quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Pretérito Imperfeito

imagem: Agatha Katzensprung


“Nasceram flores num canto de um quarto escuro
Mas eu te juro meu amor, são flores de um longo inverno”

Otto, em 6 Minutos


Eu queria que você soubesse que naquele dia em que te vi do outro lado da rua atravessei as paredes do meu orgulho como quem ignora os tijolos erguidos no esquecimento de nossa história.

Queria que soubesse que antes de ultrapassar a linha imaginária que delimitava o repouso e a segurança do encontro de nossos ombros, tive o cuidado de não olhar para os lados da rua na incerteza insólita de ser atingido, atropelado e morto, levando para sempre comigo a imagem estática de seu sorriso preso à minha retina.

Queria que soubesse que quando nos abraçamos naquela manhã de feira livre na minha rua, o cheiro do seu cabelo impregnou as raízes do meu olfato contaminando a respiração da minha memória. Cada piscadela de meus cílios eram flashes cortantes do tempo em que juntos adormecemos o sono do desejo, amordaçamos os lábios da espera.

Queria que soubesse que quando me perguntaste se eu estava bem, gostaria de ter ido além da mera e burocrática confirmação e exposto o quanto me sentia feliz naquele momento em revê-la após tanto tempo de silêncio guardado nos olhos das intenções que viraram palavras suspensas na esfera do arrependimento.

Queria que soubesse que no instante que lhe disse que estava de folga não esperava que abrisse mão do seu dia, mas que compartilhasse comigo a vontade de querer sem poder fazê-lo. E que torci para que não pedisse para eu te ligar, mas sim que dissesse que você me ligaria.

Queria que soubesse que me ocorreu de forma tola e repentina a vontade de lhe contar que agora tenho em meu quarto um quadro metálico com fotos semelhante ao que você tinha no seu escritório e que nele também há um retrato seu, bela e jovem, cabelo longo e solto espalhado pelo vento da estrada, descobrindo as sardas e o vermelho do sol dos seus ombros. Se eu tivesse mais tempo teria lhe contado também que encontrei e revelei um tubo de filme fotográfico antigo, quase que perdido, com imagens nossas, e que a alegria e ternura ali registradas reforçam o caráter intrínseco da nossa intensa e estreita amizade.

Queria que soubesse que outro dia, do alto do terceiro andar, de frente para a parede de vidros, enquanto corria na esteira da academia para alcançar as batidas da canção que saiam flutuando dos fones do ipod, eu vi você passar calmamente caminhando pela calçada da rua, pisando docemente leve e provocante, quase que irritando o meio fio; por pouco não me jogo em uma das janelas e grito seu nome, por pouco você não olhou para cima e em minha direção. E assim que lhe perdi de vista, fechei os olhos e me imaginei infantilmente atravessando os estilhaços da janela para te alcançar.

Queria que soubesse que ainda lembro da nossa intuição revestida de medo à espera do dia em que nossos abrigos seriam ninhos distantes. Nosso temor era a chegada dessa falha na percepção do desequilíbrio amoroso que não nos orienta quando o encanto se vai.

E queria que soubesse que ainda lembro dos cafés daquele último inverno e das tardes que tanto me afligiram. De todos os nossos esforços para emplacar a esperança e de todos os nossos cantos. Da vez que descemos a serra e enquanto freava para não tocar o veículo da frente, tentava alcançar com uma das mãos o par de presilhas de cabelo com rostos de menina que estava embaixo do banco para te dar de presente, o qual eu chamei de Maria e Elisa.

Queria que soubesse que ainda me visitam em sonhos parcos as paradas dos ônibus que eu pegava para chegar a sua casa e que isso me faz recordar do tanto que me perdi quando tentei ir de trem. Que o portão da tua escola de alguma forma está associada à canção do Smiths que te acompanhava. Que o ciúme severo de tua irmã hoje me faz rir pois me remete a vez que fingimos estudar na cozinha. Que quando é madrugada sem luz, lembro da noite que de tanto que choveu, houve um blecaute em todo o bairro; nossos beijos eram as lamparinas da garagem. Lembro como se não soubesse que você também nunca esqueceu.

Queria que soubesse que quando rasteiramente sua voz como um sussurro que se dúvida a exatidão invadiu meus ouvidos em formato de confissão dizendo que sentia saudades, meus joelhos dobraram-se em forma de V a centímetros de sentimentos do chão. E que quando ligeiramente me convidou para segui-la, minha negativa foi um sim que aguarda a confirmação.

Queria que soubesse que assim que nos despedimos, infinitos três minutos e trinta e três segundos depois, o tempo congelou e retornou - como se nossas vidas coubessem em uma xícara preenchida por uma canção rock-pop de amor - numa sucessão de horas de dias passados que me contenta e desalenta, me derruba e reinventa, por ter vivido o possível e não o imponderável.

Queria que soubesse tanta coisa e tão pouca quanta não seria capaz de contar.

Jânio Dias

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Maria Elisa

imagem: Agatha Katzensprung


“Half of what I say is meaningless
But I say it just to reach you,
Julia”

The Beatles, em Julia

II

Era uma tarde de sábado de fim de inverno. As flores dos pés de ipê enfeitavam o caminho. Pisávamos sobre o meio fio da calçada com sapatos atentos para desviarmos das cores ora amarela, ora roxa e branca que embelezavam o chão. A temperatura caia devagar como nossos passos a caminhar até a estação do metrô.

Meu amigo Lucio e eu íamos recepcionar algumas pessoas do fã clube “Metal Contra as Nuvens” da Legião Urbana em retribuição a festa que havíamos visitado como convidados especiais. Nada podia ser mais pueril do que um intercâmbio de fã clubes da mesma banda. Uma década antes e um encontro assim seria um ato político. Em nossas cabeças política era debater sentimentos em letras de canções.

Contornamos a última curva em direção ao metrô, paro por meio segundo e recolho uma flor caída sobre o asfalto, olho para a entrada da estação e penso se ela também estaria entre os convidados daquela tarde.

Avistamos o grupo pelas estampas inconfundíveis das camisetas. Apesar do vento frio que percorria o interior da estação, os agasalhos ficavam abertos para exposição de um tipo raro de orgulho que carregávamos no peito.

Eles também nos reconhecem e se aproximam. Um grupo de cinco pessoas e apenas uma menina. Repasso com pressa as cortesias masculinas. Ignoro os rostos com qualquer sinal de pêlos. Só tenho olhos para a moça que protegia as mãos nos bolsos do casaco jeans não abotoado. Um sorriso gentil de que eu já te conheço é lançado. Largo os olhos no movimento ligeiro de seu corpo em minha direção, e com apenas uma das mãos, apóia meu rosto contra suas bochechas rosadas.

Era ela, a menina da bandeira, agora como visitante. Rapidamente aprendo seu nome. Tudo fica mais fácil quando se conhece a palavra que se designa uma pessoa.

- Oi!; desculpe a mão gelada, é onde costumo sentir mais frio. Diz retornando os dedos para o bolso do casaco e encolhendo o queixo.

- Não se preocupe, o apartamento é aqui perto. Logo você se sentirá melhor. Apesar de que lá faz muito frio também, talvez você precise de mais uma blusa.

- Talvez eu aceite um par de luvas! Replica mordendo o lábio inferior, inclinando a cabeça levemente sobre o ombro esquerdo.

O vento da estação rente aos meus cílios é um silêncio revelador. Ao contrario das mãos dela, as minhas suam. Se ela precisa de mais agasalho, eu posso doar o meu. Diferente do combinado, sinto vontade de mandar todos embora: seus amigos, meu amigo e todas as outras pessoas que nos esperavam no apartamento. Queria aquela tarde para saber bem mais do que apenas seu nome. Queria bem mais do que dividir nossa experiência de shows. Queria bem mais do que a narrativa de algumas histórias. Queria lhe oferecer minha boca para aquecer seu corpo.

Eu quase que podia vê-la entrando sozinha no quarto e abrindo a segunda gaveta da direita, debaixo para cima do guarda roupas e escolhendo um par de meias. Quase que podia imaginá-la saindo do banheiro só de toalha e andando descalça pela sala para depois me pedir para aquecer seus pés. Quase que podia sentir a fragrância da paixão percorrer os braços dos meus óculos. Quase que ainda posso tocá-la só de pronunciar seu nome.

Maria Elisa. Nunca mais esqueci esse lindo nome.

Maria Elisa. Cabelos negros ondulados em contraste com a pele branca, lisa qual cerâmica a escorregar. Olhos de amêndoas descascadas, lânguidos e repuxados como a provocar um mistério entre o norte e o oriente. Lábios lascivos de exclamações invertidas a duvidar de sentidos e intenções. O grande prazer dos sentidos é não exigir razão.

Lembro agora que naquela tarde eu não tinha luvas para te emprestar, mas levaste minha blusa de lã e uma flor roxa contigo.

Agora sei por que sempre olho com carinho para todo pé de ipê que amanhece desagasalhado para minhas retinas.

Jânio Dias

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Menina da Bandeira

imagem: Agatha Katzensprung


“In the moonlight
you'll dance 'til you fall,
and always be here in my heart”

Travis, em Follow The Light


I

Da primeira vez que a vi, ela estava em uma festa, ou melhor, em uma celebração. Celebração da alegria juvenil revestida de amizade.

Amizade adolescente, docemente ingênua e irresponsável. Ela estava lá, docemente responsável.

- A bandeira do Brasil é sagrada, não faz isso menino. Ele não fez; acho que mesmo sem saber o que fazia.

Lá estava ela, entre a seriedade e o clima feliz da festa. Olhou em minha direção como quem percebe algo diferente na sala de casa. Para minha própria surpresa, joguei-lhe um afoito sorriso. Tendo certeza de que era com ela, desviou o rosto vermelho de inverno, para em frações de segundos que se sente na aceleração do coração, devolver-me um semblante protegido e altivo.

Algum amigo seu acena e nossos olhos se desviam.

O volume do som aumenta como convite para que as pessoas parem de conversar.

Sentindo-me alheio entre tantas pessoas desconhecidas, limitei-me a ficar por perto, algo como um discreto estranho a observá-la. Contente, ela dançava e cantava celebrando. Aproximei-me um pouco mais, e lhe joguei outro sorriso, mas ela continuou dançando e cantando.

Não me movi e fiquei quase uma canção inteira respirando seus movimentos. Como se eu fosse puxado por uma das mãos, passei a cantar e dançar também. Os braços balançavam desajeitados, os pés quase que se desprendiam do chão, a letra da musica guiada por tantas vozes era quase uma oração, e tantas outras bocas em volta complementavam um suposto balé de expressões faciais.

