quinta-feira, 3 de julho de 2008

The Constant

imagem: Score sheet of 'Moonlight Sonata', de Ludwig van Beethoven


“Enquanto for... um berço meu
Enquanto for... um terço meu
Serás vida... bem vinda
Serás viva... bem viva
Em mim”

"Os opostos se distraem
Os dispostos se atraem"

O Teatro Mágico, em Realejo


Sempre que eu lembro de você, um cheiro de mar agitado e gentil invade a sala.

Eu ainda era tão pequeno quando era obrigado a ouvir por tabela a rádio AM que minha mãe sintonizava, ainda era tão cru como ser assistindo a televisão no sábado a tarde o programa daquele sujeito que jogava bacalhau no público, e via meu pai olhar aquelas mulheres que dançavam alegremente e o faziam sorrir como que se algo acontecesse dentro dele, como se elas despertassem alívio para a semana de trabalho que havia passado, e você lá, do outro lado, com sua voz feroz e lírica, cheio de energia e ideais expondo seu talento e já algumas contradições do seu gênio para um público incapaz de entendê-lo.

E eu do lado de cá, na sala de casa enquanto minha mãe passava o pano de chão na cozinha e meu pai se deleitava no sofá com algo que só agora entendo (ou um pouco mais de tempo depois passei a entender), curioso com aqueles movimentos descompassados do seu corpo, com aqueles óculos que deixavam seus olhos flamejantes tão pequenos, com aquela fúria que invadia a sala e me fazia sorrir sem entender por que sorria.

Ainda um tanto pequeno, adorava observar seu discurso quando o apresentador do programa alternativo na outra emissora vinha lhe questionar sobre o futuro da nação. Era tão racional, político e incendiário, parecia que fagulhas saiam da sua boca e atiçavam o senso adormecido de justiça dos jovens daquela época.

Eu te ouvia no rádio como se fossem dois artistas diferentes abordando assuntos semelhantes. Sua voz me parecia tão distinta naquela outra canção que eu era capaz de apostar com quem quisesse que você, não era você. Eu não admitia que você fosse capaz de falar de colonização e paixão na mesma canção, não acreditava que você falaria de medos e outros sentimentos de forma tão... digamos, desnuda. Um pensador essencialmente político não seria capaz de amar de maneira tão explicita. Demorei a entender que desde sempre tudo o que você falava remetia a algo maior.

Já um pouco mais crescido, ficava fascinado com o encarte do vinil nas mãos. Eram os livros de poesia que eu não entendia traduzidos. Cada letra da canção era lida e repetida de olhos fechados até que fosse possível cantá-las antes que você saltasse da vitrola. Cada verso era rabiscado no caderno da escola como se houvesse ali a essência de todo aprendizado. A professora de português que tocava violão e colocava versos seus para interpretá-los, além de a mais bonita, era também a única e mais importante.

A menina linda de 16 anos que vestia uma camiseta branca de manga longa com o logotipo do fã-clube estampado sobre o coração, quando subia a rua do condomínio carregando embaixo dos braços os discos do Smiths (que você tanto adorava e tinha como referência e inspiração), fazia o coração disparar em desespero mudo. A língua ficava paralisada só de olhar para ela. Quando ela falava meus olhos mergulhavam em suas palavras e as roubava para mim. Sugava sua sabedoria sobre você e sua obra como se devorasse um livro religioso, como se aprendesse nela através de você um pouco mais sobre o sentido de existir.

A primeira vez que fiz uma entrevista de emprego misturei dezenas de frases de suas canções no texto. O entrevistador ignorante disse que minha redação era quase um poema, mas o outro candidato à vaga era mais objetivo. Fiquei feliz com o quase. Passei a brincar ainda mais com seus versos que já eram quase meus.

A minha primeira namorada não concordou que eu fosse sem ela a um show seu. Acho que ela não entendia a paixão, e disse: “ou eu ou o show”. Fiquei sem namorada e tive a primeira grande realização da minha vida. O mundo se mostrou mais interessante e acolhedor naquela noite em Sorocaba.

Você não tem a mínima idéia, mas conheci algumas das pessoas mais importantes da minha vida porque elas também gostavam e tinham o mesmo interesse em você. Quando você estava mais presente, eles eram muitos. Hoje são poucos, mas essencialmente raros em beleza. São amigos que quando se encontram brilham o suave da poesia e o amargo do tempo. Assim como você costumava se comportar com os seus: doce e ácido, displicente e generoso em sua diversidade.

Aquela vez que eu lhe escrevi, você quis saber mais sobre mim. Minha timidez e nossa distância não permitiram que nos encontrássemos. Mesmo assim senti-me feliz e orgulhoso com o interesse, afinal, aquela carta o criticava, mostrava-me decepcionado com suas atitudes, irritado e triste com o seu comportamento naquele último show, exatamente o oposto de quem não admite as falhas e evita enxergar criticamente seu ídolo; exatamente o comportamento oposto do artista que se acostumou a viver rodeado de jubilo. Aquela carta mostrou que minha fé em você seria uma constante.

Desde que você se foi, eu vivo meus dias em busca de uma nova descoberta, uma nova perspectiva, uma nova equação diferencial e exata. Uma nova constante. Algo que possa ser a diferença entre o que se passou e iluminar o insosso do hoje. Algo que traga o despertar do novo com poesia e sabedoria. Algo que crie harmonia e alimente a inteligência dos meus vestígios.

Eu tenho você como lembrança rara de tudo que aprendi, de tudo que eu poderia ser. Eu tenho você como mensagem verdadeira para o que devo fazer quando a luz se afasta dentro do túnel. Eu tenho você como garantia da vida que adormeceu por segundos antes das seis. Eu tenho você como forma de amor que não dilui com a saudade ou a tempestade. Eu tenho você como a menor distância entre o fechar dos olhos e o apertar das mãos.

E sempre que eu lembro de você, meus olhos viram mar que invade a calçada, mas não transbordam mais.

Jânio Dias

Um comentário:

Renata disse...

só para variar: lindo seu post!

beijo