terça-feira, 26 de maio de 2009

Tios e Tias

imagem: Gabriel, by Reinaldo Rabello


“Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!
Ié Ié!”

Pato Fu, em Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié!


Meu pai dizia que ser tio é fazer pose para retrato.

Ainda desconheço a experiência da paternidade. Não que eu não semeie e não deseje que germine, ao contrário. Sempre penso no assunto com a alegria de quem vive a expectativa de que se sabe que será presenteado; para só depois então lembrar de todo o universo de cuidados. Uma sensação de prêmio no horizonte de céu azul e cristalino, para momentos depois visualizar a pressão da responsabilidade carregada de nuvens indecifráveis.

Imaginar a possibilidade é sempre leve e agradável como a brisa de uma sombra em tarde de verão. Pensar na realidade às vezes pode ser denso como nevoeiro encobrindo a cidade nas manhãs de inverno.

O mais próximo que já estive da verdade, é que as incertezas desaparecem no primeiro contato com o vidro do berçário. Falo com a sabedoria da experiência de tio de fato e tio eleito.

Minha mãe conta que quando eu tinha nove anos, ainda filho único, chorei na frente de alguns parentes reivindicando um irmãozinho. Sensibilizei a todos e meus pais foram intimados a tomarem providências. Minha apreensão era a possibilidade de nunca ter um sobrinho; não ter ninguém de direito para me chamar de tio. E se algo de ruim acontecesse comigo, como ficariam? Um ano depois vinha ao mundo minha irmã, para no ano seguinte meu irmão. Eu ameacei meus pais com a crueldade da pureza.

Há três anos nasceu minha sobrinha Eduarda, um ruído rosa, toda cura para todo mal. Minha relação com ela é sempre o de tentar ser o que ela ainda não descobriu. Tentar antecipar o que seus pequenos olhos ainda não tocaram, o que suas mãozinhas ainda não morderam. Se o escorregador parece alto, vou até o meio do caminho para encurtar o medo, espero por seus pés em meus ombros para descermos juntos a continuação do brinquedo. Se o balanço parece um pedaço de tábua suspensa, ofereço meu colo e o apoio do meu braço sobre sua cintura enquanto deslizamos para trás e para frente. Se o mar de bolinhas de plástico parece engoli-la, eu me afogo primeiro para que ela perceba que também dependo dela para emergir. Minha sobrinha é o endereço do afago.

Depois dela virei tio de consideração do João Pedro, filho encantador com cara de desenho animado da querida amiga Eneida. Ele deve ter me visto umas duas vezes apenas, no dia seguinte ao seu nascimento e talvez um ano depois. Minha amiga sempre lembra de que ele ainda tem o presentinho dado por mim, um travesseirinho que também vira um cachorrinho, e que por muito tempo foi seu preferido para fechar os olhos e adormecer o sono dos inocentes. Tê-lo visitado menos de 48 horas após ter nascido foi definitivo para senti-lo como sobrinho. Um irmão também se faz de estima.

Há nove meses atrás fiquei sabendo que seria outra vez tio; outra vez seguindo os trilhos vicejantes do afeto e da amizade. Meu querido amigo de infância Reinaldo e sua esposa Emanuela estavam grávidos.

A notícia dada num almoço arquitetado por ambos na cozinha de casa foi como a explosão de um gol de desempate aos 44 minutos do segundo tempo. Abri imediatamente uma garrafa de Tequila estrategicamente guardada para algum evento extraordinário e festejamos a alegria da conquista. Tamanha vibração tinha muitos motivos para existir, desde o desejo recíproco do casal ao histórico de tentativas; desde o sonho do matrimônio à realização da vida a dois. Havia ali a semente do fruto da renovação do amor.

Nesse último fim de semana, de forma programada, o pequeno Gabriel nos deu a graça de seus lentos movimentos ainda sonolentos. Enquanto o papai Reinaldo superava no centro obstétrico seus bloqueios emocionais relativos a seringas, instrumentos cirúrgicos e sangue, toda uma torcida de familiares e amigos se organizava no café da maternidade ao redor de uma mesa em frente a uma moderna televisão gigante a espera da primeira imagem de um neném com sobrenome Rabello. Mais de uma hora depois, a audição da vinheta avisava da exibição de um novo bebê na telona, ilustrada por uma animação com uma simpática cegonha munida de GPS. Era o menino Gabriel todo exposto, sem roupa, mas sem chorar, forte, sadio e já querido.

