“Será que você vai saber
O quanto penso em você com o meu coração?”
Legião Urbana, em O Descobrimento do Brasil
Eu acho que desci os seis lances de escadas que separam o teatro do Centro Cultural do Banco do Brasil no centro velho de São Paulo do seu térreo apenas para que o vento batesse em meu rosto e secasse as lágrimas ainda úmidas. Acho que evitei a companhia de Marcelo Rubens Paiva no elevador para que ele não percebesse meus olhos vermelhos e incontrolavelmente marejados.
Foi meu terceiro contato com o, digamos, dilacerante espetáculo Renato Russo – A Peça, e ainda não me acostumei aos efeitos colaterais causados por ela.
Na primeira vez, lá em setembro, viajei até a cidade de Santos para conferir o espetáculo no gigante teatro Coliseu, com características barrocas. Um abrigo perfeito para o ego do artista que ali seria reconstituído. Era especial para mim ir até lá, havia presenciado duas apresentações da Legião Urbana naquela cidade, e a última vez havia coincidido de forma desastrosa com a história do último show da vida da banda. Ao final da peça, só sabia bater palmas ininterruptas para o talentoso ator Bruce Gomlevsky que interpreta e encarna de forma assustadora e convincente a alma e o espírito do poeta e cantor Renato Russo. Acho que fui a última pessoa a dar as costas para o palco do Coliseu naquela noite. Estava incrédulo com o que havia visto. Era incrédulo o que sentia.
O segundo e terceiro contato com a peça foi ontem e sexta, aqui na capital. Teatro pequeno, capacidade para 125 testemunhas apenas, quase uma apresentação fechada. Um convite para assistir com o rosto entre a janela da casa e o quintal da saudade da complexa, rica, dolorosa, lírica e atormentada alma do artista quando jovem.
Bruce Gomlevsky não canta bem, mas impressiona e marca a pele e a memória do espectador com gestos, jeitos, e olhares de um Renato Russo de carne e sentimentos tão vivos quanto o ator que aperta a mão de quem está na primeira fileira. Aproveita-se só um pouco do humor ferino do Renato para torná-lo o melhor amigo outra vez. Planta em mim a curiosidade de saber qual o meu ascendente ou pense no meu mapa astral. Faz as pessoas rirem como se ele nunca tivesse sido visto como um ser dramático, mas sim como comediante romântico. Faz eu senti-lo com o coração; o coração de quem viveu intensamente as histórias, as entrevistas, as dúvidas, as expectativas do novo disco e do próximo show. Faz eu ter vontade de dançar com a minha própria sombra. Mostra como híbridos são meus sentimentos e constante é a incoerência humana. Escancara nos rostos das pessoas a dor de quem não escolheu o sofrimento como opção. Inevitáveis são a perda e a partida.
Inevitáveis também parecem ser os efeitos colaterais do espetáculo. Algo tão dramaticamente belo, tão rico em detalhes que sempre figuraram a imaginação coletiva dos fãs, tão sincero e ético como toda homenagem póstuma deveria ser, ainda assim, machuca o coração de quem esteve tão perto. Agita e ferve a cabeça de quem só ouviu falar. Embaralha as lentes de quem só descobriu agora. É uma sensação que vem para reviver aquilo que se perdeu e lembrar o que poderia ter sido. Sensação que não sabe para onde vai depois que chega. É uma saudade cheia de preces.
Chega a ser difícil encarar o Renato Russo de Bruce Gomlevsky nos olhos. Ele é atormentado, carrega o mundo nas costas em forma de dor; é solitário e busca o sentido da vida em um novo amor. O amor é tempo que acalma a vida e esta é incompreensível. A vida dele é amor e assim como o tempo, ambos são fugazes. O olhar de Bruce Gomlevsky é persuasivo. O Olhar de Renato Russo também.
Hoje está difícil olhar para o quadro com a fotografia de um show na parede do quarto.
É mais fácil morrer para se sentir fantasma e ter coragem para perguntar sobre o título daquela canção; ou mesmo, assim, como velhos amigos, “como vai a vida, Renato?”.
