domingo, 26 de abril de 2009

Futebol: Um Lampejo Poético

imagem: luiz braga - futebol no rio, 1998

“Foi um gol de anjo
Um verdadeiro gol de placa
E a galera agradecida assim cantava”

Jorge Ben Jor, em Filho Maravilha


Neste campeonato Paulista de 2009, meu time de futebol foi sumariamente executado com duas derrotas nas semifinais. O time da minha querida amiga Allcina também. E mesmo antes do segundo jogo de seu time, ela já me avisava que sabia com a antecedência de quem enxerga o jogo com os olhos da admiração, que teria de encarar o gosto azedo da eliminação. E me questionou se eu achava que futebol e poesia podiam ter alguma relação.

Tenho uma grande paixão por futebol. Sou desses que para em frente a TV e assiste qualquer jogo que estiver passando apenas para aguardar o momento impreciso de um lance que gera uma jogada improvável que conduz ao inesperado. Um jogo de futebol é uma colcha de surpresas costurada por detalhes inconstantes e imprevisíveis.

O que para uma mulher é visto como repetição, dezenas dos mesmos pontos de crochê sem formar desenho algum, para o homem é a arte da espera em diferentes níveis para se chegar ao momento sublime: o gol.

Sou torcedor do tipo que torce três vezes: para o meu time ganhar, contra o adversário direto do meu time no campeonato, e a favor de qualquer um que jogue diante do nosso histórico arqui-rival. Torcer é não descansar o olhar curioso e praguejador sobre os outros times.

Se deixarem, sou capaz de acordar no domingo pela manhã para ver alguma partida do campeonato italiano e emendar partidas sucessivas até o final da noite pelos canais de esporte. E quando não há uma transmissão ao vivo, sempre há o VT de alguma partida ou a tradicional mesa redonda de debates intermináveis. E no dia seguinte as partidas recomeçam novamente nas bocas e gozações dos colegas de trabalho. O que convêm dizer que uma partida de futebol nunca termina quando o juiz encerra o jogo. Uma partida de futebol começa quando o torcedor põe em dúvida a imagem precisa do vídeo tape.

Eu me tornei torcedor de futebol pelas linhas brancas da tristeza. Quis o destino que a primeira vez que eu me interessei por um campeonato a camisa escolhida não o vencia há dez 10 anos. E justamente quando tudo parecia caminhar para o fim do jejum, eis que a equipe perde a partida final, e em casa. Na manhã seguinte na escola todos os comentários eram para a incrível derrota de um grande time da capital para um pequeno do interior. Acho que esqueci de torcer por algum tempo para repensar a alternativa feita, mas o coração já havia substituído o vermelho de suas batidas e pulsava o som da vida em tons alviverdes. Ser torcedor na derrota é secar a lágrima salgada da esperança com a manga curta da fé.

Como praticante, eu nunca tive habilidade para me destacar em campo. Meu pé direito nunca me ajudou muito, ele sempre foi ligeiramente aberto para fora, quase uma reta transversal, um diferencial que ao contrário dos joelhos tortos de Garrincha, sempre me provocaram certo desequilíbrio em campo e indefinição no momento do chute. Quando me esforçava para chutar no canto direito do goleiro, a bola ia no meio. Se tentava o esquerdo, ia para fora. Se tentava o meio, ela ia para o alto. Bem por isso eu sempre fui melhor aproveitado no gol. Mas logo surgiu a miopia e ficar embaixo das traves de óculos nunca foi permitido. E mesmo com a falta de sorte e aptidão física para o esporte, minha infância sempre acordava ou dormia com uma bola aos pés da cama. A bola trazia a alegria da imaginação para dentro do quarto. Sonhos de menino que driblavam a falta de cores da televisão. A bola sozinha era uma contadora e pescadora de histórias.

