segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Sol no Coração

imagem: Gecko, 1998 by Vivika Alexander


“Quando o sol me iluminar
Estrela de calor e luz
Vem me acordar
Eterna como a vida é
Sempre a acabar”

Astromato, em
Sonhos de Alta Definição


Tem dias em que procuro o sim. Desencontro-me dos motivos de desistir e da condição de negar. Abraço um perfume cor de jasmim, beijo uma corrente de ar no corredor do quintal, desloco o queixo branco sobre lírios roxos no muro da vizinha. Convido as pombas na garagem para passear, cumprimento o cão com uma batida no peito. Faço continência para o gato preguiçoso deitado sobre a boca do poço.

Conto as folhas da árvore no chão e penso na sutileza e na fúria dos ventos que as derrubaram. Pego a mangueira d’água e esguicho meu nome sobre as plantas. Não meço a quantidade de água que desperdiço no quintal, estou matando a sede da terra.

Não me preocupo com a porta aberta da geladeira, não controlo a luz da lâmpada acesa no banheiro, não verifico se desliguei o gás do fogão ou tranquei a porta da cozinha, deixo a cortina desalinhada e a janela entreaberta; não cuido da casa, minha casa é que cuida de mim.

Enrolo uma canção num guardanapo e deixo sobre o capô de um carro vermelho qualquer. Esqueço um livro de bolso no banco do metrô, ofereço o guarda-chuva para a velhinha que vai atravessar a rua. Grito com o farol amarelo: “você não sabe, mas é laranja”.

Afogo o pãozinho com margarina na caneca de café da padaria repleta de pessoas estranhas vestidas com ternos escuros e mulheres elegantes com seus saltos agulha de furar gelo. O pãozinho com margarina afoga minha diferença de classe.

Peço licença ao morador de rua para tirar uma foto de seu abrigo. Seus tapetes são papelões de fogo. Suas cobertas é o fogo em forma de papelão. O vento que passa por ali cheira a querosene. O clique da foto provoca combustão temporária no coração. Seu sorriso de janelas abertas é o consentimento da licença para pisar na calçada de sua morada. Suas marcas no rosto é o fluxo luminoso da vida que passa ausente de concessões.

Quando a menina branca de sardas atravessa o portão de casa vejo uma criança sapeca e radiante correndo de braços abertos na minha direção. Ela se joga contra meu corpo, me beija e me abraça com ternura imaculada. Quando a mesma menina atravessa a porta de casa, as paredes viram-se de costas, o chão afasta a mesinha de centro, o sofá se desloca para o outro canto, o tapete fica maior e colorido, o batente da porta do quarto estica-se, a cama não espera nossa chegada. Essa menina é ninfa que desaloja a casa. Quando ela está em casa, a cidade se ausenta para nós.

Tem dias que digo sim para a vida.

Tem dias que não procuro o caminho curto, o tropeço certo. Desvencilho-me do andar trôpego, desato as cordas da rua, solto o ar dos pulmões no precipício mais perto. Ralo os calos dos pés, enxugo as feridas das mãos, seco as lágrimas da camisa verde. Imponho no peito a insígnia da fé. Tem dias que digo sim para o que vier a frente.

Tem dias que aproximo o aconchego de velhos amigos.

Tem dias que não repercuto a falta. A justificativa de quem não veio, a desculpa de quem perdeu o endereço. O descuido com a história, o descaso com o amor. Não culpo quem me esqueceu; perdôo quem me negou. Tem dias que sou indulto.

Meus dias ardem. Tem tarde. Querem arte.

Tem dias que carrego sol no coração.


Jânio Dias

4 comentários:

Renata disse...

Esse post me lembrou do 365...
"Tem dias que eu digo não, inverno no meu coração..."
só que do avesso! hehehe
Esse fds pensei em vc...
assisti pela 1ª vez o filme Requiem para um sonho, dai lembrei do endereço do seu blog... fiquei a me questionar se seu blog tinha alguma relação com o filme ou sei lá o que...

Liga não Janio, ando com a cabeça tão cheia de coisas que ultimamente só sai besteira dessa minha cachola... rs

bjs

Dauri Batisti disse...

RAPAZ!!!

Gostei muito desse texto "sol no coração". Parabéns! Que frase maravilhosa essa: "Tem dias que sou indulto".

Muito sol pra você ai.

Dauri Batisti

Anônimo disse...

Querido, tem dias em que me emociono com os seus belos textos. Como consegue? hahaha.

Beijos e bom trabalho!

Cândida Nobre disse...

Imagem e texto bem casados... =] Muito bom!