sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Caixa de Cartas

imagem: arquivo pessoal
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“Escrevo-te estas mal traçadas linhas meu amor
Porque veio a saudade visitar meu coração
Espero que desculpes os meus erros por favor
Nas frases desta carta que é uma prova de afeição”

Erasmo Carlos e Renato Russo, em A Carta


Era manhã tranqüila de sábado quando uma voz forte e alta veio do portão: Correio! Coloquei os chinelos e saí no quintal. Não havia ninguém lá na frente. Olhei para a caixa de correspondências e vi uma língua em sua boca. Parte de um envelope saltava para fora. Havia dias que eu não olhava para ela. As contas de água e luz se espremiam entre os extratos bancários e as ofertas da semana do hipermercado. Entre eles, havia um envelope amarelo, endereçado corretamente para mim, sem registro de remetente ou carimbo dos correios.

Fiquei alguns longos minutos olhando para ele, passando a mão em sua superfície ou levantando-o contra a luz. Estava intrigado com seu conteúdo e principalmente com sua origem. Mas sempre que ia abri-lo eu desistia e deixava-o sobre a mesinha de centro.

Passei a lembrar do meu gosto por cartas. Essa quase medieval forma de comunicação escrita entre as pessoas. Esse antigo modo de documentar a mão intenções e lembranças.

Quando fui alfabetizado minha mãe gostava de conversar em voz alta com minha avó e tias. Fazia saudações iniciais registrando a cidade, o dia, o mês e o ano em que estávamos. Em seguida perguntava como elas estavam, respondia as perguntas que haviam feito e depois contava pequenas novidades da semana. A cada quinze dias havia essa conversa virtual transmitida em papel pelos correios. Eu ia escrevendo tudo no papel de carta, um guardanapo perfumado para os olhos de quem recebia, uma toalha macia para a saudade de quem estava tão distante. Era um ritual quinzenal onde eu me esforçava para que a letra fosse a mais redonda e legível possível. Meus quase garranchos viravam carinhos nos dedos que conduzia a caneta. Cafunés nos intervalos entre a carta enviada e a próxima recebida. Suspiros pelos caminhos da espera. Sobrancelhas levantadas no coração de quem lia.

Quando adolescente os amigos conquistados sempre estiveram distantes fisicamente. Moravam em outras cidades, mas nada que uma simples viagem de uma hora de ônibus e de trem não nos deixasse próximos como o açúcar do café. Nada que um telefonema tarde da noite depois do futebol não nos tornasse vozes ao pé do ouvido convergindo segredos de liquidificador.

Mas eu havia pego gosto pelas missivas, pela caneta deslizando pelo branco das páginas, pelo pensamento flutuando pelo fino da linha, pela articulação e formação das frases. Pelo cheiro da cola e pela dobra em três partes da folha. Pela ida ao correio e a volta pra casa imaginando o amigo rasgando o envelope e preservando o selo. Gostava de escrever cartas para ficar perto do destinatário como letra dentro da palavra.

Escrevia cartas de amizade disfarçadas de declarações de amor. Escrevia cartas de amor vestidas de inocente amizade. Escrevia cartas que eram orações de continuidade do amor e da amizade.

Ainda hoje quando escrevo um e-mail para alguém estou de alguma forma escrevendo uma carta. Conservo o mesmo cuidado aprendido com a minha mãe na saudação como na despedida. Converso como se não nos víssemos há anos, exponho minha saudade retirada do exílio de nossas lembranças, despeço-me brevemente como se fossemos nos encontrar no próximo pôr-do-sol. Uma carta é para ser lida como um convite para o reencontro.

Quando estou no MSN estou exercitando os diálogos de uma carta onde os sorrisos não se beijavam simultaneamente.

Quando deixo um scrap no Orkut de alguém estou escrevendo um bilhete, uma espécie de pedaços de uma carta ligeira e simplória, mas com a única nobre intenção de saber do amigo e despertar sua atenção para mim.

Quando escrevo para o Blog estou secando uma carta em um varal público de idéias e sentimentos.

Escrever uma carta é molhar a língua em um poço de palavras e imagens que espelham o que você é.

Não resisti muito mais, já salivava com a alegria daquele envelope em minha frente, parado e lacrado a moda antiga, que ao pegá-lo para abri-lo, rasgando-o por um dos cantos, resolvi baixar as mãos, ir até o quarto e guardá-lo intacto em uma de minhas caixas de cartas.

Uma carta guardada é mais bela do que sua leitura.

Jânio Dias

4 comentários:

Anônimo disse...

Vou mandar o comentário pelo correio! me manda seu endereço por email ;) rs bjs

Anônimo disse...

Um vestígio que lí ontem, do Machado de Assis, na fala do velho Aires, em 1888: "Entre outras cousas, estive a rasgas cartas velhas. As cartas velhas são boas, mas estando eu velho também, e não tendo a quem deixar as que me restam, o melhor é rasgá-las. Fiquei só com oito ou dez para reler algum dia e dar-lhes o mesmo fim. Nenhuma delas vale uma só das de Plínio, mas a todas posso aplicar o que ele escrevia a Apolinário: "teremos ambos o mesmo gosto, tu em ler o que digo, e eu em dizê-lo". Os meus Apolinários estão mortos ou velhos; as Apolinárias também."

Anônimo disse...

Belíssimo texto.
Também sou fã de cartas :D
Bjos,
Ly

Anônimo disse...

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