
“Half of what I say is meaningless
But I say it just to reach you,
Julia”
The Beatles, em Julia
But I say it just to reach you,
Julia”
The Beatles, em Julia
II
Era uma tarde de sábado de fim de inverno. As flores dos pés de ipê enfeitavam o caminho. Pisávamos sobre o meio fio da calçada com sapatos atentos para desviarmos das cores ora amarela, ora roxa e branca que embelezavam o chão. A temperatura caia devagar como nossos passos a caminhar até a estação do metrô.
Meu amigo Lucio e eu íamos recepcionar algumas pessoas do fã clube “Metal Contra as Nuvens” da Legião Urbana em retribuição a festa que havíamos visitado como convidados especiais. Nada podia ser mais pueril do que um intercâmbio de fã clubes da mesma banda. Uma década antes e um encontro assim seria um ato político. Em nossas cabeças política era debater sentimentos em letras de canções.
Contornamos a última curva em direção ao metrô, paro por meio segundo e recolho uma flor caída sobre o asfalto, olho para a entrada da estação e penso se ela também estaria entre os convidados daquela tarde.
Avistamos o grupo pelas estampas inconfundíveis das camisetas. Apesar do vento frio que percorria o interior da estação, os agasalhos ficavam abertos para exposição de um tipo raro de orgulho que carregávamos no peito.
Eles também nos reconhecem e se aproximam. Um grupo de cinco pessoas e apenas uma menina. Repasso com pressa as cortesias masculinas. Ignoro os rostos com qualquer sinal de pêlos. Só tenho olhos para a moça que protegia as mãos nos bolsos do casaco jeans não abotoado. Um sorriso gentil de que eu já te conheço é lançado. Largo os olhos no movimento ligeiro de seu corpo em minha direção, e com apenas uma das mãos, apóia meu rosto contra suas bochechas rosadas.
Era ela, a menina da bandeira, agora como visitante. Rapidamente aprendo seu nome. Tudo fica mais fácil quando se conhece a palavra que se designa uma pessoa.
- Oi!; desculpe a mão gelada, é onde costumo sentir mais frio. Diz retornando os dedos para o bolso do casaco e encolhendo o queixo.
- Não se preocupe, o apartamento é aqui perto. Logo você se sentirá melhor. Apesar de que lá faz muito frio também, talvez você precise de mais uma blusa.
- Talvez eu aceite um par de luvas! Replica mordendo o lábio inferior, inclinando a cabeça levemente sobre o ombro esquerdo.
O vento da estação rente aos meus cílios é um silêncio revelador. Ao contrario das mãos dela, as minhas suam. Se ela precisa de mais agasalho, eu posso doar o meu. Diferente do combinado, sinto vontade de mandar todos embora: seus amigos, meu amigo e todas as outras pessoas que nos esperavam no apartamento. Queria aquela tarde para saber bem mais do que apenas seu nome. Queria bem mais do que dividir nossa experiência de shows. Queria bem mais do que a narrativa de algumas histórias. Queria lhe oferecer minha boca para aquecer seu corpo.
Eu quase que podia vê-la entrando sozinha no quarto e abrindo a segunda gaveta da direita, debaixo para cima do guarda roupas e escolhendo um par de meias. Quase que podia imaginá-la saindo do banheiro só de toalha e andando descalça pela sala para depois me pedir para aquecer seus pés. Quase que podia sentir a fragrância da paixão percorrer os braços dos meus óculos. Quase que ainda posso tocá-la só de pronunciar seu nome.
Maria Elisa. Nunca mais esqueci esse lindo nome.
Maria Elisa. Cabelos negros ondulados em contraste com a pele branca, lisa qual cerâmica a escorregar. Olhos de amêndoas descascadas, lânguidos e repuxados como a provocar um mistério entre o norte e o oriente. Lábios lascivos de exclamações invertidas a duvidar de sentidos e intenções. O grande prazer dos sentidos é não exigir razão.
Lembro agora que naquela tarde eu não tinha luvas para te emprestar, mas levaste minha blusa de lã e uma flor roxa contigo.
Agora sei por que sempre olho com carinho para todo pé de ipê que amanhece desagasalhado para minhas retinas.
Jânio Dias