Quase todo dia a tarde os meninos do bairro se reuniam numa rua de terra para formar equipes e disputar partidas acirradas. O gol tinha dez passos de cumprimento e era demarcado por duas pedras. Brincava-se descalço, os times tinham de três a quatro jogadores na linha, não havia posicionamento determinado para ninguém, e as regras eram forjadas na hora. Uma falta, bola para fora, pênalti, eram circunstâncias do momento que se definiam conjuntamente com todos ao mesmo tempo. Chegava o sábado, tomava café, colocava a redonda embaixo do braço e ia bater no portão do meu vizinho de infância para irmos até a quadra da escola. Ainda hoje o muro da casa do vizinho que separa o quintal da casa da minha mãe tem as marcas dos meus chutes cheios de defeitos. Aquele corpo esférico era nossa amiga inseparável. A bola foi nossa primeira amante. O futebol é o primeiro contato amoroso do ponto de vista sexual de um menino.

Quando torcedor formado, o futebol é um ato de guerra. É agressivo, violento, guerreiro. Os jogadores são soldados em defesa de sua pátria. Vivem e matam pelo ideal da conquista. Mas também é meio de expressão da sedução. Ora cadenciado e romântico, ora veloz e abrupto, ora gentil e cuidadoso, o jogo de futebol é a determinação de alcançar o proibido. A linha que delimita o gol de sua entrada é a boca do desejo intransponível. Toda vez que alcançado, toda vez que invadido, as redes do gol balançam as rugas libidinosas e as arquibancadas estremecem os joelhos religiosos. Os torcedores enlouquecem em orgasmos múltiplos explícitos. O gol é a explosão generosa do gozo.

De maneira simplificada, sei que o professor e santista
José Miguel Wisnik considera que o futebol é às vezes prosa, outras poesia. No primeiro caso, essa situação acontece quando o time tem como prioridade a defesa, no segundo quando a ênfase proposta é o ataque. No entanto, como os tempos atuais são outros, Wisnik acredita mesmo que em geral o que existe hoje seja uma espécie de prosa ensaística, à procura da poesia.

No jogo de hoje em Santos, a prosa dominou toda a partida, tendo o time da casa feito sucessivos rabiscos ao encontro da mencionada prosa ensaística. Contudo, antes de torcedor e agoureiro, sou admirador da beleza inesperada e espectador da arte incontida do espetáculo. O segundo gol do Ronaldo foi um lampejo radiante e consciente de poesia.

Jânio Dias

sábado, 18 de abril de 2009

Um Feriado para a Alma

imagem: Dance on the Banks of the River Manzanares, 1777, Francisco Jose de Goya y Lucientes


“São as pequenas coisas que valem mais
É tão bom estarmos juntos
E tão simples: um dia perfeito”

Legião Urbana, em Um Dia Perfeito


Uma grande amiga me disse que queria ir ver (ver não, sentir)
O Teatro Mágico em Itatiba, uma outra cidade a 80 km de distância de São Paulo. Seu marido e eu dissemos a ela que a distância não era grande, mas as estradas estariam intensas por causa do feriado prolongado. Ela respondeu desconsolada que será feriado para todo mundo, menos para ela que trabalhará na segunda-feira.

Feriados sempre me causaram um tipo de ansiedade com gosto de sede prolongada. Na verdade, um tipo feliz de espera. Uma data aguardada para eliminar um dia de trabalho. Uma noite de véspera mais longa dedicada aos lançamentos da locadora. Uma manhã menos cinza para acordar mais tarde e pensar direto no almoço. Algumas horas a mais para me dedicar ao saboroso ato de não fazer nada relacionado a obrigação do serviço. Preciosas horas a mais entregues a liberdade do descompromisso.

As vezes que trabalho no feriado o faço consternado. Levanto cabisbaixo, coloco a camiseta branca mais antiga, a calça jeans mais surrada e o tênis que tiver o cadarço mais encardido. Não é que eu odeio trabalhar nessas ocasiões, mas acordar cedo e entrar no metrô quase vazio, esperar o sinal vermelho mudar para verde sabendo que não há trânsito, atravessar a rua sem ter que esbarrar em ninguém, entrar no prédio e não ter fila para o elevador, passar no corredor e ver departamentos com a luzes apagadas, ligar o computador e só ouvir o barulho da sua máquina iniciando, sair para almoçar na casa do pão de queijo, atender o telefone e ter certeza que é da sua casa, desperta em mim a amargura do isolamento da alegria. Torna menor minha capacidade de acreditar que o trabalho enobrece. O trabalho em dias assim ocupa o corpo do tempo que deixou de ser meu.

