nossas preocupações. Tenho fome de nossas ansiedades. Tenho fome de nossas conquistas. Tenho fome de nossas ilusões. Tenho fome das cartas enviadas. Tenho fome das respostas recebidas. Tenho fome do pulo sobre o muro do trem para atravessar a cidade. Tenho fome das flores roubadas para presentear no aniversário. Tenho fome de não ter tentado outra faculdade. Tenho fome de não ter experimentado um caminho diferente. Tenho fome do primeiro sólido amor. Tenho fome dos planos de voo. Tenho fome das asas que alcançaram o céu. Tenho fome da beleza que aconteceu.

Tenho fome de tudo que queima; fome de tudo que vira bolha; fome de tudo que derrete. Tenho fome de cicatriz.

Tenho fome de tudo que se espalha em minha memória. Fome dos vestígios que modulam o despertar dos dias. Tenho fome de tudo que se prendeu às lâminas escorregadias do coração.

Minha fome não é urgente, não é ávida; às vezes nem necessária. Minha fome é apenas sentida com os lábios da mordaça.

Minha fome é um pedaço de inveja da pureza que se disfarçou de gente adulta. Minha fome é um meio arrependimento daquilo que se hesitou viver com vigor. Minha fome é orgulho travesso no prato do ontem.

Fome é uma lembrança repentina que nos visita. Fome é uma saudade que ainda não passou.

Jânio Dias

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Terceira Criança

imagem: Yellow Field, Kedleston, Derby by Andrew Macara


“Eu posso sentir o que a paixão faz em segundos
Eu posso sentir o que o amor fez depois de anos”

Os Paralamas Do Sucesso, em Scream Poetry


Ela insistiu para que eu fosse atrás de uma antiga
lenda que falava sobre duas crianças, um menino e uma menina. A primeira chamava-se Amor e a segunda Loucura. Eram muito amigas, cresciam juntas, quase que inseparáveis. Amor era gentil, terno, compreensivo; Loucura era passional, impulsiva e emotiva. Não se sabe por que, mas um dia ambos brigaram violentamente, a ponto de Loucura arrancar os olhos de Amor.

Ela não quis me responder por que eu devia procurar essa narrativa. Além de muito bonita, será que ela queria me mostrar algo mais? Fui deitar pensando que talvez quisesse que eu me identificasse com uma das crianças; ou será que queria que eu lhe dissesse qual das pequenas criaturas era ela?

Antes de o sono adormecer as pálpebras, suspeitei que um terceiro elemento pudesse estar entre o amor e a loucura.

Tudo começa com um encantamento terno de querer bem, de muita gentileza e simpatia, para depois passar a um estado de alta intensidade, de calor ardente, de grande entusiasmo, que tende às vezes a se transformar em afeto dominador de quase obsessão. Acho que chamo isso de sentimento de estar apaixonado.

Um antigo professor dizia que paixão é amor e loucura destituída dos olhos frios da razão.

Já fiz muitas coisas ausentes de razão quando apaixonado. Já acordei muito cedo para esperar a colega da escola embaixo de uma árvore em frente a sua casa numa manhã de chuva. Já confidenciei a um amigo que gostava da menina que ele queria namorar. Já dormi várias vezes na rodoviária depois de ter perdido o último ônibus quando voltava da casa de uma namorada que morava em outra cidade. Já rabisquei poemas cujos traços não tiveram cópias guardadas comigo porque eram exclusivos das meninas que os receberam. Já quase capotei o carro em uma curva porque estava atrasado para um encontro. Será que eu era Amor ou Loucura nesses acontecimentos?

Talvez apenas um doce e extremo estado de arrebatamento.

Quando me apaixono os olhos se abrem num clarão que suspende o corpo inflado de meu ego. Bóio em suspenso repouso no aguardo do despertar do próximo contato.

Acordo entusiasmado com o sol que ainda não nasceu. Preparo meu próprio café e ofereço parte às flores do quintal da casa. Só o jardim do próprio lar entende uma madrugada de despertar apaixonado.

Canto com o bem-te-vi pousado próximo ao pé de amora uma canção de bem querer. Sou um pássaro cuja garganta conversa com as folhas que se espalham pelo chão. Sou amigo do vento que dispersa as sementes do trigo.

Cuido do cabelo como se uma foto 3x4 sempre rejuvenescesse. Proíbo o crescimento dos pelos do rosto para que a pele deslize suave como roupa de veludo. Aliso a camisa como que engomasse o próprio corpo com o ferro de passar. Compro um perfume novo para beber como licor que marca a refeição. Eu me visto para desabotoar o vestido do desejo.

Quando apaixonado eu não visualizo a profundidade do rio, não reparo a intensidade das águas. Não enxergo o presente próximo das margens opostas, ignoro o passado de seu leito, não distancio o futuro da nascente.

Eu não reparto as horas, não devolvo os minutos que me antecederam. Enfureço-me se não fui avisado, espumo pelas orelhas se não fui compreendido. Eu sou o joio no beijo se não sinto reciprocidade na verdade. Quando apaixonado eu queimo o tempo do plantio.

A paixão não explica o ser. Ela estabiliza a imperfeição de sermos o que nunca temos.

Não consegui saber se o que ela queria era questionar qual das duas crianças eu sou. Mesmo assim deixo aqui minha resposta: sou a terceira. Eu sou Paixão.

Ainda intrigado insisti para saber por que achava que eu tinha de ter contato com essa estória. Disse-me apenas que certas manhãs não podem ser apagadas do coração.

Jânio Dias