O volume diminui, o vinil parece estar sendo trocado.

Um amigo meu acena e nossos olhos se encontram.

Alguém nos apresenta, não presto atenção ao seu nome. Falamos rápido, atropelando uma seqüência óbvia de apresentações. Substituímos o “onde você mora” por brevidades sobre a última música, a música preferida, a próxima canção. Nossos lábios brilham os batimentos de nossos ouvidos.

Um silêncio repentino de olhares se faz e comento sobre a bandeira.

- Você viu, o menino parecia querer cheirar as estrelas do cruzeiro do sul. Fala com as sobrancelhas irritadas.

Mais rápida do que eu poderia raciocinar, me faz um convite: - “Entra para o nosso fã clube”. Fico desconcertado. Lisonjeado. Não entrarei; pertenço a um outro grupo de Amigos. A imagem congela.

Um grupo de pessoas a tira de perto, outras falam comigo. Tudo bem, tenho que aceitar, estava ali para conhecer o pessoal daquele outro fã clube da Legião. O que se deseja não demora a acontecer, havia lido em algum livro do suposto talento da literatura contemporânea nacional. Nossos olhos se encontrarão em outro momento.

A noite passa veloz. A aurora do galo roseia o céu. É hora de ir embora.

Momento de despedidas. Apertos de mãos, abraços, sorrisos suspensos sob uma lua que já se despediu.

- Até outro dia. Ouço ao longe. Retorno o corpo, giro rápido o olhar. Lá está ela, imóvel. Congelo outra vez a imagem.

– Venha mais vezes, volte quando quiser.

Mal a vejo dos degraus de onde avisto uma mão a desenhar um tchau em retirada. Retribuo com um aceno seco, um sorriso pálido e lento, sem certeza dos passos que preciso dar para ultrapassar a linha do portão.

A festa acabou. A rua é uma língua longa e fria que clareia devagar, mas não junta pedras espalhadas.

Vou embora, sem saber seu nome.

Jânio Dias

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Veja Essa Canção

imagem: arquivo pessoal


“Se um dia fores embora
Te amarei bem mais do que esta hora”

Legião Urbana, em Música Ambiente


Se acaso acontecer de não mais vê-la, saiba que ainda estarás comigo.

Mesmo que eu passe caminhando em frente a sua casa, olhe para sua janela, torça para que seus olhos percebam o balanço de meu cabelo dançando com o vento, saiba que minha vontade de entrar ficou suspensa no número do seu endereço. Minha vontade de entrar é a segurança de que você é feliz quando sai e quando volta para casa.

Mesmo que eu não mais te leve à nova mostra de cinema, à próxima bienal do livro ou à exposição dos dinossauros, saiba que a descoberta do novo é tão importante quanto o aroma das uvas envelhecidas. O equilíbrio entre o sabor do passado já conhecido e a observação de perto do que vem depois é a inovação do presente. Mesmo que não seja eu a sua companhia, as digitais de seus dedos ainda estarão dentro de meus bolsos.

Mesmo que eu não mais te escreva, mesmo que você não mais me leia em lugar algum, saiba que os sons das suas vogais sempre influenciarão a entonação da minha leitura em todo poema.

Mesmo que eu não mais revise o carro e encha o tanque para descermos a serra com a leviana intenção de molharmos os pés e marcarmos nossos passos na areia para em seguida voltarmos, saiba que toda onda que se aproxima de minha sandália é um dilúvio que não altera ou apaga nossas pegadas.

Mesmo que eu não mais lhe envie flores em seu aniversário e não mais me desculpe pela confusão que sempre faço com datas, saiba que todo lírio e todo amor-perfeito sempre exalam a sua presença; e que todo pequeno cartão em branco é um complexo desafio de ser preenchido sem que você comece a primeira frase.

Mesmo que você não mais me avise de suas viagens ou comente após a volta das belezas que descobriu, saiba que quando viajo cada par de meias é escolhido imaginando a sua aprovação. Os colarinhos de meus casacos só acomodam o nó do cachecol que você me ensinou a fazer.

Mesmo que eu não mais use em meus dedos o anel com seu nome impresso no lado de dentro, saiba que este que uso hoje e vive passeando entre o polegar, o indicador e o dedo do meio de ambas as mãos, tem o desenho de uma lua e uma estrela (eu sou a lua); e que antes deles já existia o meu amor, e que depois permaneceu.

Mesmo que eu não mais lhe pergunte sobre seus pais, saiba que carrego diariamente comigo um ramo de estima e afeto.

Mesmo que eu não mais contorne as cores dos seus dias, saiba que cada lápis de cor daquele estojo que me destes é uma alma viva sobre o relevo de minha pele.

Mesmo que nossas vozes não mais conflitem os gritos dos apaixonados, a lembrança de sua língua ainda silenciará os relâmpagos externos.

Mesmo que nossa fúria não mais alimente a intensidade de nossos lábios ao se chocarem, a insônia de nossas noites adormecerá o horizonte do meu corpo.

E se amanhã eu não mais tiver seu beijo antes de me encontrar com o sono, se eu não mais sentir meus joelhos dobrados em suas costas, se eu não mais entrelaçar meus braços por entre seus seios, se eu não mais me perder entre os fios dos seus cabelos, se eu não mais tiver que reclamar que meus pés estão para fora da coberta, ou que os travesseiros estão trocados, saiba que ainda assim você permanecerá comigo.

E se acaso acontecer de não mais senti-la em mim, saiba que ainda assim, eu te amarei.

Jânio Dias

terça-feira, 26 de maio de 2009

Tios e Tias

imagem: Gabriel, by Reinaldo Rabello


“Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Ié Ié!”

Pato Fu, em Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!


Meu pai dizia que ser tio é fazer pose para retrato.

Ainda desconheço a experiência da paternidade. Não que eu não semeie e não deseje que germine, ao contrário. Sempre penso no assunto com a alegria de quem vive a expectativa de que se sabe que será presenteado; para só depois então lembrar de todo o universo de cuidados. Uma sensação de prêmio no horizonte de céu azul e cristalino, para momentos depois visualizar a pressão da responsabilidade carregada de nuvens indecifráveis.

Imaginar a possibilidade é sempre leve e agradável como a brisa de uma sombra em tarde de verão. Pensar na realidade às vezes pode ser denso como nevoeiro encobrindo a cidade nas manhãs de inverno.

O mais próximo que já estive da verdade, é que as incertezas desaparecem no primeiro contato com o vidro do berçário. Falo com a sabedoria da experiência de tio de fato e tio eleito.

Minha mãe conta que quando eu tinha nove anos, ainda filho único, chorei na frente de alguns parentes reivindicando um irmãozinho. Sensibilizei a todos e meus pais foram intimados a tomarem providências. Minha apreensão era a possibilidade de nunca ter um sobrinho; não ter ninguém de direito para me chamar de tio. E se algo de ruim acontecesse comigo, como ficariam? Um ano depois vinha ao mundo minha irmã, para no ano seguinte meu irmão. Eu ameacei meus pais com a crueldade da pureza.

Há três anos nasceu minha sobrinha Eduarda, um ruído rosa, toda cura para todo mal. Minha relação com ela é sempre o de tentar ser o que ela ainda não descobriu. Tentar antecipar o que seus pequenos olhos ainda não tocaram, o que suas mãozinhas ainda não morderam. Se o escorregador parece alto, vou até o meio do caminho para encurtar o medo, espero por seus pés em meus ombros para descermos juntos a continuação do brinquedo. Se o balanço parece um pedaço de tábua suspensa, ofereço meu colo e o apoio do meu braço sobre sua cintura enquanto deslizamos para trás e para frente. Se o mar de bolinhas de plástico parece engoli-la, eu me afogo primeiro para que ela perceba que também dependo dela para emergir. Minha sobrinha é o endereço do afago.

Depois dela virei tio de consideração do João Pedro, filho encantador com cara de desenho animado da querida amiga Eneida. Ele deve ter me visto umas duas vezes apenas, no dia seguinte ao seu nascimento e talvez um ano depois. Minha amiga sempre lembra de que ele ainda tem o presentinho dado por mim, um travesseirinho que também vira um cachorrinho, e que por muito tempo foi seu preferido para fechar os olhos e adormecer o sono dos inocentes. Tê-lo visitado menos de 48 horas após ter nascido foi definitivo para senti-lo como sobrinho. Um irmão também se faz de estima.

Há nove meses atrás fiquei sabendo que seria outra vez tio; outra vez seguindo os trilhos vicejantes do afeto e da amizade. Meu querido amigo de infância Reinaldo e sua esposa Emanuela estavam grávidos.

A notícia dada num almoço arquitetado por ambos na cozinha de casa foi como a explosão de um gol de desempate aos 44 minutos do segundo tempo. Abri imediatamente uma garrafa de Tequila estrategicamente guardada para algum evento extraordinário e festejamos a alegria da conquista. Tamanha vibração tinha muitos motivos para existir, desde o desejo recíproco do casal ao histórico de tentativas; desde o sonho do matrimônio à realização da vida a dois. Havia ali a semente do fruto da renovação do amor.

Nesse último fim de semana, de forma programada, o pequeno Gabriel nos deu a graça de seus lentos movimentos ainda sonolentos. Enquanto o papai Reinaldo superava no centro obstétrico seus bloqueios emocionais relativos a seringas, instrumentos cirúrgicos e sangue, toda uma torcida de familiares e amigos se organizava no café da maternidade ao redor de uma mesa em frente a uma moderna televisão gigante a espera da primeira imagem de um neném com sobrenome Rabello. Mais de uma hora depois, a audição da vinheta avisava da exibição de um novo bebê na telona, ilustrada por uma animação com uma simpática cegonha munida de GPS. Era o menino Gabriel todo exposto, sem roupa, mas sem chorar, forte, sadio e já querido.

Excluindo as avós, todas as outras pessoas vibravam o jubilo de se sentirem tios e tias. E todos queriam seu registro exclusivo do tempo.

Meu pai tinha razão, ser tio é sair na foto da festa.

Ser tio revela uma alegria imensa.

Jânio Dias

domingo, 17 de maio de 2009

Doce Vida

imagem: Still Life with Sky Element, 1995, Alan Kingsbury


“A fome tem uma saúde de ferro
Forte, forte como quem come”

Nação Zumbi, em Fome de Tudo


Eu tenho fome de tudo que se move. Eu tenho fome de tudo que derrama. Tenho fome de tudo que é calor; fome de tudo que molha; fome de tudo que ainda posso tocar com o repouso dos cílios. Tenho fome de tudo que cativa o afeto da retina.

