domingo, 3 de maio de 2009

O Coração e o Compromisso

imagem: Love Icon, by Thisisnotme


“Eu já fui seu namorado
Por isso ela me chamou
Para que eu fosse testemunha dessa história
Que seja linda como um dia foi a nossa”

Nenhum de Nós, em Paz e Amor


Ela estava três degraus e alguns metros distante de mim em um show de uma querida banda gaúcha. Não a reconheci imediatamente, precisei de alguns longos e silenciosos segundos para confirmar junto à retina a imprecisão da imagem calada em meus olhos. Estávamos tão distantes de nossas moradas que seria improvável um encontro casual ali, um lugar tão remoto em meio a centenas de pessoas.

Minha namorada me questionou quem era. Expliquei que achava se tratar de uma antiga amiga. Pedi ajuda no reconhecimento ao velho amigo ao lado que, por sua vez, consultou a esposa. Eles concordaram com minhas suspeitas. Continuei olhando para a menina que tinha cabelos vermelhos quando da última vez que a vi na expectativa que também me olhasse. Fui incentivado para ir até lá, mas a menina estava acompanhada de dois rapazes. Desconfiei que eles pudessem não entender minha abordagem suspeitamente tão cordial e quase íntima. Puxei minha namorada pelo braço e descemos os degraus. Chegando próximo, ela virou o rosto e me sorriu surpresa num abraço contente como se eu fosse um brilho de sol que surge de repente por cima das nuvens.

Apresentou-me seu namorado e o outro rapaz (minha memória é péssima para nomes, para possível grau de parentesco então...). E me contou radiante como girassol na primavera que irá se casar em novembro desse ano.

Casamento na igreja, abençoado pelo padre e legitimado pelas leis da igreja e do homem. Com vestido branco, festa, bolo e brigadeiro.

Balancei os lábios num misto de admiração e tentativa de demonstrar meu contentamento. Meu sorriso procurava ser o reflexo de sua alegria.

Acontece que nunca fui fã da idéia tradicional do matrimônio. Sempre fui um rebelde anti-união conjugal oficializada. Sempre achei mais belo a união descompromissada das regras da sociedade; sempre achei mais intenso o compromisso do coração. Sempre defendi o estandarte da paixão continuada: a cada aniversário de namoro os votos do amor são renovados.

Minha visão de relacionamento começa na liberdade de gostar de estar junto, e na possibilidade de escrever sozinho parte do próprio tempo.

Eu gosto do namoro que se despede no portão no início do fim de semana. Do horário de voltar pra casa com a sensação de que preferiria que ela estivesse comigo dividindo o mesmo colchão. Da preocupação de buscá-la em casa no dia seguinte no horário combinado. Do passeio de mãos dadas separados pelo saco de pipoca no cinema. Da volta para a casa dela e dos beijos escondidos na cozinha enquanto preparamos o lanche do fim de noite. Das almofadas do sofá e do brilho da luz acesa vinda do quarto dos pais supostamente avisando que ainda estão acordados enquanto fingimos assistir televisão na sala. Gosto do início da semana que provoca a vontade de estarmos juntos outra vez. Gosto do afastamento que desperta a falta de estar perto. Gosto de namorar para cortejar a paixão.

Eu prefiro não fazer planos e deixar fluir a intenção de querer estar um com o outro. Eu prefiro revezar os finais de semana na minha casa ou na casa dela a ter de precipitar a procura por um abrigo para os dois. Prefiro ter e dar uma toalha, um sabonete, uma escova de dentes e a liberdade de abrir a geladeira sempre que quiser na casa dela ou na minha. Prefiro primeiro que ela se sinta parte da minha família e eu aceito pela dela antes de isolarmos nossos corpos em um só. Eu prefiro descobrir nossas afinidades provocando nossas inconsistências.