Excluindo as avós, todas as outras pessoas vibravam o jubilo de se sentirem tios e tias. E todos queriam seu registro exclusivo do tempo.

Meu pai tinha razão, ser tio é sair na foto da festa.

Ser tio revela uma alegria imensa.

Jânio Dias

domingo, 17 de maio de 2009

Doce Vida

imagem: Still Life with Sky Element, 1995, Alan Kingsbury


“A fome tem uma saúde de ferro
Forte, forte como quem come”

Nação Zumbi, em Fome de Tudo


Eu tenho fome de tudo que se move. Eu tenho fome de tudo que derrama. Tenho fome de tudo que é calor; fome de tudo que molha; fome de tudo que ainda posso tocar com o repouso dos cílios. Tenho fome de tudo que cativa o afeto da retina.

Eu tenho fome do tempo em que minha mãe me levava para a escola. Tenho fome do tempo em que meu pai me buscava na escola. Tenho fome do bordado que desenhava meu nome no boné. Tenho fome de vender geladinho frente ao portão de casa. Tenho fome de juntar moedinhas para comprar doce na venda do seu Osmar. Tenho fome da coleguinha que me ajudava a amarrar o cadarço do tênis no prézinho. Tenho fome da professora Edna que me ensinou a cantar o alfabeto. Tenho fome de escorregar no pátio de mãos dadas. Tenho fome dos meninos mais velhos que conversavam sobre Star Wars. Tenho fome do gramado do outro lado da janela da sala de aula. Tenho fome da merenda da dona Lourdes. Tenho fome das gincanas das festas juninas. Tenho fome das danças com as meninas mais altas. Tenho fome dos pedidos de prendas nas portas das casas. Tenho fome do balanço improvisado entre o pé de abacate e o pé de manga. Tenho fome dos álbuns de figurinhas incompletos. Tenho fome de bater e trocar figurinhas. Tenho fome do cheiro da terra vermelha da estrada. Tenho fome de brincar de fazer lama atrás do quintal. Tenho fome das unhas compridas que ajudavam no momento de jogar bolinha de gude. Tenho fome da minha coleção de bolinhas. Tenho fome de fazer cerol escondido da minha mãe. Tenho fome da linha corrente 10. Tenho fome do vento que me fazia senhor do céu. Tenho fome de disputar a posição de melhor goleiro com meu amigo Carlinhos. Tenho fome dos chutes precisos do meu amigo Jefferson. Tenho fome das bolas de plásticos que furavam nos espinhos do limoeiro. Tenho fome de falar sobre a seleção brasileira com minha vizinha Renata. Tenho fome dos filmes de Bruce Lee. Tenho fome do meu cachorrinho Lulu. Tenho fome da comida da dona Geralda. Tenho fome da esperteza da Simone que cuidava de mim. Tenho fome das roupas curtas da Jacqueline que também cuidou de mim. Tenho fome da Solange que visitava a minha mãe. Tenho fome das visitas em noites de quarta-feira do tio Antonio. Tenho fome dos chocolates que meu pai comprava no trem. Tenho fome da pressa de vê-lo chegar em casa com alguma surpresa. Tenho fome da falta de sua presença. Tenho fome da bicicleta que nunca consegui impor o equilíbrio. Tenho fome dos quadrinhos que me eram proibidos. Tenho fome dos gibis que os amigos liam. Tenho fome das rádios AM que minha mãe ouvia e tocavam rock nacional. Tenho fome dos programas de TV que repetiam tanta novidade. Tenho fome do gosto de descobrir o estranho para meus pais. Tenho fome de estudar na mesma rua de casa. Tenho fome da barraquinha de doces do seu Ezequiel. Tenho fome da coleção de livros Vaga-Lume. Tenho fome da postura sensual da professora Vera Lúcia. Tenho fome das incitações políticas da professora Jurema. Tenho fome das letras das canções que despertava furor juvenil. Tenho fome do eu romântico das canções em primeira pessoa. Tenho fome das aulas de educação física do professor João Seleção. Tenho fome das competições de futebol de salão. Tenho fome das tardes rumo à cachoeira. Tenho fome do andar despreocupado pela rodovia com a camiseta enrolada na cabeça. Tenho fome dos bailinhos da oitava série. Tenho fome da troca do futebol pelo basquete. Tenho fome das manhãs de domingo indo de casa em casa para juntar o pessoal para jogar basquete. Tenho fome dos cafés da tarde na casa da Dona Sônia. Tenho fome da falta de fotos com os meus irmãos pequenos. Tenho fome das conversas sobre paixão com o amigo Alves. Tenho fome das discussões sobre o que é a vida com o amigo Sidnei. Tenho fome dos encontros e debates musicais com o pessoal do fã-clube da Legião. Tenho fome da astúcia concreta do Márcio. Tenho fome da maturidade precisa da Luzia. Tenho fome do encantamento radiante da Alcina. Tenho fome da sabedoria critica da Claudinha. Tenho fome dos shows que não vimos juntos. Tenho fome das bandas de Seattle. Tenho fome do Nirvana em São Paulo. Tenho fome de Caio Fernando Abreu. Tenho fome dos Amigos eleitos. Tenho fome das nossas reuniões. Tenho fome das nossas leituras. Tenho fome das nossas preocupações. Tenho fome de nossas ansiedades. Tenho fome de nossas conquistas. Tenho fome de nossas ilusões. Tenho fome das cartas enviadas. Tenho fome das respostas recebidas. Tenho fome do pulo sobre o muro do trem para atravessar a cidade. Tenho fome das flores roubadas para presentear no aniversário. Tenho fome de não ter tentado outra faculdade. Tenho fome de não ter experimentado um caminho diferente. Tenho fome do primeiro sólido amor. Tenho fome dos planos de voo. Tenho fome das asas que alcançaram o céu. Tenho fome da beleza que aconteceu.