Eu tenho fome do tempo em que minha mãe me levava para a escola. Tenho fome do tempo em que meu pai me buscava na escola. Tenho fome do bordado que desenhava meu nome no boné. Tenho fome de vender geladinho frente ao portão de casa. Tenho fome de juntar moedinhas para comprar doce na venda do seu Osmar. Tenho fome da coleguinha que me ajudava a amarrar o cadarço do tênis no prézinho. Tenho fome da professora Edna que me ensinou a cantar o alfabeto. Tenho fome de escorregar no pátio de mãos dadas. Tenho fome dos meninos mais velhos que conversavam sobre Star Wars. Tenho fome do gramado do outro lado da janela da sala de aula. Tenho fome da merenda da dona Lourdes. Tenho fome das gincanas das festas juninas. Tenho fome das danças com as meninas mais altas. Tenho fome dos pedidos de prendas nas portas das casas. Tenho fome do balanço improvisado entre o pé de abacate e o pé de manga. Tenho fome dos álbuns de figurinhas incompletos. Tenho fome de bater e trocar figurinhas. Tenho fome do cheiro da terra vermelha da estrada. Tenho fome de brincar de fazer lama atrás do quintal. Tenho fome das unhas compridas que ajudavam no momento de jogar bolinha de gude. Tenho fome da minha coleção de bolinhas. Tenho fome de fazer cerol escondido da minha mãe. Tenho fome da linha corrente 10. Tenho fome do vento que me fazia senhor do céu. Tenho fome de disputar a posição de melhor goleiro com meu amigo Carlinhos. Tenho fome dos chutes precisos do meu amigo Jefferson. Tenho fome das bolas de plásticos que furavam nos espinhos do limoeiro. Tenho fome de falar sobre a seleção brasileira com minha vizinha Renata. Tenho fome dos filmes de Bruce Lee. Tenho fome do meu cachorrinho Lulu. Tenho fome da comida da dona Geralda. Tenho fome da esperteza da Simone que cuidava de mim. Tenho fome das roupas curtas da Jacqueline que também cuidou de mim. Tenho fome da Solange que visitava a minha mãe. Tenho fome das visitas em noites de quarta-feira do tio Antonio. Tenho fome dos chocolates que meu pai comprava no trem. Tenho fome da pressa de vê-lo chegar em casa com alguma surpresa. Tenho fome da falta de sua presença. Tenho fome da bicicleta que nunca consegui impor o equilíbrio. Tenho fome dos quadrinhos que me eram proibidos. Tenho fome dos gibis que os amigos liam. Tenho fome das rádios AM que minha mãe ouvia e tocavam rock nacional. Tenho fome dos programas de TV que repetiam tanta novidade. Tenho fome do gosto de descobrir o estranho para meus pais. Tenho fome de estudar na mesma rua de casa. Tenho fome da barraquinha de doces do seu Ezequiel. Tenho fome da coleção de livros Vaga-Lume. Tenho fome da postura sensual da professora Vera Lúcia. Tenho fome das incitações políticas da professora Jurema. Tenho fome das letras das canções que despertava furor juvenil. Tenho fome do eu romântico das canções em primeira pessoa. Tenho fome das aulas de educação física do professor João Seleção. Tenho fome das competições de futebol de salão. Tenho fome das tardes rumo à cachoeira. Tenho fome do andar despreocupado pela rodovia com a camiseta enrolada na cabeça. Tenho fome dos bailinhos da oitava série. Tenho fome da troca do futebol pelo basquete. Tenho fome das manhãs de domingo indo de casa em casa para juntar o pessoal para jogar basquete. Tenho fome dos cafés da tarde na casa da Dona Sônia. Tenho fome da falta de fotos com os meus irmãos pequenos. Tenho fome das conversas sobre paixão com o amigo Alves. Tenho fome das discussões sobre o que é a vida com o amigo Sidnei. Tenho fome dos encontros e debates musicais com o pessoal do fã-clube da Legião. Tenho fome da astúcia concreta do Márcio. Tenho fome da maturidade precisa da Luzia. Tenho fome do encantamento radiante da Alcina. Tenho fome da sabedoria critica da Claudinha. Tenho fome dos shows que não vimos juntos. Tenho fome das bandas de Seattle. Tenho fome do Nirvana em São Paulo. Tenho fome de Caio Fernando Abreu. Tenho fome dos Amigos eleitos. Tenho fome das nossas reuniões. Tenho fome das nossas leituras. Tenho fome das nossas preocupações. Tenho fome de nossas ansiedades. Tenho fome de nossas conquistas. Tenho fome de nossas ilusões. Tenho fome das cartas enviadas. Tenho fome das respostas recebidas. Tenho fome do pulo sobre o muro do trem para atravessar a cidade. Tenho fome das flores roubadas para presentear no aniversário. Tenho fome de não ter tentado outra faculdade. Tenho fome de não ter experimentado um caminho diferente. Tenho fome do primeiro sólido amor. Tenho fome dos planos de voo. Tenho fome das asas que alcançaram o céu. Tenho fome da beleza que aconteceu.

Tenho fome de tudo que queima; fome de tudo que vira bolha; fome de tudo que derrete. Tenho fome de cicatriz.

Tenho fome de tudo que se espalha em minha memória. Fome dos vestígios que modulam o despertar dos dias. Tenho fome de tudo que se prendeu às lâminas escorregadias do coração.

Minha fome não é urgente, não é ávida; às vezes nem necessária. Minha fome é apenas sentida com os lábios da mordaça.

Minha fome é um pedaço de inveja da pureza que se disfarçou de gente adulta. Minha fome é um meio arrependimento daquilo que se hesitou viver com vigor. Minha fome é orgulho travesso no prato do ontem.

Fome é uma lembrança repentina que nos visita. Fome é uma saudade que ainda não passou.

Jânio Dias

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Terceira Criança

imagem: Yellow Field, Kedleston, Derby by Andrew Macara


“Eu posso sentir o que a paixão faz em segundos
Eu posso sentir o que o amor fez depois de anos”

Os Paralamas Do Sucesso, em Scream Poetry


Ela insistiu para que eu fosse atrás de uma antiga
lenda que falava sobre duas crianças, um menino e uma menina. A primeira chamava-se Amor e a segunda Loucura. Eram muito amigas, cresciam juntas, quase que inseparáveis. Amor era gentil, terno, compreensivo; Loucura era passional, impulsiva e emotiva. Não se sabe por que, mas um dia ambos brigaram violentamente, a ponto de Loucura arrancar os olhos de Amor.

Ela não quis me responder por que eu devia procurar essa narrativa. Além de muito bonita, será que ela queria me mostrar algo mais? Fui deitar pensando que talvez quisesse que eu me identificasse com uma das crianças; ou será que queria que eu lhe dissesse qual das pequenas criaturas era ela?

Antes de o sono adormecer as pálpebras, suspeitei que um terceiro elemento pudesse estar entre o amor e a loucura.

Tudo começa com um encantamento terno de querer bem, de muita gentileza e simpatia, para depois passar a um estado de alta intensidade, de calor ardente, de grande entusiasmo, que tende às vezes a se transformar em afeto dominador de quase obsessão. Acho que chamo isso de sentimento de estar apaixonado.

Um antigo professor dizia que paixão é amor e loucura destituída dos olhos frios da razão.

Já fiz muitas coisas ausentes de razão quando apaixonado. Já acordei muito cedo para esperar a colega da escola embaixo de uma árvore em frente a sua casa numa manhã de chuva. Já confidenciei a um amigo que gostava da menina que ele queria namorar. Já dormi várias vezes na rodoviária depois de ter perdido o último ônibus quando voltava da casa de uma namorada que morava em outra cidade. Já rabisquei poemas cujos traços não tiveram cópias guardadas comigo porque eram exclusivos das meninas que os receberam. Já quase capotei o carro em uma curva porque estava atrasado para um encontro. Será que eu era Amor ou Loucura nesses acontecimentos?

Talvez apenas um doce e extremo estado de arrebatamento.

Quando me apaixono os olhos se abrem num clarão que suspende o corpo inflado de meu ego. Bóio em suspenso repouso no aguardo do despertar do próximo contato.

Acordo entusiasmado com o sol que ainda não nasceu. Preparo meu próprio café e ofereço parte às flores do quintal da casa. Só o jardim do próprio lar entende uma madrugada de despertar apaixonado.

Canto com o bem-te-vi pousado próximo ao pé de amora uma canção de bem querer. Sou um pássaro cuja garganta conversa com as folhas que se espalham pelo chão. Sou amigo do vento que dispersa as sementes do trigo.

Cuido do cabelo como se uma foto 3x4 sempre rejuvenescesse. Proíbo o crescimento dos pelos do rosto para que a pele deslize suave como roupa de veludo. Aliso a camisa como que engomasse o próprio corpo com o ferro de passar. Compro um perfume novo para beber como licor que marca a refeição. Eu me visto para desabotoar o vestido do desejo.

Quando apaixonado eu não visualizo a profundidade do rio, não reparo a intensidade das águas. Não enxergo o presente próximo das margens opostas, ignoro o passado de seu leito, não distancio o futuro da nascente.

Eu não reparto as horas, não devolvo os minutos que me antecederam. Enfureço-me se não fui avisado, espumo pelas orelhas se não fui compreendido. Eu sou o joio no beijo se não sinto reciprocidade na verdade. Quando apaixonado eu queimo o tempo do plantio.

A paixão não explica o ser. Ela estabiliza a imperfeição de sermos o que nunca temos.

Não consegui saber se o que ela queria era questionar qual das duas crianças eu sou. Mesmo assim deixo aqui minha resposta: sou a terceira. Eu sou Paixão.

Ainda intrigado insisti para saber por que achava que eu tinha de ter contato com essa estória. Disse-me apenas que certas manhãs não podem ser apagadas do coração.

Jânio Dias

domingo, 3 de maio de 2009

O Coração e o Compromisso

imagem: Love Icon, by Thisisnotme


“Eu já fui seu namorado
Por isso ela me chamou
Para que eu fosse testemunha dessa história
Que seja linda como um dia foi a nossa”

Nenhum de Nós, em Paz e Amor


Ela estava três degraus e alguns metros distante de mim em um show de uma querida banda gaúcha. Não a reconheci imediatamente, precisei de alguns longos e silenciosos segundos para confirmar junto à retina a imprecisão da imagem calada em meus olhos. Estávamos tão distantes de nossas moradas que seria improvável um encontro casual ali, um lugar tão remoto em meio a centenas de pessoas.