Acho que antes de se optar pela união com alguém é preciso se desvencilhar das asas da criação doméstica, do conforto maternal. É preciso casar-se consigo mesmo por um tempo; sair de casa e experimentar noites solitárias sem ter por quem chamar após um sonho ruim. É preciso aprender a não queimar o próprio arroz e lavar a louça que estraga a pintura das unhas. É preciso acostumar-se por um tempo com a fala solitária da televisão e com a luz de emergência da geladeira avisando que a verdura estragou. É preciso aprender a separar as cores da roupa no momento de lavar e descobrir a coragem escondida em cada dobra amassada na hora de passá-las. Gostar da companhia muda dos livros; dançar a música invisível dos dedos das mãos. É preciso viver o exercício de ter sido só antes da experiência da divisão conjugal.

Depois é só convida-la para ficar algumas noites. Passar a dividir os lençóis e os planos do fim de semana. Ir juntos ao mercado e deixa-la sugerir o molho para o macarrão. Esvaziar uma gaveta do guarda roupas só para ela. Dispensar a moça da limpeza quinzenal e compartilhar as tarefas domésticas com ela. Assistir mais comédias românticas do que filmes de aventura. Ouvir sem criticar a cantora solo preferida dela. Dobrar o número de porta retratos da sala com fotos dos dois. Convidar casais de amigos para almoçar em casa. Não deixar a mãe se intrometer na sua alimentação porque agora esse assunto é de casal. Fazer planos para aumentar o pacote de opções da tv a cabo e trocar a geladeira por uma que não favoreça o aquecimento global. Desenhar a possibilidade de se criar um cachorro ou atualizar o modelo do carro. Deixar sempre em aberto a discussão do nome perfeito para o bebê. Viver a dois é abraçar a insegurança de um novo mundo.

Eu acredito que relacionamento é a harmonia de dois corpos de tamanhos e gestos diferentes. Sinceridade é não magoar todas as verdades; lealdade é merecer confiança e não cobrar segurança do outro; compromisso é a cumplicidade de viver uma vida serena. Casamento é aperfeiçoar o convívio da felicidade almejada.

Eu acredito na paixão como fogo que deve ser reacendido todos os dias da manhã. Eu acredito no desejo do olhar de quem come com fome de não deixar partir.

Ela acredita nos rituais do passado. E será feliz da mesma forma.

Jânio Dias

10 comentários:

Anônimo disse...

E vai por mim, amigo: "casar consigo próprio" não é mole não. Mas fortalece pacas. Quem sabe até ajuda a criar forças para o que manda executar as leis dos homens (e da vaidade feminina) mas, como você e como cantava o Lennon, ainda gosto da pegada "free as a bird". Às vezes com asas curtinhas ou pousado num ninho quentinho de amor, mas também gosto de ser condor e alçar vôos altos, sozinho. Abração!

PS.: Sim, ainda ouço rádio, só que com um apito de fundo eternamente embutido.

Maria disse...

Às vezes ela acredita nas mesmas coisas que vc, mas está certa (por hoje) que será com uma pessoa só. Rituais tem seu valor, liberdade absoluta são mais leves... o certo é enconrar quem deseja o mesmo. Aí dá pra ser feliz de qualquer forma. Meu beijo

Verônica disse...

Eu concordo com você e também prefiro a idéia de casamento no século XXI.

Mas como vc disse, ela será feliz da mesma forma. Respeitemos as opções.

Beijos.

Adriano disse...

Jânio,

Gostei muito do seu texto. Muito poético, muito agradável de se ler. As analogias que você constrói, os detalhes que você vai pinçando do cotidiano de nossas vidas são simplesmente inspiradores.

Respeito muito sua opinião, seu estilo e preferências ao relacionar-se. É muito bonito quando você termina o texto admitindo que ela será feliz da mesma forma, mas, devo dizer que discordo da opinião de muitos que relacionam o casamento a uma mera e cansativa rotina.

