sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Música nos Silêncios

imagem: Angels playing the fiddle and pipe, c.1475-97, Francesco Botticini


“God only knows what I'd be without you”
'

Eu era só uma pequena melodia para os meus pais aos três anos de idade e já brincava de disco voador com os pequenos compactos de vinil que ficavam embaixo da vitrola. Desenhava bonequinhos sorrindo e casinhas de uma só janela com jardins cercados nas capas, uma simbólica representação feliz dos passeios no parque nos fins de semana. As ilustrações imperfeitas da família passeando junta era a minha forma de contar a eles que eu tinha uma banda. Brincar de passear era minha canção preferida.

Ainda pequeno eu ficava no quintal ouvindo à distância o som da vitrola enquanto minha mãe cuidava dos afazeres domésticos. Um olho no pé direito para chutar a bola, um ouvido no som que vinha de dentro da cozinha. Um olho no céu tentando antecipar o formato do bicho que a nuvem se transformaria, o outro ouvido na canção do Roberto que minha mãe entoava junto. Sobre a tampa de cimento do poço dois carrinhos duelando de bate-bate, na sala o silêncio do chiado do disco que precisava ser virado o lado. O chiado do vinil sempre foi como a respiração da canção.

O rádio quebrava o sossego dos cômodos depois da aula, enchia a casa de gente fazendo companhia para o menino que era filho único. Uma algazarra de novidades saltava dos alto-falantes, pulos de permissividade invadiam aqueles dias, sons completamente diferentes do que o braço da vitrola havia se acostumado emergiam de seu ventre. Blitz, Barão, Titãs... Eu fazia uma orgia nas fitas cassetes originais do meu pai gravando por cima, até que ele comprasse uma virgem só para meu prazer. O rádio levava para dentro da casa os primeiros amigos em forma de canções.

A música é uma amizade irrevogável. Ela está presente nos momentos mais doces tanto quanto nos mais ácidos. Ela está no almoço de domingo, na celebração do aniversário, no beijo da conquista, no alívio da formatura, no tesão dos sussurros escondidos, na tensão do casamento planejado; no nascimento do choro, no enterro do sono, na comemoração do campeonato, na bebida da religião, no rosto de quem nos despedimos, na alegria do reencontro, na memória passageira e permanente da ausência. A música é um amigo que não abandona.

A música foi minha ama em meu rebento. O meu choro ao nascer a trouxe para perto. O balançar do berço e os enfeites suspensos ao mosqueteiro serenavam meu adormecer. O balanço dos braços da minha mãe combinados ao assobio baixo de meu pai me fazia encontrar os sonhos. As canções de ninar ainda embalam a memória distante dos meus sonos.

A música é minha amante leal. Leva-me pra cama com olhos vendados. Confio nela como seu prisioneiro. Minha liberdade tem o sopro da entrega da melodia. Nossa respiração tem sucessão rítmica de intervalos diferentes. Nossos ouvidos absorvem sons em escalas ascendentes e descontínuas. Uma sucessão linear e incoerente de beijos que rompem os segredos do dia. Nossos olhos são versos em fuga, nossos cílios o contraponto na composição. Nossos corpos são como refrões em movimento dispostos a se repetir em qualquer lugar. Nosso amor é um improviso no caos de forma consentida.

A música me acalma, estreita a passagem de sangue dentro de mim. Diminuo o passo, encolho os joelhos, levanto os ombros e descanso o pescoço. Repouso a coluna no primeiro degrau para senti-la. Recolho a luz do ambiente para não ofuscá-la. Abro todas as janelas da casa para multiplicá-la. Eu dobro os anos vividos para ter estado presente onde a música aconteceu.

Eu trabalho sob música, eu me alimento com música. Sem música eu me disperso, fico vulnerável. Perco a concentração do copo, erro a direção da boca. O corpo fragiliza, as células se descompõem. A música é meu equilíbrio, meu anticorpo.

A música eleva o silêncio.

Jânio Dias

2 comentários:

Anônimo disse...

Sem música não vivemos e é explicar todo o meu amor por ela. Sem dúvida uma das melhores coisas da vida.

Beijos.

Renata disse...

"Música para ouvir"


Música para ouvir no trabalho
Música para jogar baralho
Música para arrastar corrente
Música para subir serpente
Música para girar bambolê
Música para querer morrer
Música para escutar no campo
Música para baixar o santo

Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir

Música para compor o ambiente
Música para escovar o dente
Música para fazer chover
Música para ninar nenê
Música para tocar novela
Música de passarela
Música para vestir veludo
Música pra surdo-mudo

Música para estar distante
Música para estourar falante
Música para tocar no estádio
Música para escutar rádio
Música para ouvir no dentista
Música para dançar na pista
Música para cantar no chuveiro
Música para ganhar dinheiro

Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir

Música pra fazer sexo
Música para fazer sucesso
Música pra funeral
Música para pular carnaval
Música para esquecer de si
Música pra boi dormir
Música para tocar na parada
Música pra dar risada

Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir

*Arnaldo Antunes*

Música para tudoooooooo! bjsss