Minha namorada me questionou quem era. Expliquei que achava se tratar de uma antiga amiga. Pedi ajuda no reconhecimento ao velho amigo ao lado que, por sua vez, consultou a esposa. Eles concordaram com minhas suspeitas. Continuei olhando para a menina que tinha cabelos vermelhos quando da última vez que a vi na expectativa que também me olhasse. Fui incentivado para ir até lá, mas a menina estava acompanhada de dois rapazes. Desconfiei que eles pudessem não entender minha abordagem suspeitamente tão cordial e quase íntima. Puxei minha namorada pelo braço e descemos os degraus. Chegando próximo, ela virou o rosto e me sorriu surpresa num abraço contente como se eu fosse um brilho de sol que surge de repente por cima das nuvens.

Apresentou-me seu namorado e o outro rapaz (minha memória é péssima para nomes, para possível grau de parentesco então...). E me contou radiante como girassol na primavera que irá se casar em novembro desse ano.

Casamento na igreja, abençoado pelo padre e legitimado pelas leis da igreja e do homem. Com vestido branco, festa, bolo e brigadeiro.

Balancei os lábios num misto de admiração e tentativa de demonstrar meu contentamento. Meu sorriso procurava ser o reflexo de sua alegria.

Acontece que nunca fui fã da idéia tradicional do matrimônio. Sempre fui um rebelde anti-união conjugal oficializada. Sempre achei mais belo a união descompromissada das regras da sociedade; sempre achei mais intenso o compromisso do coração. Sempre defendi o estandarte da paixão continuada: a cada aniversário de namoro os votos do amor são renovados.

Minha visão de relacionamento começa na liberdade de gostar de estar junto, e na possibilidade de escrever sozinho parte do próprio tempo.

Eu gosto do namoro que se despede no portão no início do fim de semana. Do horário de voltar pra casa com a sensação de que preferiria que ela estivesse comigo dividindo o mesmo colchão. Da preocupação de buscá-la em casa no dia seguinte no horário combinado. Do passeio de mãos dadas separados pelo saco de pipoca no cinema. Da volta para a casa dela e dos beijos escondidos na cozinha enquanto preparamos o lanche do fim de noite. Das almofadas do sofá e do brilho da luz acesa vinda do quarto dos pais supostamente avisando que ainda estão acordados enquanto fingimos assistir televisão na sala. Gosto do início da semana que provoca a vontade de estarmos juntos outra vez. Gosto do afastamento que desperta a falta de estar perto. Gosto de namorar para cortejar a paixão.

Eu prefiro não fazer planos e deixar fluir a intenção de querer estar um com o outro. Eu prefiro revezar os finais de semana na minha casa ou na casa dela a ter de precipitar a procura por um abrigo para os dois. Prefiro ter e dar uma toalha, um sabonete, uma escova de dentes e a liberdade de abrir a geladeira sempre que quiser na casa dela ou na minha. Prefiro primeiro que ela se sinta parte da minha família e eu aceito pela dela antes de isolarmos nossos corpos em um só. Eu prefiro descobrir nossas afinidades provocando nossas inconsistências.

Acho que antes de se optar pela união com alguém é preciso se desvencilhar das asas da criação doméstica, do conforto maternal. É preciso casar-se consigo mesmo por um tempo; sair de casa e experimentar noites solitárias sem ter por quem chamar após um sonho ruim. É preciso aprender a não queimar o próprio arroz e lavar a louça que estraga a pintura das unhas. É preciso acostumar-se por um tempo com a fala solitária da televisão e com a luz de emergência da geladeira avisando que a verdura estragou. É preciso aprender a separar as cores da roupa no momento de lavar e descobrir a coragem escondida em cada dobra amassada na hora de passá-las. Gostar da companhia muda dos livros; dançar a música invisível dos dedos das mãos. É preciso viver o exercício de ter sido só antes da experiência da divisão conjugal.

Depois é só convida-la para ficar algumas noites. Passar a dividir os lençóis e os planos do fim de semana. Ir juntos ao mercado e deixa-la sugerir o molho para o macarrão. Esvaziar uma gaveta do guarda roupas só para ela. Dispensar a moça da limpeza quinzenal e compartilhar as tarefas domésticas com ela. Assistir mais comédias românticas do que filmes de aventura. Ouvir sem criticar a cantora solo preferida dela. Dobrar o número de porta retratos da sala com fotos dos dois. Convidar casais de amigos para almoçar em casa. Não deixar a mãe se intrometer na sua alimentação porque agora esse assunto é de casal. Fazer planos para aumentar o pacote de opções da tv a cabo e trocar a geladeira por uma que não favoreça o aquecimento global. Desenhar a possibilidade de se criar um cachorro ou atualizar o modelo do carro. Deixar sempre em aberto a discussão do nome perfeito para o bebê. Viver a dois é abraçar a insegurança de um novo mundo.

Eu acredito que relacionamento é a harmonia de dois corpos de tamanhos e gestos diferentes. Sinceridade é não magoar todas as verdades; lealdade é merecer confiança e não cobrar segurança do outro; compromisso é a cumplicidade de viver uma vida serena. Casamento é aperfeiçoar o convívio da felicidade almejada.

Eu acredito na paixão como fogo que deve ser reacendido todos os dias da manhã. Eu acredito no desejo do olhar de quem come com fome de não deixar partir.

Ela acredita nos rituais do passado. E será feliz da mesma forma.

Jânio Dias

domingo, 26 de abril de 2009

Futebol: Um Lampejo Poético

imagem: luiz braga - futebol no rio, 1998

“Foi um gol de anjo
Um verdadeiro gol de placa
E a galera agradecida assim cantava”

Jorge Ben Jor, em Filho Maravilha


Neste campeonato Paulista de 2009, meu time de futebol foi sumariamente executado com duas derrotas nas semifinais. O time da minha querida amiga Allcina também. E mesmo antes do segundo jogo de seu time, ela já me avisava que sabia com a antecedência de quem enxerga o jogo com os olhos da admiração, que teria de encarar o gosto azedo da eliminação. E me questionou se eu achava que futebol e poesia podiam ter alguma relação.

Tenho uma grande paixão por futebol. Sou desses que para em frente a TV e assiste qualquer jogo que estiver passando apenas para aguardar o momento impreciso de um lance que gera uma jogada improvável que conduz ao inesperado. Um jogo de futebol é uma colcha de surpresas costurada por detalhes inconstantes e imprevisíveis.

O que para uma mulher é visto como repetição, dezenas dos mesmos pontos de crochê sem formar desenho algum, para o homem é a arte da espera em diferentes níveis para se chegar ao momento sublime: o gol.

Sou torcedor do tipo que torce três vezes: para o meu time ganhar, contra o adversário direto do meu time no campeonato, e a favor de qualquer um que jogue diante do nosso histórico arqui-rival. Torcer é não descansar o olhar curioso e praguejador sobre os outros times.

Se deixarem, sou capaz de acordar no domingo pela manhã para ver alguma partida do campeonato italiano e emendar partidas sucessivas até o final da noite pelos canais de esporte. E quando não há uma transmissão ao vivo, sempre há o VT de alguma partida ou a tradicional mesa redonda de debates intermináveis. E no dia seguinte as partidas recomeçam novamente nas bocas e gozações dos colegas de trabalho. O que convêm dizer que uma partida de futebol nunca termina quando o juiz encerra o jogo. Uma partida de futebol começa quando o torcedor põe em dúvida a imagem precisa do vídeo tape.

Eu me tornei torcedor de futebol pelas linhas brancas da tristeza. Quis o destino que a primeira vez que eu me interessei por um campeonato a camisa escolhida não o vencia há dez 10 anos. E justamente quando tudo parecia caminhar para o fim do jejum, eis que a equipe perde a partida final, e em casa. Na manhã seguinte na escola todos os comentários eram para a incrível derrota de um grande time da capital para um pequeno do interior. Acho que esqueci de torcer por algum tempo para repensar a alternativa feita, mas o coração já havia substituído o vermelho de suas batidas e pulsava o som da vida em tons alviverdes. Ser torcedor na derrota é secar a lágrima salgada da esperança com a manga curta da fé.

Como praticante, eu nunca tive habilidade para me destacar em campo. Meu pé direito nunca me ajudou muito, ele sempre foi ligeiramente aberto para fora, quase uma reta transversal, um diferencial que ao contrário dos joelhos tortos de Garrincha, sempre me provocaram certo desequilíbrio em campo e indefinição no momento do chute. Quando me esforçava para chutar no canto direito do goleiro, a bola ia no meio. Se tentava o esquerdo, ia para fora. Se tentava o meio, ela ia para o alto. Bem por isso eu sempre fui melhor aproveitado no gol. Mas logo surgiu a miopia e ficar embaixo das traves de óculos nunca foi permitido. E mesmo com a falta de sorte e aptidão física para o esporte, minha infância sempre acordava ou dormia com uma bola aos pés da cama. A bola trazia a alegria da imaginação para dentro do quarto. Sonhos de menino que driblavam a falta de cores da televisão. A bola sozinha era uma contadora e pescadora de histórias.

Quase todo dia a tarde os meninos do bairro se reuniam numa rua de terra para formar equipes e disputar partidas acirradas. O gol tinha dez passos de cumprimento e era demarcado por duas pedras. Brincava-se descalço, os times tinham de três a quatro jogadores na linha, não havia posicionamento determinado para ninguém, e as regras eram forjadas na hora. Uma falta, bola para fora, pênalti, eram circunstâncias do momento que se definiam conjuntamente com todos ao mesmo tempo. Chegava o sábado, tomava café, colocava a redonda embaixo do braço e ia bater no portão do meu vizinho de infância para irmos até a quadra da escola. Ainda hoje o muro da casa do vizinho que separa o quintal da casa da minha mãe tem as marcas dos meus chutes cheios de defeitos. Aquele corpo esférico era nossa amiga inseparável. A bola foi nossa primeira amante. O futebol é o primeiro contato amoroso do ponto de vista sexual de um menino.

Quando torcedor formado, o futebol é um ato de guerra. É agressivo, violento, guerreiro. Os jogadores são soldados em defesa de sua pátria. Vivem e matam pelo ideal da conquista. Mas também é meio de expressão da sedução. Ora cadenciado e romântico, ora veloz e abrupto, ora gentil e cuidadoso, o jogo de futebol é a determinação de alcançar o proibido. A linha que delimita o gol de sua entrada é a boca do desejo intransponível. Toda vez que alcançado, toda vez que invadido, as redes do gol balançam as rugas libidinosas e as arquibancadas estremecem os joelhos religiosos. Os torcedores enlouquecem em orgasmos múltiplos explícitos. O gol é a explosão generosa do gozo.