Ao contrário da maioria das pessoas que conheço, sempre gostei mais de não viajar em feriado. A viajem me cansa, o trânsito me aborrece, o comportamento jurássico das pessoas me desola. As longas filas na estrada, as ultrapassagens desnecessárias pelo acostamento, a multidão insaciada no mercado, tudo me atinge escurecendo o belo do feriado.

Um feriado deveria ser aproveitado para enaltecer a beleza do descanso. Para alongar o balanço da rede na varanda dos beijos.

Por isso adoro quando chove em feriado. Adoro ouvir o barulho dos pingos no telhado, o aviso de que não é preciso ir até o quintal ou ligar o carro. Adoro a possibilidade de não abrir o portão e não ir até a padaria. Adoro fazer o café, colocar algumas torradas no prato e sentar no sofá em frente a televisão para rever uns dois episódios do seriado favorito e avança-lo sem pressa de levantar. Adoro o céu nublado e a promessa de mais chuva. Feriado em dias assim fortalece minha amizade com alguns cômodos do meu lar.

Adoro quando é inverno e feriado. Os pés com meias lavando a louça para as mãos serem recompensadas com o edredom confortando todo o corpo logo depois de uma redonda xícara de chocolate quente. A companhia de um livro para ser comido enquanto o branco dos olhos é aquecido com as imagens e construções de um outro universo. Mas tão gostoso quanto é sair de casa com touca e cachecol para ir ao cinema tendo a certeza de encontrar a tranquilidade das cavernas. Passear pela cidade em feriado de pleno inverno é como transitar pelo sossego da própria casa pela madrugada.

Mas é claro que não há nada mais bonito do que um feriado de sol invadindo as rusgas do dia. O agito dos planos para o par de tênis e a bermuda. A escolha da camiseta regata e a procura do protetor solar. A caminhada pela calçada arborizada ou o passeio dentro do verde do parque. A possibilidade do almoço fora ou a visita à casa da mãe. Uma cerveja com amigos que não viajaram ou apenas o deleite da presença da pessoa amada. A alegria do feriado está na liberdade das escolhas.

Um feriado serve para as janelas abrirem-se como braços a cumprimentar a entrada do sol. Serve para que os vidros inclinem o rosto para os pingos da chuva. Serve para permitir a permanência do vento por mais horas nas frestas das telhas empoeiradas.

Um feriado deveria ser aproveitado para se sentir o afago da natureza em ocasiões distintas.

Um feriado serve para suavizar a distância entre as faltas do tempo e os desperdícios da estrada.

Aproveitar um feriado é mirar a possibilidade de voltar mais forte para o trabalho.

Toda vez que eu me permito sentir (sentir não, viver)
O Teatro Mágico, mais revigorada minha alma fica.

Minha amiga tem razão, para compensar um feriado não realizado, só mesmo o arroubo provocado por um show de
Fernando Anitelli e Companhia.

Jânio Dias

"Selo: Blog 100!"



Este blog foi gentilmente agraciado pela amável Verônica do blog Mil Pensamentos com o “Selo: Este Blog é 100!”. Obrigado, Ve!

Ela recebeu o Selo de Gleice Couto, que recebeu do Acayrã do Deserto, que, por sua vez, foi indicado por Fabio Santos.

Agora, conforme as regras da corrente, eu preciso indicar três blogs para o mesmo Selo e justifica-los.

Pois bem:

“Selo: Este Blog é 100!”, por Jânio Dias:

15 Kilohertz - porque o meu amigo Edilson quando inspirado, quando motivado, é o cara mais criativo que eu conheço. Ele desenha, pinta, toca e escreve. Ele cria. Um artista.