Jânio Dias
O quanto penso em você com o meu coração?”
Legião Urbana, em O Descobrimento do Brasil
Eu acho que desci os seis lances de escadas que separam o teatro do Centro Cultural do Banco do Brasil no centro velho de São Paulo do seu térreo apenas para que o vento batesse em meu rosto e secasse as lágrimas ainda úmidas. Acho que evitei a companhia de Marcelo Rubens Paiva no elevador para que ele não percebesse meus olhos vermelhos e incontrolavelmente marejados.
Foi meu terceiro contato com o, digamos, dilacerante espetáculo Renato Russo – A Peça, e ainda não me acostumei aos efeitos colaterais causados por ela.
Na primeira vez, lá em setembro, viajei até a cidade de Santos para conferir o espetáculo no gigante teatro Coliseu, com características barrocas. Um abrigo perfeito para o ego do artista que ali seria reconstituído. Era especial para mim ir até lá, havia presenciado duas apresentações da Legião Urbana naquela cidade, e a última vez havia coincidido de forma desastrosa com a história do último show da vida da banda. Ao final da peça, só sabia bater palmas ininterruptas para o talentoso ator Bruce Gomlevsky que interpreta e encarna de forma assustadora e convincente a alma e o espírito do poeta e cantor Renato Russo. Acho que fui a última pessoa a dar as costas para o palco do Coliseu naquela noite. Estava incrédulo com o que havia visto. Era incrédulo o que sentia.
O segundo e terceiro contato com a peça foi ontem e sexta, aqui na capital. Teatro pequeno, capacidade para 125 testemunhas apenas, quase uma apresentação fechada. Um convite para assistir com o rosto entre a janela da casa e o quintal da saudade da complexa, rica, dolorosa, lírica e atormentada alma do artista quando jovem.
Bruce Gomlevsky não canta bem, mas impressiona e marca a pele e a memória do espectador com gestos, jeitos, e olhares de um Renato Russo de carne e sentimentos tão vivos quanto o ator que aperta a mão de quem está na primeira fileira. Aproveita-se só um pouco do humor ferino do Renato para torná-lo o melhor amigo outra vez. Planta em mim a curiosidade de saber qual o meu ascendente ou pense no meu mapa astral. Faz as pessoas rirem como se ele nunca tivesse sido visto como um ser dramático, mas sim como comediante romântico. Faz eu senti-lo com o coração; o coração de quem viveu intensamente as histórias, as entrevistas, as dúvidas, as expectativas do novo disco e do próximo show. Faz eu ter vontade de dançar com a minha própria sombra. Mostra como híbridos são meus sentimentos e constante é a incoerência humana. Escancara nos rostos das pessoas a dor de quem não escolheu o sofrimento como opção. Inevitáveis são a perda e a partida.
Inevitáveis também parecem ser os efeitos colaterais do espetáculo. Algo tão dramaticamente belo, tão rico em detalhes que sempre figuraram a imaginação coletiva dos fãs, tão sincero e ético como toda homenagem póstuma deveria ser, ainda assim, machuca o coração de quem esteve tão perto. Agita e ferve a cabeça de quem só ouviu falar. Embaralha as lentes de quem só descobriu agora. É uma sensação que vem para reviver aquilo que se perdeu e lembrar o que poderia ter sido. Sensação que não sabe para onde vai depois que chega. É uma saudade cheia de preces.
Chega a ser difícil encarar o Renato Russo de Bruce Gomlevsky nos olhos. Ele é atormentado, carrega o mundo nas costas em forma de dor; é solitário e busca o sentido da vida em um novo amor. O amor é tempo que acalma a vida e esta é incompreensível. A vida dele é amor e assim como o tempo, ambos são fugazes. O olhar de Bruce Gomlevsky é persuasivo. O Olhar de Renato Russo também.
Hoje está difícil olhar para o quadro com a fotografia de um show na parede do quarto.
É mais fácil morrer para se sentir fantasma e ter coragem para perguntar sobre o título daquela canção; ou mesmo, assim, como velhos amigos, “como vai a vida, Renato?”.
Jânio Dias