De maneira simplificada, sei que o professor e santista
José Miguel Wisnik considera que o futebol é às vezes prosa, outras poesia. No primeiro caso, essa situação acontece quando o time tem como prioridade a defesa, no segundo quando a ênfase proposta é o ataque. No entanto, como os tempos atuais são outros, Wisnik acredita mesmo que em geral o que existe hoje seja uma espécie de prosa ensaística, à procura da poesia.

No jogo de hoje em Santos, a prosa dominou toda a partida, tendo o time da casa feito sucessivos rabiscos ao encontro da mencionada prosa ensaística. Contudo, antes de torcedor e agoureiro, sou admirador da beleza inesperada e espectador da arte incontida do espetáculo. O segundo gol do Ronaldo foi um lampejo radiante e consciente de poesia.

Jânio Dias

sábado, 18 de abril de 2009

Um Feriado para a Alma

imagem: Dance on the Banks of the River Manzanares, 1777, Francisco Jose de Goya y Lucientes


“São as pequenas coisas que valem mais
É tão bom estarmos juntos
E tão simples: um dia perfeito”

Legião Urbana, em Um Dia Perfeito


Uma grande amiga me disse que queria ir ver (ver não, sentir)
O Teatro Mágico em Itatiba, uma outra cidade a 80 km de distância de São Paulo. Seu marido e eu dissemos a ela que a distância não era grande, mas as estradas estariam intensas por causa do feriado prolongado. Ela respondeu desconsolada que será feriado para todo mundo, menos para ela que trabalhará na segunda-feira.

Feriados sempre me causaram um tipo de ansiedade com gosto de sede prolongada. Na verdade, um tipo feliz de espera. Uma data aguardada para eliminar um dia de trabalho. Uma noite de véspera mais longa dedicada aos lançamentos da locadora. Uma manhã menos cinza para acordar mais tarde e pensar direto no almoço. Algumas horas a mais para me dedicar ao saboroso ato de não fazer nada relacionado a obrigação do serviço. Preciosas horas a mais entregues a liberdade do descompromisso.

As vezes que trabalho no feriado o faço consternado. Levanto cabisbaixo, coloco a camiseta branca mais antiga, a calça jeans mais surrada e o tênis que tiver o cadarço mais encardido. Não é que eu odeio trabalhar nessas ocasiões, mas acordar cedo e entrar no metrô quase vazio, esperar o sinal vermelho mudar para verde sabendo que não há trânsito, atravessar a rua sem ter que esbarrar em ninguém, entrar no prédio e não ter fila para o elevador, passar no corredor e ver departamentos com a luzes apagadas, ligar o computador e só ouvir o barulho da sua máquina iniciando, sair para almoçar na casa do pão de queijo, atender o telefone e ter certeza que é da sua casa, desperta em mim a amargura do isolamento da alegria. Torna menor minha capacidade de acreditar que o trabalho enobrece. O trabalho em dias assim ocupa o corpo do tempo que deixou de ser meu.

Ao contrário da maioria das pessoas que conheço, sempre gostei mais de não viajar em feriado. A viajem me cansa, o trânsito me aborrece, o comportamento jurássico das pessoas me desola. As longas filas na estrada, as ultrapassagens desnecessárias pelo acostamento, a multidão insaciada no mercado, tudo me atinge escurecendo o belo do feriado.

Um feriado deveria ser aproveitado para enaltecer a beleza do descanso. Para alongar o balanço da rede na varanda dos beijos.

Por isso adoro quando chove em feriado. Adoro ouvir o barulho dos pingos no telhado, o aviso de que não é preciso ir até o quintal ou ligar o carro. Adoro a possibilidade de não abrir o portão e não ir até a padaria. Adoro fazer o café, colocar algumas torradas no prato e sentar no sofá em frente a televisão para rever uns dois episódios do seriado favorito e avança-lo sem pressa de levantar. Adoro o céu nublado e a promessa de mais chuva. Feriado em dias assim fortalece minha amizade com alguns cômodos do meu lar.

Adoro quando é inverno e feriado. Os pés com meias lavando a louça para as mãos serem recompensadas com o edredom confortando todo o corpo logo depois de uma redonda xícara de chocolate quente. A companhia de um livro para ser comido enquanto o branco dos olhos é aquecido com as imagens e construções de um outro universo. Mas tão gostoso quanto é sair de casa com touca e cachecol para ir ao cinema tendo a certeza de encontrar a tranquilidade das cavernas. Passear pela cidade em feriado de pleno inverno é como transitar pelo sossego da própria casa pela madrugada.

Mas é claro que não há nada mais bonito do que um feriado de sol invadindo as rusgas do dia. O agito dos planos para o par de tênis e a bermuda. A escolha da camiseta regata e a procura do protetor solar. A caminhada pela calçada arborizada ou o passeio dentro do verde do parque. A possibilidade do almoço fora ou a visita à casa da mãe. Uma cerveja com amigos que não viajaram ou apenas o deleite da presença da pessoa amada. A alegria do feriado está na liberdade das escolhas.

Um feriado serve para as janelas abrirem-se como braços a cumprimentar a entrada do sol. Serve para que os vidros inclinem o rosto para os pingos da chuva. Serve para permitir a permanência do vento por mais horas nas frestas das telhas empoeiradas.

Um feriado deveria ser aproveitado para se sentir o afago da natureza em ocasiões distintas.

Um feriado serve para suavizar a distância entre as faltas do tempo e os desperdícios da estrada.

Aproveitar um feriado é mirar a possibilidade de voltar mais forte para o trabalho.

Toda vez que eu me permito sentir (sentir não, viver)
O Teatro Mágico, mais revigorada minha alma fica.

Minha amiga tem razão, para compensar um feriado não realizado, só mesmo o arroubo provocado por um show de
Fernando Anitelli e Companhia.

Jânio Dias

"Selo: Blog 100!"



Este blog foi gentilmente agraciado pela amável Verônica do blog Mil Pensamentos com o “Selo: Este Blog é 100!”. Obrigado, Ve!

Ela recebeu o Selo de Gleice Couto, que recebeu do Acayrã do Deserto, que, por sua vez, foi indicado por Fabio Santos.

Agora, conforme as regras da corrente, eu preciso indicar três blogs para o mesmo Selo e justifica-los.

Pois bem:

“Selo: Este Blog é 100!”, por Jânio Dias:

15 Kilohertz - porque o meu amigo Edilson quando inspirado, quando motivado, é o cara mais criativo que eu conheço. Ele desenha, pinta, toca e escreve. Ele cria. Um artista.

Agatha - porque essa Coreana de apenas 24 anos consegue com no máximo 500 caracteres contar uma história e descrever sensações que eu não sou capaz com 5.000 letras. E às vezes, apenas com a escolha de um vídeo, ela nem precisa escrever.

essapalavra – porque o Dauri é poeta e insiste em disfarçar o contrário; porque ele mergulha em imagens onde todo mundo acha que é autobiográfico, mas foi apenas o pouso de um passarinho perto da janela.


Jânio Dias


Regras básicas de sobrevivência de um Selo:
1- Publicar o selo em seu blog e dizer qual blog recebeu, colocando o link do mesmo;

2- Publicar a história e o motivo do selo;

3- Repassar o prêmio selo a três blogs, sendo que o selo não pode ser enviado ao mesmo blog por mais de uma vez ( assim mais blogs poderão ser homenageados);

4- Publicar no blog o endereço dos homenageados e avisá-los que receberam o selo.

domingo, 12 de abril de 2009

Uma Canção (Quase) Sem Palavras

imagem: arquivo pessoal


“Ainda não é tarde pra dizer o que eu sinto
O tempo é só uma invenção
Às vezes eu quase consigo entender tudo assim
Muita coisa que eu digo é apenas para mim
As coisas mais simples são mesmo difíceis de se dizer”

Marcelo Bonfá, em Todos os Sonhos do Mundo


Quando eu ainda era bem pequeno, minha mãe gostava de me produzir para tirar fotos. Colocava o sapato mais novo, a camisa de botão mais bonita e uma calça que não tivesse remendos. Penteava meu cabelo de lado, formando uma franja escorrida na testa, escolhia um pé de fruta como fundo, e pedia pro Seu Juvêncio fazer a foto. Às vezes convidava minha vizinha (uns dois anos mais nova que eu) para ser meu par. Quando a foto ficava pronta, minha mãe escrevia atrás: “vovó querida, lembrança do seu querido netinho”. Ainda anotava a data e mencionava minha idade.

Por anos foi essa a minha convivência com minha avó materna, uma correspondência sem palavras através de imagens congeladas em papel fotográfico. Apenas fragmentos de meu crescimento, da troca dos meus dentes, da constância do meu sorriso.

Uma vez quando eu estava com nove anos minha mãe viajou para visitá-la. Uma longa viagem de ônibus de três dias até o interior do estado da Paraíba, mais alguns quilômetros de chão até chegar a seu sítio. Uma viagem ao centro da saudade de minha mãe. Em mim a curiosidade de menino em conhecer a mãe de minha mãe. Um curto encontro, mas suficiente para eternizar nas conchas da memória a figura da mulher que não se cansou em trazer vida ao mundo.

Meus dedos davam voltas em minhas mãos para contar todos os seus filhos. Ela deu a luz 16 vezes, onde apenas 8 sobreviveram. Uma epopéia gestacional em uma época de ausência de recursos dignamente humanos. Uma heróica história de procriação onde o ser humano supera obstáculos obscuros da natureza. A figura de minha avó sempre flutuou em minha imaginação como a força do vento rompendo a sustentação da resistência de uma barreira.

Ainda retenho nubladas imagens no sótão da recordação dessa visita. Lembro da alegria conjunta das pessoas se reunindo a noite no sítio para na casa de farinha ralar a mandioca, e na saída voltar para suas casas apenas com a própria farinha como pagamento pelo trabalho. Lembro que não havia energia elétrica e que a luz noturna era forjada com lamparinas a querosene. A cozinha tinha um fogão feito de barro onde o gás era a lenha que queimava. A água para beber era buscada em balde no açude, onde também era lavada a roupa. Havia um gado magro que se alimentava de cajus caídos do pé. Não havia televisão e a parede da sala era enfeitada com um retrato antigo do meu avô com minha avó.