Agatha - porque essa Coreana de apenas 24 anos consegue com no máximo 500 caracteres contar uma história e descrever sensações que eu não sou capaz com 5.000 letras. E às vezes, apenas com a escolha de um vídeo, ela nem precisa escrever.

essapalavra – porque o Dauri é poeta e insiste em disfarçar o contrário; porque ele mergulha em imagens onde todo mundo acha que é autobiográfico, mas foi apenas o pouso de um passarinho perto da janela.


Jânio Dias


Regras básicas de sobrevivência de um Selo:
1- Publicar o selo em seu blog e dizer qual blog recebeu, colocando o link do mesmo;

2- Publicar a história e o motivo do selo;

3- Repassar o prêmio selo a três blogs, sendo que o selo não pode ser enviado ao mesmo blog por mais de uma vez ( assim mais blogs poderão ser homenageados);

4- Publicar no blog o endereço dos homenageados e avisá-los que receberam o selo.

domingo, 12 de abril de 2009

Uma Canção (Quase) Sem Palavras

imagem: arquivo pessoal


“Ainda não é tarde pra dizer o que eu sinto
O tempo é só uma invenção
Às vezes eu quase consigo entender tudo assim
Muita coisa que eu digo é apenas para mim
As coisas mais simples são mesmo difíceis de se dizer”

Marcelo Bonfá, em Todos os Sonhos do Mundo


Quando eu ainda era bem pequeno, minha mãe gostava de me produzir para tirar fotos. Colocava o sapato mais novo, a camisa de botão mais bonita e uma calça que não tivesse remendos. Penteava meu cabelo de lado, formando uma franja escorrida na testa, escolhia um pé de fruta como fundo, e pedia pro Seu Juvêncio fazer a foto. Às vezes convidava minha vizinha (uns dois anos mais nova que eu) para ser meu par. Quando a foto ficava pronta, minha mãe escrevia atrás: “vovó querida, lembrança do seu querido netinho”. Ainda anotava a data e mencionava minha idade.

Por anos foi essa a minha convivência com minha avó materna, uma correspondência sem palavras através de imagens congeladas em papel fotográfico. Apenas fragmentos de meu crescimento, da troca dos meus dentes, da constância do meu sorriso.

Uma vez quando eu estava com nove anos minha mãe viajou para visitá-la. Uma longa viagem de ônibus de três dias até o interior do estado da Paraíba, mais alguns quilômetros de chão até chegar a seu sítio. Uma viagem ao centro da saudade de minha mãe. Em mim a curiosidade de menino em conhecer a mãe de minha mãe. Um curto encontro, mas suficiente para eternizar nas conchas da memória a figura da mulher que não se cansou em trazer vida ao mundo.

Meus dedos davam voltas em minhas mãos para contar todos os seus filhos. Ela deu a luz 16 vezes, onde apenas 8 sobreviveram. Uma epopéia gestacional em uma época de ausência de recursos dignamente humanos. Uma heróica história de procriação onde o ser humano supera obstáculos obscuros da natureza. A figura de minha avó sempre flutuou em minha imaginação como a força do vento rompendo a sustentação da resistência de uma barreira.

Ainda retenho nubladas imagens no sótão da recordação dessa visita. Lembro da alegria conjunta das pessoas se reunindo a noite no sítio para na casa de farinha ralar a mandioca, e na saída voltar para suas casas apenas com a própria farinha como pagamento pelo trabalho. Lembro que não havia energia elétrica e que a luz noturna era forjada com lamparinas a querosene. A cozinha tinha um fogão feito de barro onde o gás era a lenha que queimava. A água para beber era buscada em balde no açude, onde também era lavada a roupa. Havia um gado magro que se alimentava de cajus caídos do pé. Não havia televisão e a parede da sala era enfeitada com um retrato antigo do meu avô com minha avó.

Com a exceção de dois filhos, todos os outros deixaram o sítio e migraram para a cidade grande. Mas minha avó nunca titubeou duas vezes na remota possibilidade de deixar seu lar. Nem mesmo quando doente aceitou os pedidos para que viajasse para tratamento. Uma pedra sólida e teimosa fincada no agreste de sua terra.