Sou casado no civil, não casei no religioso, mas, esta formalização do compromisso não foi apenas uma questão de papéis, na verdade, já havia sido completamente formalizado dentro de nossos corações.

Ser casado, da forma tradicional, também pressupõe uma grande dose de romantismo e poesia diárias para dar certo; pressupõe a eterna conquista do dia-a-dia, o renovar do amor e da paixão, a cada dia, pela mesma pessoa.

Se muitos casamentos não dão certo, não é culpa da instituição em si mesma e sim dos sentimentos muitas vezes confusos que habitam os corações destes falíveis seres humanos.

Um forte abraço.

Adriano.

Jânio Dias disse...

Oi, Edilson! É amigo, eu prefiro esse desenho, do pássaro que canta solitário, monocromático como seu blog, mas vive a intensidade de insistir em pintar as flores dos dias “com o nome de amor-perfeito” . Grande abraço!

Oi, Maria! Só por hoje eu sei que seguiria qualquer ritual que ela quisesse. Beijo!

Oi, Vê! Respeito todas as opções. “Toda forma de amor vale a pena, toma forma de amor valerá” Beijos!

Oi, Adriano! Eu concordo com você: casamento não pode ser uma cansativa rotina, não pode virar obrigação. Casamento é prazer da divisão de uma vida conjunta. Eu casei com todas as minhas namoradas; apenas não dormia junto todas as noites. E é lindo tratar a formalização desse evento como prova do amor existente; sábio é tratá-lo como poesia diária. Um grande abraço!

Unknown disse...

Amigo Jânio, o Amor não tem parâmetros, regras, fórmulas mágicas nem nada disso! Tudo pode acontecer e as formalidades dependem de cada casal, não são a meu ver relevantes porém talvez eu passe por isso também algum dia, e apesar de ser Espírita farei tudo dentro dos ritos Católicos! O importante é o respeito e o carinho prevalecerem no dia a dia.
Aproveito para desejar toda sorte do mundo a querida Amiga e ao seu sortudo companheiro, rsssssssssssss...e espero ser convidado para a festa, bolo e brigadeiro!

Gabi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabi disse...

Jânio querido, falo com a experiência de quem ja passou por dois casamentos: o primeiro foi baseado nas leis do homem e na lei de deus, mas eu era jovem e ainda me importava com a opinião alheia. Até com a opinião de deus. O resultado foi que tudo terminou mal.
A segunda união foi feita com papéis vindos de dois paises, apos a noiva ateia ter atravessado um oceano pra se perder nos abraços do francês budista.
Fizeram uma flor em forma de bebê, passaram quase 2 anos tentando fazer amor no sofa da sala para que a pequena pudesse dormir sono de neném. Colocaram a filha no quarto dela e agora, tempos depois, experimentam a redescoberta do leito conjugal e do corpo um do outro.
Amar é bom.

Bité disse...

Sempre temi que os compromissos, nomes, ritos, formalidades, convenções, classificações etc., viessem antes do relacionamento em si, ou a ele se sobrepusessem. Mas desde que ele esteja baseado em coisas boas, saudáveis, como bem-estar, amor e liberdade, e esses valores sejam uma prática, trabalho, constantes, realmente, cabe a cada par decidir como convém.

Belo texto.


Abraço!

Jânio Dias disse...

Oi, Marcelão! Pois é... Acho que o texto tem essa pretensão de dizer que tanto faz a forma escolhida para as pessoas ficarem juntas. A única coisa realmente relevante é o amor. E claro, todo amor que houver nessa vida para nossa Amiga. Grande Abraço!

Oi, Gabi! Que grata surpresa você aqui. Isso me deixa muito feliz. E que depoimento lindo! Essencial é amar. Beijão!

Oi, Bruno! Sempre tivemos visões parecidas. A liberdade para o amor é “um passarinho pousado no dedo” . Sempre saberemos que ele não vai estar ali para sempre. Abração!