Com a exceção de dois filhos, todos os outros deixaram o sítio e migraram para a cidade grande. Mas minha avó nunca titubeou duas vezes na remota possibilidade de deixar seu lar. Nem mesmo quando doente aceitou os pedidos para que viajasse para tratamento. Uma pedra sólida e teimosa fincada no agreste de sua terra.

Ano passado, em passeio de uma semana pela cidade de João Pessoa, liguei para uma tia e tomei nota de como chegar ao sítio Riacho do Boi, na pequenina cidade de Lagoa do Mato, morada há mais de 50 anos de minha avó. Queria fazer uma visita surpresa, mas minha tia sabiamente me desaconselhou. Disse que poderia ser perigoso para um coração de 76 anos o susto e a alegria de uma chegada repentina, e que a avisaria antes. Concordei e fiquei feliz com a possibilidade de vinte anos depois rever a força do vento. Um encontro veloz para eternizar nos lençóis da lembrança a figura da mulher que nunca quis deixar seu solo.

Encontrei uma senhora forte e bonita, de voz alta, grave e firme, de cabelos levemente brancos, longos e presos, em sua casa simples de janelas verdes; elegantemente trajada em um vestido de algodão azul estampado com flores. Uma senhora lúcida de opiniões convergentes com seu tempo e lugar.

Seu assunto preferido são as histórias de quem tristemente já se foi. Sua maior alegria são as boas notícias dos filhos distantes. Seu único medo é o receio de que invasores tomem conta de sua terra quando for obrigada a partir.

Hoje há energia elétrica no sítio, as plantas são mais verdes, e a falta de água não aflige tanto como antes. A televisão tem parabólica e na antiga cozinha de fogão a lenha há uma geladeira moderna com dispenser de água e gelo. Os pés de caju ganharam a companhia de carambolas. O gado parece mais saudável e tão livre quanto antes. A casa de farinha está abandonada, a tecnologia dispersou a celebração do trabalho comunitário.

Na parede da sala diversos quadros de filhos, netos e bisnetos decoram a saudade da distância; como uma canção (quase) sem palavras.

Vinte anos depois eu não encontrei a força do vento; encontrei o aroma, as folhas e os frutos.

Jânio Dias

domingo, 5 de abril de 2009

As Cores dos Meus Olhos

imagem: The Apple Tree II, 1916, Gustav Klimt


"O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente”

O Teatro Mágico, em O Anjo Mais Velho


Certa vez, o poeta
Carpinejar me disse que seus olhos ficam verdes quando está triste. Sua esposa Ana havia acabado de comentar que meus olhos eram ligeiramente claros como os dele, sem ter certeza como defini-los.

Meus olhos são sensíveis à claridade. Toda vez que abro a porta de casa sei se terei de pegar os óculos de sol ou não para protegê-los. Caso contrário, não consigo mantê-los acima do nariz, sou obrigado a caminhar de chapéu cobrindo os cílios; tropeço nas sombras seguindo as pontas do tênis.

Uma vez questionei o oftalmologista e ele me disse que meus cristalinos deixam passar mais amplamente os raios ultravioletas.

Meu pai tem os olhos azuis como céu de brigadeiro. Todos os irmãos têm os olhos azuis ou verdes. Meus avós quando juntos pareciam que tinham quatro bolas de fogo azuladas com nuvens em volta e pequenos anjos passeando serenamente em suas íris. Eles sempre despertaram a atenção para seus rostos, uma peripécia genética que convencionou que outras famílias quando fizessem referência a eles os chamassem de “família gato”.

Já minha mãe tem os olhos castanhos-castanhos, e os meus são indefinidamente claros. Nem verdes, nem azuis ou cinza. Talvez um castanho-mel, quase louro. Algumas pessoas falam em castanho-puro, outras em castanho-claro-esverdeado. Sempre preferi a versão nordestina do meu querido Tio Antonio: eles têm a cor de burro quando foge.

O fato é que eles são sensíveis à luz. Variam de cor conforme a exuberância do momento. Variam de cor conforme a luz em volta.

É assim quando minha sobrinha me vê chegando para visitá-la, e quase tropeçando no quintal de cimento, correndo com os chinelos trocados, com seus cabelos escuros semi-encaracolados balançando contra o vento, segurando seu pequeno sorriso de pequenos dentes brancos, vem em minha direção com os braços abertos. E quando a pego no colo, simplesmente enlaça meu pescoço com seus braçinhos, apertando-o com toda sua força, impondo alegria em um enforcamento de brincadeira, para depois me dar um beijo molhado no rosto. Nesse instante meus olhos brilham o calor da afetividade. Meus olhos ficam laranja quando abraçam o sorriso de minha sobrinha.

É assim quando durante uma atividade física, no caminho de volta no metrô ou parado em alguma fila desmerecedora, enquanto não toca o despertador da descida, um vento fino golpeia meu rosto e relembro de algum pedaço da infância. Costuro um remendo na calça sobre o joelho, conto tampinhas de refrigerante sobre a calçada, me desfaço das figurinhas repetidas, amasso vidro em uma lata de leite, recorto um galho bifurcado em Y, molho por querer os pés numa poça de lama. Nessa hora meus olhos brilham os anos fulgurantes da inocência. Meus olhos ficam azuis-turquesa quando rejuvenescem estáticos na memória.

É assim quando disperso e a ausência se faz presente. Quando peso o lamentar de quem se foi. Quando desenlaço a caixa de correspondências dos distantes. Quando afasto a poeira sobre a capa do álbum de fotografias. Quando decido levar para revelar o negativo mofado. Quando percebo que o fio da campainha está cortado. Quando a agenda de papel foi encontrada na máquina de lavar. Quando a estampa da camiseta está borrada. Quando a página do livro recebido de presente perdeu a dedicatória. Quando o velho vinil lembra o velho aparelho que não toca mais. Meus olhos brilham o intenso da saudade. Meus olhos ficam rubros quando a solidão soluça.

É assim quando revejo um velho amigo. Meus olhos cegam as horas que já tivemos por perto para recomeçar de onde não iniciamos. Resgatam o atraso das conversas interrompidas com a perspectiva da chegada da segunda-feira. Ajustam a altura do muro de nossas confidências. Reparam o alcance de nossas intransigências. Rebobinam as mesmas cansadas histórias para realçar suas cores. Meus olhos transbordam a vontade de colar os dias que não ficaram juntos. Meus olhos brilham uma luz enriquecida de harmonia. Meus olhos ficam amarelo-ouro quando estão entre velhos amigos.

É assim quando o peito se enche de satisfação súbita ao ouvir uma música energizante, que acelera e inebria os hormônios convalescidos de minha juventude. É assim quando os pés se confundem no ar com as mãos e dançam as faíscas do ontem abençoando o próximo amanhecer. É assim quando um filme provoca a leveza adocicada de um cair de noite. É assim quando leio de madrugada para o sono vir e não desejo adormecer as pálpebras. Meus olhos brilham o entusiasmo dos impulsos. Meus olhos ficam verde-piscina quando flamam.

É assim quando o coração se depara com a suavidade dos sussurros da melodia de uma canção que alterna o equilíbrio e o balançar dos fios sobre os pés. É assim quando os ouvidos dançam as batidas cadenciadas dos pulmões. É assim quando a beleza de um filme traz o rio para perto das lágrimas. É assim quando a leitura de certos versos faz chuva dentro de mim. Meus olhos brilham a emoção dos sentidos. Meus olhos ficam violetas quando o intrínseco se revela.

É assim quando a calma se apresenta, quando a esperança desperta. Quando a fúria reage, quando a prudência se dissolve. Quando um sorriso reconforta, quando um abraço vale o dia. Quando mistérios se escondem, quando segredos enlouquecem. Quando o silêncio grita, quando o espanto se cala. Quando a alegria vira dor, quando a arte vira tristeza. Quando um telefonema traz luz ao coração, quando uma visita conserta a janela da espera. Quando ela chega e ilumina a casa, quando adormeço com as pálpebras levantadas em seu amor. Meus olhos brilham desventura e felicidade. Meus olhos às vezes ficam assim, um branco-avermelhado que não se supõem.

Meus olhos têm cores que só a poesia desconfia.

Jânio Dias

sábado, 28 de março de 2009

A Retina e o Arco-Íris

imagem: Landscape with a rainbow, de Joseph Mallord William Turner


“Wake, from your sleep
the drying of your tears
today we escape
we escape”

Radiohead, em Exit Music (For a Film)


Tento buscar uma lembrança específica e nítida no fundo da memória. Uma imagem antiga e especial que não esteja dobrada em várias partes como papel de carta guardada no fundo de uma caixa. Um pedaço de filme em preto e branco que não esteja recortado exatamente no momento em que meus olhos pousem voo no descanso de sua película.

Tento buscar uma continuidade de movimentos que não tropecem nos atalhos da pressa. Um copo de água que resgate a sede na retina turva do passado.

Olho fixamente para dentro de mim mesmo. Olho como se fosse possível viajar por entre as veias sem derrapar em tantos obstáculos coagulados. Pulo pequenas pedras, desvio de finas bolhas vermelhas. Apresso o passo, caminho velozmente pela corrente sanguínea com braços rasos e pernas longas. Sinto meus olhos esbugalhados como duas bolas de gude espetadas e penduradas à frente do nariz. Minha língua morde os dentes, meus pulmões absorvem e não devolvem o ar, meus ouvidos trancam as batidas aceleradas do coração. Escureço para clarear em outro momento da existência.

Acabo de voltar no tempo. Estou de volta à primeira vez em que presenciei o show musical mais importante da minha vida.

Estou bem próximo ao palco, não mais do que quatro fileiras para alcançar a grade, o lugar onde as pessoas desafiam a lei da permanência de dois corpos no mesmo espaço. Há ensaios curtos e já empolgados de canções antes da banda entrar. Há também pessoas muito jovens fumando e rabiscando gestos fúteis com o cigarro nas mãos. Perdem parte da beleza da brisa branda e fresca que vem do acampado verde lá fora. Perdem a ansiedade do olhar de quem vai ver seu grupo preferido pela primeira vez, desperdiçam a chance de absorver os comentários inteligentes de quem já viveu aquilo antes. Diluem em fumaça cancerígena o momento mágico da materialização da esperança.