Ano passado, em passeio de uma semana pela cidade de João Pessoa, liguei para uma tia e tomei nota de como chegar ao sítio Riacho do Boi, na pequenina cidade de Lagoa do Mato, morada há mais de 50 anos de minha avó. Queria fazer uma visita surpresa, mas minha tia sabiamente me desaconselhou. Disse que poderia ser perigoso para um coração de 76 anos o susto e a alegria de uma chegada repentina, e que a avisaria antes. Concordei e fiquei feliz com a possibilidade de vinte anos depois rever a força do vento. Um encontro veloz para eternizar nos lençóis da lembrança a figura da mulher que nunca quis deixar seu solo.

Encontrei uma senhora forte e bonita, de voz alta, grave e firme, de cabelos levemente brancos, longos e presos, em sua casa simples de janelas verdes; elegantemente trajada em um vestido de algodão azul estampado com flores. Uma senhora lúcida de opiniões convergentes com seu tempo e lugar.

Seu assunto preferido são as histórias de quem tristemente já se foi. Sua maior alegria são as boas notícias dos filhos distantes. Seu único medo é o receio de que invasores tomem conta de sua terra quando for obrigada a partir.

Hoje há energia elétrica no sítio, as plantas são mais verdes, e a falta de água não aflige tanto como antes. A televisão tem parabólica e na antiga cozinha de fogão a lenha há uma geladeira moderna com dispenser de água e gelo. Os pés de caju ganharam a companhia de carambolas. O gado parece mais saudável e tão livre quanto antes. A casa de farinha está abandonada, a tecnologia dispersou a celebração do trabalho comunitário.

Na parede da sala diversos quadros de filhos, netos e bisnetos decoram a saudade da distância; como uma canção (quase) sem palavras.

Vinte anos depois eu não encontrei a força do vento; encontrei o aroma, as folhas e os frutos.

Jânio Dias

domingo, 5 de abril de 2009

As Cores dos Meus Olhos

imagem: The Apple Tree II, 1916, Gustav Klimt


"O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente”

O Teatro Mágico, em O Anjo Mais Velho


Certa vez, o poeta
Carpinejar me disse que seus olhos ficam verdes quando está triste. Sua esposa Ana havia acabado de comentar que meus olhos eram ligeiramente claros como os dele, sem ter certeza como defini-los.

Meus olhos são sensíveis à claridade. Toda vez que abro a porta de casa sei se terei de pegar os óculos de sol ou não para protegê-los. Caso contrário, não consigo mantê-los acima do nariz, sou obrigado a caminhar de chapéu cobrindo os cílios; tropeço nas sombras seguindo as pontas do tênis.

Uma vez questionei o oftalmologista e ele me disse que meus cristalinos deixam passar mais amplamente os raios ultravioletas.

Meu pai tem os olhos azuis como céu de brigadeiro. Todos os irmãos têm os olhos azuis ou verdes. Meus avós quando juntos pareciam que tinham quatro bolas de fogo azuladas com nuvens em volta e pequenos anjos passeando serenamente em suas íris. Eles sempre despertaram a atenção para seus rostos, uma peripécia genética que convencionou que outras famílias quando fizessem referência a eles os chamassem de “família gato”.

Já minha mãe tem os olhos castanhos-castanhos, e os meus são indefinidamente claros. Nem verdes, nem azuis ou cinza. Talvez um castanho-mel, quase louro. Algumas pessoas falam em castanho-puro, outras em castanho-claro-esverdeado. Sempre preferi a versão nordestina do meu querido Tio Antonio: eles têm a cor de burro quando foge.

O fato é que eles são sensíveis à luz. Variam de cor conforme a exuberância do momento. Variam de cor conforme a luz em volta.

