sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Veludo Azul

imagem: arquivo pessoal
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“Serei cortante como a lâmina da língua
Eu vivo à míngua do meu próprio ser
E vá crescer
Que eu sempre serei criança”

Los Porongas, em Não Há

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Ela disse enquanto eu dormia pela manhã ainda ausente de sol que a pele acima de meus ombros estava descascando. Respondi de olhos semi-fechados e embriagados de sono que estava apenas rejuvenescendo.

Quando criança minha mãe controlava rigidamente todos os meus passos. Fazia marcação homem a homem. Em qualquer mínima tentativa de driblar sua atenção para chutar a bola na rua, ela aparecia de trás da sombra do pé de amora para me trazer para o lado de dentro do portão. Qualquer mero esforço para ultrapassar a linha da grande área do quintal de casa e ela surgia como o quarto árbitro no futebol, mandando-me voltar para o banco. O controle era tanto que o amigo mais próximo é que tinha de ir em casa; o contrário só se ela fosse junto.

Durante certo período minha mãe passou a trabalhar fora e eu ficava na casa da vizinha que tinha filhos com idades não muito diferentes. Logo o dia passou a ser menor que os anteriores. Pela manhã a escola e a tarde o futebol no campinho de terra batida, ou a disputa no videogame concorrido do único amigo que tinha o brinquedo. Em outras tardes desenvolvíamos nosso senso de descobertas. O tempo voava e quando víamos já era quase noite. Voávamos juntos como pássaros sem identidade, sem pressa, sem motivos conscientes para pouso. Havia calma para crescer, noites inteiras para descanso, e os melhores aprendizados que aconteciam fora da sala de aula. A liberdade daquelas tardes me ensinava ruas de coisas novas.

Aprendi a explorar o lado de baixo da rua que dava na fazenda que existia do outro lado da rodovia, a perceber a diferença entre o barulho da água da cachoeira do da chuva sob as árvores; a saber diferenciar o pinho do fruto da pinheira, da goiaba branca da vermelha, do abacaxi da bromélia. Aprendi a caminhar sobre pedras azuis e me equilibrar no limo verde.

Aprendi a fazer um nunchaku com um cabo de vassoura e um pedaço de corrente do cachorro, e assim lutar como Bruce Lee. Aprendi que com uma caixa de madeira de frutas da feira era possível esculpir um carrinho de rolimã. Aprendi a pegar rabeira na caçamba do caminhão de areia para voltar para o alto da ladeira. Aprendi a guerrear sob o veludo do céu segurando um carretel de linha nas mãos. Aprendi a aprimorar a precisão de meus movimentos mirando nas bolinhas de gude adversárias. Aprendi a andar em grupo e distinguir quem era a minha turma. Aprendi a cumprir horários pois não podia chegar em casa depois da minha mãe.

Aprendi que quando nasce um bebê seu primeiro sorriso não é de olhos abertos. Aprendi que a inocência está na troca dos dentes. Aprendi que toda criança sabe contar uma história em preto e branco. Aprendi que a falta do pai é como a ausência da cor. Aprendi que coragem é a fraqueza de quem desafia o rio. Aprendi que inteligência é não duvidar dos limites do corpo. Aprendi que os amigos da infância não serão substituídos pelos da faculdade. Aprendi que quando uma menina diz que não quer ser beijada, é porque ela está pedindo o contrário. Aprendi que quando a mãe diz para ter cuidado na estrada é porque ela não quer que o filho cresça rápido demais.

Meninos não deveriam crescer. Um dia acordam e estão mais velhos. Descobrem o quanto fugaz é o sono da esperança.

Um dia pisam firme e não sentem mais o veludo do azul da infância.

Um dia a cor de mar profundo em dia claro fica turvo com sinais de tempestade. Um dia a maciez branda carregada de ternura fica áspera como uma esponja de aço.

Os dias ficam longos, permeados de coisas supostamente sérias, de gente grande que não pode adoecer. De momentos controlados como que pré-programados em computador. De justificativas travestidas de sucesso para aliciar o amanhã. De verdades frouxas que traçam os caminhos do hoje. De conjecturas dissimuladas que não correspondem à beleza do ontem.

Um dia o menino acorda e as flores que enfeitam o corredor são todas de plástico.

Um dia o menino vê que cresceu sem perceber; reconhece-se no espelho pelas imagens que ficaram para trás.

À noite quando ela voltou para casa comentou que minha mãe me proibiria de pegar tanto sol e me deu um protetor solar.

Disse que devo rejuvenescer com cuidado.

Jânio Dias

2 comentários:

Anônimo disse...

Post melhor que "O Curioso Caso de Benjamin Button" com "Wear Sunscreen"! :)

Anônimo disse...

Ehehe, o lado bom das "lembranças de uma outra vida". Muito bom. E vir aqui sempre é como sair do meu porão cinzento e empoeirado e respirar ar fresco, com aroma de grama e bons raios de sol. Abraço!