As luzes vão diminuindo lenta e sensivelmente. Gritos de expectativa de que já vai começar explodem no lugar inteiro. Uma música clássica começa estridentemente alta anunciando que algo mágico esta prestes a acontecer. Vejo a fumaça amaldiçoada há poucos instantes do meu lado fazendo contornos em volta do microfone lá no alto do palco. Ela dança lentamente no ar como se desenhasse contornos em volta da canção. É possível notar ainda sem luzes que todos da banda já estão posicionados. A música clássica termina. O público grita em delírio. Começa a primeira canção de uma série de hinos que seriam desalojados de seus abrigos.

É uma música lenta e curta onde todos declamam juntos em português arcaico do século XIII. A falta de confiança no amor daquele tempo é despida pelas vozes presentes. As luzes permanecem apagadas. Inicia-se a segunda canção como se fosse continuação da primeira. É uma música de doze minutos dividida em quatro partes de andamentos diferentes. Uma viagem medieval escrita em metáforas sobre os dias de terror político, doença incurável e ausência de fé presente na época. A parte dois da canção estoura numa espécie de heavy metal exorcista. As luzes explodem no palco e no público. As pessoas pulam de forma alucinada. Há um brilho intransigente que queima a pele como roupas em chamas. Arde adocicando a alma como mar salgado nos olhos abertos. As luzes diminuem em consonância com a canção. Um momento de respiro longo e demorado se aproxima. A descrença e desilusão com aqueles dias são entoados. O inimigo metafórico é desafiado e avisado que ninguém desistirá de lutar. Na quarta parte, antes de terminar, antes de visualizar o fim, as pessoas concluem com suas vozes misturadas e embargadas nos cômodos da emoção que algo melhor ainda virá na morada de suas vidas.

E enquanto na pista as pessoas expressavam viver o indizível, enquanto sentiam o enlevo de bradar suas canções preferidas com os olhos quase sempre fechados nos momentos mais introspectivos, quando abertos deparavam-se com performances quase hipnóticas não ensaiadas, não planejadas de um artista-cantor sobre o palco.

Ele dançava como se um ataque epilético o visitasse em algumas canções. Dançava como se uma descarga disrítmica libertasse seus movimentos no ar. Dançava como se o chão fosse um colchão que amparasse a queda imprevisível da noite. Dançava como se o fio do microfone enrolado ao seu corpo o protegesse da fúria dos dias. Dançava como que desistisse de cantar. Dançava como se insistisse em sentir. Ele dançava como que se entregasse o espírito para a canção.

Ele cantava como se a voz não viesse dele mesmo. Cantava com a facilidade da chuva que cai e penetra a terra. Cantava como se trovejasse e no instante seguinte as nuvens do céu dessem passagem para os raios do sol. Cantava como se fizesse insistentemente geada em seu coração, para logo depois abrir o armário e escolher uma roupa de primavera. Cantava como se o frio fosse belo e cortante, e tratava o quente como momentos que se guardam no bolso do casaco para depois aquecer a manhã da memória. Ele cantava como pássaro triste que guarda esperança no amanhã.

As feições das pessoas exalavam mistos de encantos e assombros, como se a realização de um sonho viesse acompanhado de algum efeito sobrenatural. Os olhos embaçados como pára-brisa de carro em dia de chuva e as vozes encharcadas, pesadas como roupas que foram lavadas, mas ainda molhadas, encontravam naquele momento a maneira de se fazerem aliviadas e percebidas. As pessoas encontravam ali algum sinal da presença da vida delas mesmas.

Desperto de meu transe. Meu coração parece dois tambores socados em intervalos de um segundo. Abro meus olhos com ardência nas pálpebras, vejo dezenas de bolinhas verde limão explodirem ao redor. Há suor em minhas mãos e testa. Há ainda uma nítida sensação de realização presente.

Quase que ainda posso sentir a embriaguez do êxtase daquela apresentação. Quase que posso ouvir os timbres da execução final de cada música. Quase que posso abraçar o coro das vozes em uníssono, quase que posso me queimar com o pranto dos versos cantados durante cada canção. Quase que posso tocar a volúpia de tantos corações. Quase que posso falar com o silêncio lancinante daquela noite.

Isso foi há tanto tempo atrás que parecia que nunca mais iria acontecer de novo. Parecia.

Aconteceu no último 22 de março em São Paulo.

Seu nome: Radiohead.

Jânio Dias

sábado, 21 de março de 2009

Das Coisas que Gosto em Ti

imagem: arquivo pessoal
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“E se por acaso chover,
Quero ver o seu cabelo molhado
Não há nada mais bonito
Do que o seu sorriso
O frio que te faz me abraçar”

Nando Reis, em Vamos Passear de Mãos Dadas
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Gosto do teu abraço pela manhã quando se despedes de meu corpo ainda enrugado na cama. Gosto quando me ligas a cada três horas e perguntas se já comi ou o que estou fazendo. Gosto quando tiras a roupa no quarto para ir tomar banho e antes de chegar ao banheiro passa por mim para que eu beije cada um de seus seios. Gosto quando voltas do banho e pede para que eu sinta seu cheiro. Gosto de abraçar seu corpo ainda nu e refrescante. Gosto quando penteias o cabelo e não o secas. Gosto quando pegas um único travesseiro e deita no sofá, obrigando-me a deitar também. Gosto quando assistimos a filmes que já vi e durmo docemente abraçado a ti. Gosto quando dormes e não percebo. Gosto quando acordas no meio da noite e me leva do sofá para a cama sem eu perceber. Gosto de acordar sem conseguir lembrar como fui parar ali. Gosto da sua insistência para eu beijá-la antes de fechar os olhos para o sonho. Gosto do jeito que me abraças de madrugada quando dobro os joelhos ou ranjo os dentes. Gosto da nossa disputa pela manhã para decidir quem levanta primeiro. Gosto de perder a disputa de quem vai à padaria. Gosto do seu café; acredite, eu gosto. Gosto de insistir em beijá-la com gosto de café na boca. Gosto que não gostes de café. Gosto da nossa falta de planos para o sábado. Gosto de sua impaciência se não proponho nada para fazermos. Gosto quando sugeres para que apenas passeemos de carro ouvindo o Ipod. Gosto que fiques brava quando deleto algo especial do Ipod. Gosto que concordes que o novo deve ter preferência. Gosto que gostes de andar tolamente pela Paulista. Gosto que gostes de caminhar. Gosto quando queimas no parque. Gosto quando lembras de passar protetor solar na minha tatuagem. Gosto do orgulho que tens pela tua tatuagem. Gosto que gostes de levar minha sobrinha para passear. Gosto do jeito que ela gosta de ti. Gosto quando ela te chama de tia gata. Gosto que a incentive a me chamar de tio gato. Gosto quando comes o arroz com feijão da minha mãe. Gosto que não rejeites as frutas colhidas no quintal de trás. Gosto quando carregas minha carteira em sua bolsa. Gosto de levar sua identidade em meu bolso. Gosto que goste de tirar fotos de nossos momentos. Gosto quando insistes em apenas me fotografar. Gosto que não esqueças de levar a máquina fotográfica contigo. Gosto que me lembres de sempre carregar as pilhas. Gosto quando desafias a segurança da casa de espetáculos e registras sem flash o show visitado. Gosto que estejas sempre atenta a agenda cultural. Gosto que na impossibilidade de irmos ao cinema, você chegue em casa com uma cópia do filme desejado comprado na barraquinha. Gosto que prefiras ir ao cinema. Gosto que incentive minha coleção de cópias caseiras. Gosto de suas dicas para minha coleção. Gosto que goste de descobrir novos seriados. Gosto que fiques brava quando assisto Lost sozinho. Gosto que gostes de futebol. Gosto que lembres de levar a bandeira do Palmeiras ao jogo. Gosto quando cantas junto com a minha torcida. Gosto quando xingas o juiz. Gosto que torças por outro time. Gosto que aprecie uma renomada livraria. Gosto que não se importes com o empoeirado sebo. Gosto que não se aborreça quando não encontro vaga no estacionamento. Gosto que gostes que eu dirija o seu carro. Gosto que não gostes de passear em shopping. Gosto que não gostes de fazer compras de natal. Gosto de sua preocupação ao escolher presentes de natal. Gosto do almoço de natal da sua mãe. Gosto da sua mãe. Gosto de sua irmã e irmãos. Gosto de sua cunhada e sobrinhas. Ainda não gosto do gato querendo brincar de me arranhar. Gosto quando cozinhas e eu lavo a louça. Gosto das suas várias receitas de omelete. Gosto de comer com você. Gosto quando cozinhas para meus amigos, e eu não lavo a louça. Gosto que me deixes preparar o suco. Gosto que gostes dos meus amigos. Gosto que não impliques com a reunião só dos meninos. Gosto que fiques ausente. Gosto de sentir saudades de ti. Gosto quando andas nua pela casa com as mãos cobrindo os seios. Gosto quando apagas as luzes da casa e deixa acesa apenas a do quarto. Gosto do gesto imóvel na cama só de calcinha me convidando para deitar. Gosto de deitar contigo. Gosto de dormir contigo. Gosto do cheiro de seu cabelo. Gosto do branco do seu corpo. Gosto de contar as suas sardas. Gosto de sussurrar coisas absurdas no seu ouvido. Gosto de beijar suas mãos pequeninas. Gosto de morder os dedos dos seus pés. Gosto das interrogações do teu olhar. Gosto do gosto do teu gosto. Gosto que gostes do nosso amor.

Jânio Dias

sábado, 14 de março de 2009

Entre o Sono e o Sonho

imagem: Wind, de Vladimir Kush

“If I never see you again
you will stay in my mind

We've only got a lifetime”

Teenage Fanclub, em If I Never See You Again


Nunca lembro dos detalhes dos meus sonhos. Quando acordo, sempre tento me agarrar aos fragmentos que ainda sobrevoam a neblina da memória. Quase sempre escorrego sem firmar as mãos nos galhos da lembrança.

Ontem despertei de um sonho confuso, onde velhos amigos que nunca se conheceram esperavam juntos por mim no quintal de uma grande casa, sentados nos capôs de seus carros. Carros antigos como Fuscas e Opalas. Acho que o quintal era maior que a casa, e eu morava nela. Curioso é que uma velha amiga também morava lá, mas não morávamos juntos. Era como se eu passasse as noites naqueles cômodos grandes, e ela vivesse os dias. Ela até tinha um namorado, mais jovem do que eu poderia imaginar, onde eu ainda não o conhecia e um sentimento inquieto exalava do aperto de nossas mãos. Não sei bem o porquê, mas o ar daquele sono lembrava um misto de rivalidade com receio de perda.