É assim quando minha sobrinha me vê chegando para visitá-la, e quase tropeçando no quintal de cimento, correndo com os chinelos trocados, com seus cabelos escuros semi-encaracolados balançando contra o vento, segurando seu pequeno sorriso de pequenos dentes brancos, vem em minha direção com os braços abertos. E quando a pego no colo, simplesmente enlaça meu pescoço com seus braçinhos, apertando-o com toda sua força, impondo alegria em um enforcamento de brincadeira, para depois me dar um beijo molhado no rosto. Nesse instante meus olhos brilham o calor da afetividade. Meus olhos ficam laranja quando abraçam o sorriso de minha sobrinha.

É assim quando durante uma atividade física, no caminho de volta no metrô ou parado em alguma fila desmerecedora, enquanto não toca o despertador da descida, um vento fino golpeia meu rosto e relembro de algum pedaço da infância. Costuro um remendo na calça sobre o joelho, conto tampinhas de refrigerante sobre a calçada, me desfaço das figurinhas repetidas, amasso vidro em uma lata de leite, recorto um galho bifurcado em Y, molho por querer os pés numa poça de lama. Nessa hora meus olhos brilham os anos fulgurantes da inocência. Meus olhos ficam azuis-turquesa quando rejuvenescem estáticos na memória.

É assim quando disperso e a ausência se faz presente. Quando peso o lamentar de quem se foi. Quando desenlaço a caixa de correspondências dos distantes. Quando afasto a poeira sobre a capa do álbum de fotografias. Quando decido levar para revelar o negativo mofado. Quando percebo que o fio da campainha está cortado. Quando a agenda de papel foi encontrada na máquina de lavar. Quando a estampa da camiseta está borrada. Quando a página do livro recebido de presente perdeu a dedicatória. Quando o velho vinil lembra o velho aparelho que não toca mais. Meus olhos brilham o intenso da saudade. Meus olhos ficam rubros quando a solidão soluça.

É assim quando revejo um velho amigo. Meus olhos cegam as horas que já tivemos por perto para recomeçar de onde não iniciamos. Resgatam o atraso das conversas interrompidas com a perspectiva da chegada da segunda-feira. Ajustam a altura do muro de nossas confidências. Reparam o alcance de nossas intransigências. Rebobinam as mesmas cansadas histórias para realçar suas cores. Meus olhos transbordam a vontade de colar os dias que não ficaram juntos. Meus olhos brilham uma luz enriquecida de harmonia. Meus olhos ficam amarelo-ouro quando estão entre velhos amigos.

É assim quando o peito se enche de satisfação súbita ao ouvir uma música energizante, que acelera e inebria os hormônios convalescidos de minha juventude. É assim quando os pés se confundem no ar com as mãos e dançam as faíscas do ontem abençoando o próximo amanhecer. É assim quando um filme provoca a leveza adocicada de um cair de noite. É assim quando leio de madrugada para o sono vir e não desejo adormecer as pálpebras. Meus olhos brilham o entusiasmo dos impulsos. Meus olhos ficam verde-piscina quando flamam.

É assim quando o coração se depara com a suavidade dos sussurros da melodia de uma canção que alterna o equilíbrio e o balançar dos fios sobre os pés. É assim quando os ouvidos dançam as batidas cadenciadas dos pulmões. É assim quando a beleza de um filme traz o rio para perto das lágrimas. É assim quando a leitura de certos versos faz chuva dentro de mim. Meus olhos brilham a emoção dos sentidos. Meus olhos ficam violetas quando o intrínseco se revela.

É assim quando a calma se apresenta, quando a esperança desperta. Quando a fúria reage, quando a prudência se dissolve. Quando um sorriso reconforta, quando um abraço vale o dia. Quando mistérios se escondem, quando segredos enlouquecem. Quando o silêncio grita, quando o espanto se cala. Quando a alegria vira dor, quando a arte vira tristeza. Quando um telefonema traz luz ao coração, quando uma visita conserta a janela da espera. Quando ela chega e ilumina a casa, quando adormeço com as pálpebras levantadas em seu amor. Meus olhos brilham desventura e felicidade. Meus olhos às vezes ficam assim, um branco-avermelhado que não se supõem.

Meus olhos têm cores que só a poesia desconfia.

Jânio Dias