Tenho fome de tudo que queima; fome de tudo que vira bolha; fome de tudo que derrete. Tenho fome de cicatriz.

Tenho fome de tudo que se espalha em minha memória. Fome dos vestígios que modulam o despertar dos dias. Tenho fome de tudo que se prendeu às lâminas escorregadias do coração.

Minha fome não é urgente, não é ávida; às vezes nem necessária. Minha fome é apenas sentida com os lábios da mordaça.

Minha fome é um pedaço de inveja da pureza que se disfarçou de gente adulta. Minha fome é um meio arrependimento daquilo que se hesitou viver com vigor. Minha fome é orgulho travesso no prato do ontem.

Fome é uma lembrança repentina que nos visita. Fome é uma saudade que ainda não passou.

Jânio Dias

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Terceira Criança

imagem: Yellow Field, Kedleston, Derby by Andrew Macara


“Eu posso sentir o que a paixão faz em segundos
Eu posso sentir o que o amor fez depois de anos”

Os Paralamas Do Sucesso, em Scream Poetry


Ela insistiu para que eu fosse atrás de uma antiga
lenda que falava sobre duas crianças, um menino e uma menina. A primeira chamava-se Amor e a segunda Loucura. Eram muito amigas, cresciam juntas, quase que inseparáveis. Amor era gentil, terno, compreensivo; Loucura era passional, impulsiva e emotiva. Não se sabe por que, mas um dia ambos brigaram violentamente, a ponto de Loucura arrancar os olhos de Amor.

Ela não quis me responder por que eu devia procurar essa narrativa. Além de muito bonita, será que ela queria me mostrar algo mais? Fui deitar pensando que talvez quisesse que eu me identificasse com uma das crianças; ou será que queria que eu lhe dissesse qual das pequenas criaturas era ela?

Antes de o sono adormecer as pálpebras, suspeitei que um terceiro elemento pudesse estar entre o amor e a loucura.

Tudo começa com um encantamento terno de querer bem, de muita gentileza e simpatia, para depois passar a um estado de alta intensidade, de calor ardente, de grande entusiasmo, que tende às vezes a se transformar em afeto dominador de quase obsessão. Acho que chamo isso de sentimento de estar apaixonado.

Um antigo professor dizia que paixão é amor e loucura destituída dos olhos frios da razão.