Acordei incomodado como se o corpo tivesse acabado de sair contundido de uma partida de futebol. A sensação era de cansaço e preocupação. O que significava aqueles antigos amigos que não se conheciam esperando por mim? E a amiga, que há tanto tempo não a vejo, por que estava ali?

Os únicos elementos de ligação entre eles eram a distância e o silêncio escolhidos por nós mesmos, pensei ainda deitado.

Partes das figurinhas repetidas que trocamos sem nunca completar o álbum.

Levantei veloz como o furor de cães ao avistar estranhos no portão. Liguei o chuveiro e enquanto sentia a tentativa da água em aliviar a impressão mal formada do conjunto de imagens distorcidas daquela manhã, senti uma súbita vontade de procurar as pessoas que estavam naquele sonho. Senti vontade de reuni-los e colá-los um ao lado do outro, como fotos 3x4 de um álbum antigo e questioná-los sobre suas casas, carros, cachorros e camas. Como dormem e como sonham.

Talvez eu lhes dissesse que quando deito quero apenas soltar o peso do corpo sobre a cama arrumada e macia, sentir os braços largados e as pernas esticadas sobre o colchão. Que esparramo o rosto sobre o travesseiro e cheiro a lavanda do lençol que secou no vento. Que às vezes ocupo todo o espaço da cama deitando em diagonal. Outras vezes coloco um travesseiro entre as pernas e com o outro cubro a cabeça.

Que quando deito e fecho os olhos quero repassar o melhor do dia sob os relâmpagos da retina e saborear lentamente cada doce detalhe da fogueira que é sobreviver a cada novo amanhecer.

Que quando durmo minha esperança é que meu espírito encontre a leveza da noite e vaguei pelo espaço renovando a confiança no abrir dos olhos.

Que quando sonho um sonho bom, minha vontade é não largá-lo pelo caminho incerto da indefinição. Quero sua continuação ininterrupta e a nitidez objetiva de suas mensagens.

Que quando tenho um sonho ruim, desejo acordar imediatamente para ter certeza de que era apenas sonho.

Que quando deito, fecho os olhos e durmo, sempre desejo revisitar em sonho as boas horas que tivemos juntos.

Que quando acordo, sempre desejo dormir um pouco mais.

Senti vontade de juntá-los como álbum de figurinhas que faz todo o sentido por estar sempre incompleto; não como sonho que nunca se completa.

Pensando bem, talvez essas pessoas sejam espaços em branco de algum álbum da minha vida.

Jânio Dias

sábado, 7 de março de 2009

Sim Sobre o Amor

imagem: cena da impressionante peça "Não Sobre o Amor", de Felipe Hirsch


“Drinking tea with the taste of the Thames
Sullenly on a chair on the pavement
Here you'll find
My thoughts and I
And here is the very last plea from my heart
My heart
Forevermore”

Morrissey, em Come Back To Camden


Se antes só, agora nem sei o que sentir.

Como explicar a você que quando lhe escrevo não são apenas meras palavras ao acaso que formam o desejo de querer estar ao seu lado? Como faço para que entendas que ao relatar a dor que me causa nossa distância, estou pedindo para que algum deus promova o milagre da aproximação de nossas moradas? Como posso mostrar-lhe que o exílio de seus olhos é como o nascimento de uma noite eterna sem amanhecer?

Estou proibido de falar sobre ele. Ela me proibiu. Não, ela não me pediu. Obrigou-me a não mais mencioná-lo em minhas linhas enviadas a ela. Ela só me recebe se eu não levá-lo comigo. Ela só me aceita se eu me desfaço dele. Ela só me rasga se eu não enviá-lo junto. Ela só me toca com seus dedos finos e alvos se eu não estiver vestido dele. Eu só posso estar com ela se ele não estiver mais comigo.

Mas sem ele sou vazio que enche o copo de ar que cega as lâminas da esperança.

Sem ele sou sede que arde as vias da garganta, que escurece o sol da boca e enrijece os lábios da doçura.

Sem ele sou água esparramada na terra que seca antes de ser bebida. Chuva que escorre deitada sem olhar de onde veio. Gota que não pesa para cair de sua folha.

Sem ele sou pingos que não se juntam.

Antes dele, antes que tomasse consciência de sua plenitude, de sua perfeição quanto ao estado de todas as coisas que nos cercam e nos dão forma, eu simplesmente não existia para mim mesmo. Eu não existia em mim, meus dedos e braços não tinham movimentos, meus joelhos não dobravam em minhas pernas, minha boca bocejava o sono da indiferença. Meu corpo não era matéria, minha alma não tinha intenções, minha índole era dispersa.

Antes dele as estrelas ainda não sorriam para mim.

Com ele sou parte de tudo que se move e agi. Interajo com os pássaros, dou comida aos gafanhotos, canto para os cisnes.

Com ele preencho as casas dos botões, pinto as unhas das luvas, laço com o cadarço ramos de sol.

Com ele acende-se em mim a chama que me desperta para o dia antes dos montes serem iluminados; que aquece o inverno de quando era criança; que incendeia a noite enquanto as sombras não vêm.

Com ele tenho alicerce para suportar arranhacéus em meus ombros.

Com ele sou vida e sonhos perto de você.

Você precisa entender que todas as palavras são sobre ele.

Todas as metáforas remetem a ele. Todos os adjetivos querem vesti-lo. Todos os espaços almejam cair em seu abismo. Todos os acentos anseiam sua ênfase. Todos os pontos esperam por sua continuação.

Todas as ruas se cruzam para segui-lo. Todas as curvas enrolam-se para deslizar em sua superfície. Todos os faróis noturnos querem suspendê-lo para vê-lo flutuar como pétalas levadas pelo vento e espalhadas no mar.

De dia os faróis descansam a amargura de desejos como o seu.

Todo choro e todo gozo são frutos e semente de seu domínio. Todo riso e todo calafrio são rompantes de seu surgimento. Toda angústia e toda calmaria são opostos que se alimentam de seus efeitos.

Toda loucura profunda é zelo com o objeto amado. Toda devoção é necessidade de amparo.

Ele é maior que sua recusa em me amar.

O que você não vê é que todas as saídas são fugas para encontrá-lo.

Jânio Dias

sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Caixa de Cartas

imagem: arquivo pessoal
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“Escrevo-te estas mal traçadas linhas meu amor
Porque veio a saudade visitar meu coração
Espero que desculpes os meus erros por favor
Nas frases desta carta que é uma prova de afeição”

Erasmo Carlos e Renato Russo, em A Carta


Era manhã tranqüila de sábado quando uma voz forte e alta veio do portão: Correio! Coloquei os chinelos e saí no quintal. Não havia ninguém lá na frente. Olhei para a caixa de correspondências e vi uma língua em sua boca. Parte de um envelope saltava para fora. Havia dias que eu não olhava para ela. As contas de água e luz se espremiam entre os extratos bancários e as ofertas da semana do hipermercado. Entre eles, havia um envelope amarelo, endereçado corretamente para mim, sem registro de remetente ou carimbo dos correios.

Fiquei alguns longos minutos olhando para ele, passando a mão em sua superfície ou levantando-o contra a luz. Estava intrigado com seu conteúdo e principalmente com sua origem. Mas sempre que ia abri-lo eu desistia e deixava-o sobre a mesinha de centro.

Passei a lembrar do meu gosto por cartas. Essa quase medieval forma de comunicação escrita entre as pessoas. Esse antigo modo de documentar a mão intenções e lembranças.

Quando fui alfabetizado minha mãe gostava de conversar em voz alta com minha avó e tias. Fazia saudações iniciais registrando a cidade, o dia, o mês e o ano em que estávamos. Em seguida perguntava como elas estavam, respondia as perguntas que haviam feito e depois contava pequenas novidades da semana. A cada quinze dias havia essa conversa virtual transmitida em papel pelos correios. Eu ia escrevendo tudo no papel de carta, um guardanapo perfumado para os olhos de quem recebia, uma toalha macia para a saudade de quem estava tão distante. Era um ritual quinzenal onde eu me esforçava para que a letra fosse a mais redonda e legível possível. Meus quase garranchos viravam carinhos nos dedos que conduzia a caneta. Cafunés nos intervalos entre a carta enviada e a próxima recebida. Suspiros pelos caminhos da espera. Sobrancelhas levantadas no coração de quem lia.

Quando adolescente os amigos conquistados sempre estiveram distantes fisicamente. Moravam em outras cidades, mas nada que uma simples viagem de uma hora de ônibus e de trem não nos deixasse próximos como o açúcar do café. Nada que um telefonema tarde da noite depois do futebol não nos tornasse vozes ao pé do ouvido convergindo segredos de liquidificador.

Mas eu havia pego gosto pelas missivas, pela caneta deslizando pelo branco das páginas, pelo pensamento flutuando pelo fino da linha, pela articulação e formação das frases. Pelo cheiro da cola e pela dobra em três partes da folha. Pela ida ao correio e a volta pra casa imaginando o amigo rasgando o envelope e preservando o selo. Gostava de escrever cartas para ficar perto do destinatário como letra dentro da palavra.

Escrevia cartas de amizade disfarçadas de declarações de amor. Escrevia cartas de amor vestidas de inocente amizade. Escrevia cartas que eram orações de continuidade do amor e da amizade.

Ainda hoje quando escrevo um e-mail para alguém estou de alguma forma escrevendo uma carta. Conservo o mesmo cuidado aprendido com a minha mãe na saudação como na despedida. Converso como se não nos víssemos há anos, exponho minha saudade retirada do exílio de nossas lembranças, despeço-me brevemente como se fossemos nos encontrar no próximo pôr-do-sol. Uma carta é para ser lida como um convite para o reencontro.

Quando estou no MSN estou exercitando os diálogos de uma carta onde os sorrisos não se beijavam simultaneamente.

Quando deixo um scrap no Orkut de alguém estou escrevendo um bilhete, uma espécie de pedaços de uma carta ligeira e simplória, mas com a única nobre intenção de saber do amigo e despertar sua atenção para mim.

Quando escrevo para o Blog estou secando uma carta em um varal público de idéias e sentimentos.

Escrever uma carta é molhar a língua em um poço de palavras e imagens que espelham o que você é.

Não resisti muito mais, já salivava com a alegria daquele envelope em minha frente, parado e lacrado a moda antiga, que ao pegá-lo para abri-lo, rasgando-o por um dos cantos, resolvi baixar as mãos, ir até o quarto e guardá-lo intacto em uma de minhas caixas de cartas.

Uma carta guardada é mais bela do que sua leitura.

Jânio Dias