sábado, 12 de julho de 2008

Le Scaphandre et le Papillon

imagem: The Red Sphinx, de Odilon Redon


“Sometimes I feel like I don't know
Sometimes I feel like checking out.
I wanna get it wrong
Can't always be strong
And love, it won't be long.”

U2, em Ultraviolet (Light My Way)
'
'
Ele está sentado em sua cadeira de frente para o mar. Há um vento forte e frio que passa por ali. Está bem agasalhado e com o corpo coberto por mais de uma manta. A praia está deserta, há apenas ele, a ex-esposa, os filhos e gaivotas no céu que parecem procurar outra estação. As crianças estão brincando incansavelmente na areia, a ex-esposa dividindo seus cuidados e preocupação entre ele e os filhos. As gaivotas são um rastro rápido no azul do céu que deixou de ser infinito.

Seu olhar parado e aparentemente sempre perdido, ora seguindo o circulo da passagem dos movimentos infantis, ora admirando o carinho contemplativo da ex-esposa, tem atenção especial para as ondas que vão e retornam em sinfonia rítmica. Parecem levá-lo em mente e espírito às lembranças mais raras e ricas de sua vida, às lembranças dos mais belos sonhos não vividos quando criança, dos momentos mais intensos realizados quando adulto.

Em suas andanças pelos caminhos desnivelados da memória, há entre tantas paradas e comitivas emocionais, a visita surpresa à mulher amada ainda inconsciente pelo sono. O toque gentil em seu rosto, o arrumar cuidadoso dos cabelos, o beijo carinhoso sobre as pálpebras adormecidas. O mergulho para debaixo do cobertor da amada sem tirar as roupas, o encontro com seu corpo nu e quente. A saída correndo para a praia como dois velocistas apostando corrida para ver quem se molharia primeiro. A queda sobre a água morna da manhã, o rolar abraçado a ela sobre a areia como se fosse o Marlon Brando em “A Um Passo da Eternidade”.

Há os dias de sol mais felizes envolto com as crianças, os passeios de carro em meio ao verde e as montanhas francesas, os cabelos esvoaçantes dos filhos sentindo o vento como parte imediata da vida, as tardes nubladas de sábado com as cores mais vivas que um dia poderia ter. As brincadeiras de rodar no ar como pião descontrolado mas equilibrado sobre o chão, o levantar vôo com a tontura dos giros, o largar do corpo na confiança de que o pai estará do lado certo no momento da queda. O amparo irremediável para as dúvidas e as certezas que só os filhos têm.

As visitas ao pai já velhinho e com dificuldade de andar, com dificuldades de lembrar o pensamento articulado nos últimos quinze segundos. A facilidade de fazer graça com o início do alzheimer, a facilidade de sorrir para os amores que existiram e não serão esquecidos, a graça da dureza de não admitir ser barbeado pelo próprio filho. A delicadeza da certeza de ainda ser o mais belo dos homens barbeados.

O passeio solitário de madrugada por ruas de um bairro mexicano. As luzes de néon convidando para entrar e viver o azeite e o escorregadio da perdição, seguir reto e encontrar a esquerda uma vitrine gigante com a imagem de Lourdes. Observá-la atentamente como se de repente a fé surgisse e fosse possível passar a acreditar. Como se naquele momento surgisse uma espécie de redenção, como se fosse possível pedir um mínimo de conforto para os dias ainda mais difíceis que surgirão. Como que seu espírito fosse ali liberto do escafandro em que vivia e passasse a voar lépido como borboleta. Para ele a crença na fé dependia da existência comprovada de milagres. E sua vida não era um milagre.

Seus dias sempre haviam sido ricos em disposição atlética, em energia melódica, em beleza intensa. Seus dias tinham o brilho rasgante dos raios do sol por entre as cópulas das árvores. Seus dias tinham o fogo ardente da terra do nunca. Seus dias tinham cores do espírito santo.

Mas numa tarde de sábado nublado e feliz, um acidente cardiovascular deixou-o sem movimentos, sem sentidos. Cabeça, boca, mãos, dedos, pés, nada está lá. Ou todos estão lá. O coração bate, seus pulmões aspiram e espiram. Sua capacidade intelectual está intacta. Compreende, fica bravo, triste; sente saudade, remorso, tem senso de humor e gostaria de seduzir a fisioterapeuta. Mas seu tronco cerebral foi desconectado. Nenhuma reação a estímulos, nenhuma expressão facial. Nem sorriso de bom dia, nem lágrima de alegria. Nem o olho direito. Apenas o esquerdo.

Ele se comunica com o olho esquerdo. Uma piscadela para sim, duas para não. Dita para uma assistente a história de sua vida através de movimentos com a pálpebra esquerda.

Ele diz o que quer a quem ama com um piscar de olho.

Jânio Dias

5 comentários:

Renata disse...

beijos pra ti e pra Jean-Dominique Bauby!

Kamila Babiuki disse...

A vida é mais do que simplesmente parece. Esquecemos dela nos momentos mais importantes, naqueles em que realmente precivamos ter em mente que nao devemos apenas viver...

Encontrei o link do seu blog no blog do TM e me tornei leitora.
Parabéns pelos textos.

M. disse...

"não autorizado" ?! Ô.ô
Está super autorizado a voltar qndo quiser ;]
Coloquei seu blog nos links do meu.
Essa música do U2 é muito linda.

;*

Anônimo disse...

Nossa! Quanta sensibilidade, como sempre muito lindo!
Ah, estava com saudades de passar por aqui.
Mas pode ter certeza que de hoje em dia não vou deixar de ler teus textos.
bjs
marly

Iuri Gabriel disse...

Hahaha
Obrigado cara. Mogiano, mas esqueci de citar que nasci em São José. MAs como apenas nasci lá. Nao conta.

Gostei do que escreve cara, abraços. Virei aqui mais vezes!