Já fiz muitas coisas ausentes de razão quando apaixonado. Já acordei muito cedo para esperar a colega da escola embaixo de uma árvore em frente a sua casa numa manhã de chuva. Já confidenciei a um amigo que gostava da menina que ele queria namorar. Já dormi várias vezes na rodoviária depois de ter perdido o último ônibus quando voltava da casa de uma namorada que morava em outra cidade. Já rabisquei poemas cujos traços não tiveram cópias guardadas comigo porque eram exclusivos das meninas que os receberam. Já quase capotei o carro em uma curva porque estava atrasado para um encontro. Será que eu era Amor ou Loucura nesses acontecimentos?

Talvez apenas um doce e extremo estado de arrebatamento.

Quando me apaixono os olhos se abrem num clarão que suspende o corpo inflado de meu ego. Bóio em suspenso repouso no aguardo do despertar do próximo contato.

Acordo entusiasmado com o sol que ainda não nasceu. Preparo meu próprio café e ofereço parte às flores do quintal da casa. Só o jardim do próprio lar entende uma madrugada de despertar apaixonado.

Canto com o bem-te-vi pousado próximo ao pé de amora uma canção de bem querer. Sou um pássaro cuja garganta conversa com as folhas que se espalham pelo chão. Sou amigo do vento que dispersa as sementes do trigo.

Cuido do cabelo como se uma foto 3x4 sempre rejuvenescesse. Proíbo o crescimento dos pelos do rosto para que a pele deslize suave como roupa de veludo. Aliso a camisa como que engomasse o próprio corpo com o ferro de passar. Compro um perfume novo para beber como licor que marca a refeição. Eu me visto para desabotoar o vestido do desejo.

Quando apaixonado eu não visualizo a profundidade do rio, não reparo a intensidade das águas. Não enxergo o presente próximo das margens opostas, ignoro o passado de seu leito, não distancio o futuro da nascente.

Eu não reparto as horas, não devolvo os minutos que me antecederam. Enfureço-me se não fui avisado, espumo pelas orelhas se não fui compreendido. Eu sou o joio no beijo se não sinto reciprocidade na verdade. Quando apaixonado eu queimo o tempo do plantio.

A paixão não explica o ser. Ela estabiliza a imperfeição de sermos o que nunca temos.

Não consegui saber se o que ela queria era questionar qual das duas crianças eu sou. Mesmo assim deixo aqui minha resposta: sou a terceira. Eu sou Paixão.

Ainda intrigado insisti para saber por que achava que eu tinha de ter contato com essa estória. Disse-me apenas que certas manhãs não podem ser apagadas do coração.

Jânio Dias

domingo, 3 de maio de 2009

O Coração e o Compromisso

imagem: Love Icon, by Thisisnotme


“Eu já fui seu namorado
Por isso ela me chamou
Para que eu fosse testemunha dessa história
Que seja linda como um dia foi a nossa”

Nenhum de Nós, em Paz e Amor


Ela estava três degraus e alguns metros distante de mim em um show de uma querida banda gaúcha. Não a reconheci imediatamente, precisei de alguns longos e silenciosos segundos para confirmar junto à retina a imprecisão da imagem calada em meus olhos. Estávamos tão distantes de nossas moradas que seria improvável um encontro casual ali, um lugar tão remoto em meio a centenas de pessoas.

Minha namorada me questionou quem era. Expliquei que achava se tratar de uma antiga amiga. Pedi ajuda no reconhecimento ao velho amigo ao lado que, por sua vez, consultou a esposa. Eles concordaram com minhas suspeitas. Continuei olhando para a menina que tinha cabelos vermelhos quando da última vez que a vi na expectativa que também me olhasse. Fui incentivado para ir até lá, mas a menina estava acompanhada de dois rapazes. Desconfiei que eles pudessem não entender minha abordagem suspeitamente tão cordial e quase íntima. Puxei minha namorada pelo braço e descemos os degraus. Chegando próximo, ela virou o rosto e me sorriu surpresa num abraço contente como se eu fosse um brilho de sol que surge de repente por cima das nuvens.

Apresentou-me seu namorado e o outro rapaz (minha memória é péssima para nomes, para possível grau de parentesco então...). E me contou radiante como girassol na primavera que irá se casar em novembro desse ano.

Casamento na igreja, abençoado pelo padre e legitimado pelas leis da igreja e do homem. Com vestido branco, festa, bolo e brigadeiro.

Balancei os lábios num misto de admiração e tentativa de demonstrar meu contentamento. Meu sorriso procurava ser o reflexo de sua alegria.

Acontece que nunca fui fã da idéia tradicional do matrimônio. Sempre fui um rebelde anti-união conjugal oficializada. Sempre achei mais belo a união descompromissada das regras da sociedade; sempre achei mais intenso o compromisso do coração. Sempre defendi o estandarte da paixão continuada: a cada aniversário de namoro os votos do amor são renovados.

Minha visão de relacionamento começa na liberdade de gostar de estar junto, e na possibilidade de escrever sozinho parte do próprio tempo.

Eu gosto do namoro que se despede no portão no início do fim de semana. Do horário de voltar pra casa com a sensação de que preferiria que ela estivesse comigo dividindo o mesmo colchão. Da preocupação de buscá-la em casa no dia seguinte no horário combinado. Do passeio de mãos dadas separados pelo saco de pipoca no cinema. Da volta para a casa dela e dos beijos escondidos na cozinha enquanto preparamos o lanche do fim de noite. Das almofadas do sofá e do brilho da luz acesa vinda do quarto dos pais supostamente avisando que ainda estão acordados enquanto fingimos assistir televisão na sala. Gosto do início da semana que provoca a vontade de estarmos juntos outra vez. Gosto do afastamento que desperta a falta de estar perto. Gosto de namorar para cortejar a paixão.

Eu prefiro não fazer planos e deixar fluir a intenção de querer estar um com o outro. Eu prefiro revezar os finais de semana na minha casa ou na casa dela a ter de precipitar a procura por um abrigo para os dois. Prefiro ter e dar uma toalha, um sabonete, uma escova de dentes e a liberdade de abrir a geladeira sempre que quiser na casa dela ou na minha. Prefiro primeiro que ela se sinta parte da minha família e eu aceito pela dela antes de isolarmos nossos corpos em um só. Eu prefiro descobrir nossas afinidades provocando nossas inconsistências.

Acho que antes de se optar pela união com alguém é preciso se desvencilhar das asas da criação doméstica, do conforto maternal. É preciso casar-se consigo mesmo por um tempo; sair de casa e experimentar noites solitárias sem ter por quem chamar após um sonho ruim. É preciso aprender a não queimar o próprio arroz e lavar a louça que estraga a pintura das unhas. É preciso acostumar-se por um tempo com a fala solitária da televisão e com a luz de emergência da geladeira avisando que a verdura estragou. É preciso aprender a separar as cores da roupa no momento de lavar e descobrir a coragem escondida em cada dobra amassada na hora de passá-las. Gostar da companhia muda dos livros; dançar a música invisível dos dedos das mãos. É preciso viver o exercício de ter sido só antes da experiência da divisão conjugal.

Depois é só convida-la para ficar algumas noites. Passar a dividir os lençóis e os planos do fim de semana. Ir juntos ao mercado e deixa-la sugerir o molho para o macarrão. Esvaziar uma gaveta do guarda roupas só para ela. Dispensar a moça da limpeza quinzenal e compartilhar as tarefas domésticas com ela. Assistir mais comédias românticas do que filmes de aventura. Ouvir sem criticar a cantora solo preferida dela. Dobrar o número de porta retratos da sala com fotos dos dois. Convidar casais de amigos para almoçar em casa. Não deixar a mãe se intrometer na sua alimentação porque agora esse assunto é de casal. Fazer planos para aumentar o pacote de opções da tv a cabo e trocar a geladeira por uma que não favoreça o aquecimento global. Desenhar a possibilidade de se criar um cachorro ou atualizar o modelo do carro. Deixar sempre em aberto a discussão do nome perfeito para o bebê. Viver a dois é abraçar a insegurança de um novo mundo.

Eu acredito que relacionamento é a harmonia de dois corpos de tamanhos e gestos diferentes. Sinceridade é não magoar todas as verdades; lealdade é merecer confiança e não cobrar segurança do outro; compromisso é a cumplicidade de viver uma vida serena. Casamento é aperfeiçoar o convívio da felicidade almejada.

Eu acredito na paixão como fogo que deve ser reacendido todos os dias da manhã. Eu acredito no desejo do olhar de quem come com fome de não deixar partir.

Ela acredita nos rituais do passado. E será feliz da mesma forma.

Jânio Dias